Falar de assuntos sérios que teria de tratar após terminarem as aulas fora um erro imperdoável. É certo que a conversa derivara depois para a sua relação com Maria da Paz, e até, num momento determinado, parecera ir fixar-se aí, mas aquela frase da mãe, Às vezes da maneira pior, quando, para a sossegar, ele tinha dito que neste mundo tudo se resolve, soavam-lhe agora a vaticínio de desastres, a anúncio de fatalidades, como se, em lugar da idosa senhora que se chamava Carolina Máximo e era sua mãe, lhe tivesse saído do outro lado do fio uma sibila ou uma cassandra a dizer-lhe, por outras palavras, Ainda estás a tempo de parar. Por um momento pensou em meter-se no carro, fazer a viagem de cinco horas que o levaria à pequena cidade onde a mãe vivia, contar-lhe tudo e depois regressar com a alma lavada de miasmas enfermiços ao seu trabalho de professor de História pouco amante de cinema, decidido a virar esta página confusa da sua vida e até mesmo, quem sabe, disposto a considerar muito seriamente a possibilidade de se casar com Maria da Paz. Les jeux sont faits, rien ne va plus, disse em voz alta Tertuliano Máximo Afonso, que em toda a sua vida nunca entrou num casino, mas tem no seu activo de leitor alguns romances famosos de la belle époque. Guardou a carta para a produtora de filmes numa das algibeiras do casaco e saiu. Esquecer-se-á de a meter no marco postal, almoçará por aí, logo regressará a casa para tragar até ao fim as fezes desta tarde de domingo.
A primeira tarefa de Tertuliano Máximo Afonso no dia seguinte foi fazer dois pacotes das cassetes que iria devolver à loja. Depois juntou as restantes, atou-as com um cordel e foi guardá-las num armário do quarto, fechadas à chave. Metodicamente, rasgou os papéis em que tinha apontado os nomes dos actores, fez o mesmo aos rascunhos da carta esquecida na algibeira do casaco e que ainda terá de esperar uns minutos antes de dar o seu primeiro passo no caminho que a levará ao destinatário, e, por fim, como se tivesse algum motivo forte para apagar as suas impressões digitais, limpou com um pano humedecido todos os móveis do escritório em que havia tocado nestes dias. Apagou também as que Maria da Paz tinha deixado, mas nisso não pensou. Os sinais de passagem que queria fazer desaparecer não eram os seus nem os dela, eram, sim, os da presença que o arrancara violentamente ao sono na primeira noite. Não valia a pena observarem-lhe que semelhante presença só no seu cérebro tinha existido, que certamente a havia fabricado uma angústia gerada no seu espírito por um sonho de que se tinha esquecido, não valia a pena sugerirem-lhe que teria podido ser, talvez, e nada mais, a consequência sobrenatural de uma má digestão do guisado de carne, não valia a pena demonstrarem-lhe, finalmente, com as razões da razão, que, mesmo estando dispostos a aceitar a hipótese de uma certa capacidade de materialização dos produtos da mente no mundo exterior, o que de todo em todo não podemos admitir é que a inapreensível e invisível presença da imagem cinematográfica do recepcionista de hotel tivesse deixado espalhados por toda a casa vestígios de sudação dos dedos. Tanto quanto até agora se sabe, o ectoplasma não transpira. Terminado o trabalho, Tertuliano Máximo Afonso vestiu-se, pegou na sua pasta de professor e nos dois embrulhos, e saiu. Encontrou na escada a vizinha do andar de cima que lhe perguntou se precisava de ajuda, e ele disse que não, minha senhora, muito obrigado, logo, por sua vez, interessou-se ele por saber como tinha decorrido para ela o fim-de-semana, e ela respondeu que assim-assim, na forma do costume, e que o tinha ouvido a trabalhar na máquina de escrever, e ele disse que mais tarde ou mais cedo teria de resolver-se a comprar um computador, que esses, ao menos, são silenciosos, e ela disse que o ruído da máquina não a incomodava nada, pelo contrário, que até lhe fazia companhia. Como hoje seria dia de limpeza, ela perguntou-lhe se não voltava a casa antes do almoço e ele respondeu que não, que almoçaria na escola e só regressaria pela tarde. Despediram-se até logo, e Tertuliano Máximo Afonso, consciente de que a vizinha ficara a observar comiserante a sua falta de jeito para carregar com os dois embrulhos e a pasta, desceu a escada dando atenção aonde punha os pés para não tombar de cambulhada e morrer de vergonha. O carro estava do lado oposto ao marco postal. Foi guardar os embrulhos no porta-bagagem e voltou para trás, ao mesmo tempo que ia tirando a carta da algibeira. Um garoto que passou a correr deu-lhe sem querer um encontrão e a carta soltou-se-lhe dos dedos e caiu no passeio. O rapaz parou uns passos adiante e pediu desculpa, mas, talvez por temor a uma repreensão ou a um castigo, não a veio levantar e devolver, como era sua obrigação. Tertuliano Máximo Afonso fez um aceno complacente com a mão, o gesto de quem decidira aceitar as desculpas e perdoar o resto, e baixou-se para recolher a carta, Pensou que poderia fazer uma aposta consigo mesmo, deixá-la onde estava e entregar às mãos do acaso os destinos dos dois, o dela e o de si próprio. Podia suceder que a próxima pessoa a passar por ali apanhasse a carta perdida, visse que tinha o selo posto e, como bom cidadão, a fosse meter escrupulosamente no marco postal, podia suceder que a abrisse para ver o que teria dentro e a atirasse fora depois de a ter lido, podia suceder que não lhe desse atenção e indiferente a pisasse, que durante o resto do dia a calcassem muitas pessoas mais, cada vez mais suja e amassada, até que alguém decidisse de uma vez empurrá-la com a ponta do sapato para a valeta, onde o varredor de lixo a viria encontrar. A aposta não foi feita, a carta foi levantada e levada ao marco postal, a roda do destino pôs-se finalmente em movimento. Agora Tertuliano Máximo Afonso irá à loja dos vídeos, conferirá com o empregado as cassetes que traz nos embrulhos e, por exclusão de partes, as que havia deixado em casa, pagará o que deve e possivelmente dirá consigo mesmo que nunca mais ali entrará. Afinal, para alívio seu, o empregado mesureiro não estava, quem o atendeu foi a rapariga nova e inexperiente, por isso as operações demoraram um tanto mais, embora a facilidade de cálculo mental do cliente de alguma coisa novamente tivesse servido quando chegou a altura das contas. A empregada perguntou-lhe se queria alugar ou comprar alguns vídeos mais, ele respondeu que não, que tinha chegado ao fim do seu trabalho, e isto disse-o sem se lembrar que a rapariga ainda não estava na loja quando ele havia feito o seu famoso discurso sobre as marcas ideológicas presentes em todo e qualquer relato fílmico, também, naturalmente, nas grandes obras da sétima arte, mas sobretudo nas produções de consumo corrente, séries bê ou cê, aquelas de que em geral se faz nulo caso, mas que são as mais eficazes porque apanham desacautelado o espectador. Parecia-lhe que a loja era mais pequena do que quando tinha aqui entrado pela primeira vez, ainda não há uma semana, realmente era inacreditável como em tão pouco tempo a sua vida se transformara, neste momento sentia-se como se flutuasse numa espécie de limbo, num corredor de passagem entre o céu e o inferno que o fazia perguntar-se, com certo sentimento de assombro, de onde viera e para onde iria agora, porquanto, a avaliar pelas ideias que sobre o assunto correm, não pode ser a mesma coisa transportar-se uma alma do inferno ao céu ou ser empurrada do céu para o inferno. Já ia conduzindo o automóvel na direcção da escola quando estas reflexões escatológícas foram substituídas por uma analogia doutro tipo, colhida esta na história natural, secção de entomologia, a qual o fez olhar-se a si mesmo como uma crisálida em estado de recolhimento profundo e em secreto processo de transformação. Apesar do humor sombrio que o acompanhava desde que se levantara da cama, sorriu da comparação ao pensar que, neste caso, tendo entrado no casulo como lagarta, dele sairia como borboleta. Eu, borboleta, murmurou, é só o que me falta ver. Arrumou o carro não muito longe da escola, consultou o relógio, ainda teria tempo para beber um café e passar os olhos pelos jornais, se os havia livres. Sabia que tinha descuidado a preparação da lição, mas a experiência dos anos resolveria a falta, outras vezes tivera de improvisar e ninguém percebera a diferença. O que nunca faria seria entrar na aula e disparar à mão salva contra os inocentes infantes, Hoje há chamadas. Seria um acto desleal, a prepotência de quem, por ter a faca na mão, faz dela o uso que muito bem lhe apetece e varia a espessura das fatias do queijo conforme os caprichos da ocasião e as preferências estabelecidas. Quando entrou na sala dos professores, viu que ainda havia jornais disponíveis no escaparate, mas para lá chegar teria de passar por uma mesa onde, diante de chávenas de café e copos de água, três colegas conversavam. Mal pareceria seguir adiante, tanto mais que um deles era o seu amigo professor de Matemática, a quem, em compreensão e paciência, tanto estava a dever. Os outros eram uma idosa professora de Literatura e um jovem professor de Ciências Naturais com quem nunca havia criado relações de proximidade afectiva. Deu os bons-dias, perguntou se podia fazer-lhes companhia e, sem esperar resposta, puxou uma cadeira e sentou-se. A uma pessoa não informada dos costumes do lugar poderia parecer um tal procedimento bastante convizinho da má educação, mas os protocolos de relação na sala de professores assim se tinham organizado, de modo por assim dizer natural, não haviam sido passados a escrito, mas assentavam em sólidos alicerces de consenso, uma vez que não entrando na cabeça de ninguém responder negativamente à pergunta, melhor era saltar logo o coro, de concordâncias, umas sinceras, outras não tanto, e dar a coisa por feita. O único ponto delicado, esse, sim, capaz de gerar tensão entre quem já estava e quem acabou de chegar, residia na possibilidade de que o assunto em debate fosse de natureza confidencial, mas isso mesmo havia sido solucionado pelo recurso tácito a outra pergunta, esta retórica por excelência, Interrompo, para a qual só era socialmente admissível uma resposta, De modo nenhum, junte-se a nós. Dizer ao recém-chegado, por exemplo, ainda que com as melhores maneiras, Interrompe, sim senhor, vá sentar-se noutro sítio, causaria uma comoção tal que a rede intra-relacional do grupo seria gravemente abalada e posta em causa. Tertuliano Máximo Afonso voltou com o café que tinha ido buscar, instalou-se e perguntou, Que novidades há, Refere-se às de fora ou às de dentro, perguntou por seu turno o professor de Matemática, As de dentro é cedo para sabê-las, referia-me às de fora, ainda não li os jornais, As guerras que havia ontem continuam hoje, disse a professora de Literatura, Sem esquecer a probabilidade altíssima ou mesmo a certeza de que outra está pronta para começar, acrescentou o professor de Ciências Naturais como se estivessem combinados, E você, como foi o seu fim-de-semana, quis saber o professor de Matemática, Tranquilo, em paz, passei quase todo o tempo a ler um livro de que creio já lhe ter falado, um sobre as civilizações mesopotâmicas, o capítulo que trata dos amorreus é interessantíssimo, Pois eu fui ao cinema com a minha mulher, Ah, fez Tertuliano Máximo Afonso desviando os olhos, Aqui o nosso colega é pouco apreciador de cinema, aparteou o de Matemática para os outros, Nunca afirmei redondamente que não gosto, o que disse e repito é que o cinema não faz parte dos meus afectos culturais, prefiro os livros, Meu caro, não vale a pena enxofrar-se, o assunto não tem importância, sabe bem que foi com a melhor das intenções que lhe sugeri que visse aquele filme, Que significa exactamente enxofrar-se, perguntou a professora de Literatura, tanto por curiosidade como para deitar água na fervura, Enxofrar-se, respondeu o de Matemática, significa irritar-se, zangar-se, ou, com mais precisão, arrufar-se, E por que é arrufar-se, em sua opinião, mais preciso que zangar-se ou irritar-se, perguntou o professor de Ciências Naturais, Não será mais que uma interpretação pessoal que tem que ver com recordações da infância, quando a minha mãe me repreendia ou castigava por qualquer tropelia eu fechava a cara e recusava-me a falar, mantinha um silêncio total que podia durar muitas horas, então ela dizia que eu estava arrufado, Ou enxofrado, Exactamente, Em minha casa, quando eu andava por essas idades, disse a professora de Literatura, a metáfora para os amuos infantis era diferente, Diferente, em quê, Digamos que asinina, Explique-nos lá isso, Amarrar o burro, era o que se dizia, e escusam de ir procurar a expressão nos dicionários porque não a encontram, suponho que fosse exclusiva da família. Todos riram, com excepção de Tertuliano Máximo Afonso, que deixou aparecer um sorriso meio contrariado para corrigir, Exclusiva não creio que o fosse assim tanto, porque em minha casa também se usava. Houve novos risos, a paz estava feita. A professora de Literatura e o professor de Ciências Naturais levantaram-se, disseram logo nos vemos como despedida, provavelmente seriam as suas aulas mais longe, talvez no andar de cima, estes que ficaram sentados dispõem ainda de alguns minutos para o que faltar dizer, De uma pessoa que declarou ter estado durante dois dias entregue à serenidade de uma leitura histórica, observou o colega de Matemática, esperaria eu tudo, menos essa cara atormentada, É impressão sua, não tenho nada que me atormente, devo é ter cara de quem dormiu pouco, Você poderá dar-me as razões que quiser, mas a verdade é que desde que viu aquele filme não parece o mesmo, Que quer dizer com isso de que não pareço o mesmo, perguntou Tertuliano Máximo Afonso num tom inesperado de alarme, Nada senão o que disse, que o noto mudado, Sou a mesma pessoa, Não duvido, É verdade que ando algo apreensivo por causa de uns assuntos de ordem sentimental que ultimamente se me complicaram, são coisas que podem suceder a qualquer, mas isso não significa que me tenha tomado em outra pessoa, Nem eu o disse, não tenho nenhuma dúvida de que continua a chamar-se Tertuliano Máximo Afonso e é professor de História nesta escola, Então não percebo por que é que insiste em dizer que não pareço o mesmo, Desde que viu o filme, Não falemos do filme, já conhece a minha opinião sobre ele, De acordo, Sou a mesma pessoa, Claro que sim, Deveria lembrar-se que tenho andado com uma depressão, Ou marasmo, que era o outro nome que você lhe dava, Exactamente, E que isso merece respeito, Respeito tem-no todo de mim, bem o sabe, mas não era dele que falávamos, Sou a mesma pessoa, Agora é você quem insiste, É certo, ainda há poucos dias o disse, que estou a passar por um período de forte tensão psicológica, e portanto é natural que ela me venha à cara e se note nos meus modos, Claro, Mas isso não quer dizer que tenha mudado moral e fisicamente ao ponto de me parecer a outra pessoa, Eu limitei-me a dizer que você não parecia o mesmo, não que se parecesse a outra pessoa, A diferença não é grande, A nossa colega de Literatura diria que é, pelo contrário, enorme, e ela entende dessas coisas, creio que em subtilezas e matizes a literatura é quase como a matemática, Já eu, pobre de mim, pertenço à área da História, onde os matizes e as subtilezas não existem, Existiriam se a História pudesse ser, digamos assim, o retrato da vida, Estou a estranhá-lo, não é próprio de si ser tão convencionalmente retórico, Tem toda a razão, em tal caso a História não seria a vida, apenas um dos possíveis retratos dela, parecidos, sim, mas nunca iguais. Tertuliano Máximo Afonso desviou novamente os olhos, logo, com um difícil esforço de vontade, voltou a fixá-los no colega, como para averiguar o que haveria escondido por trás da serenidade aparente do seu rosto. O de Matemática sustentou o olhar sem que parecesse dar-lhe especial atenção, depois, com um sorriso em que havia tanto de ironia simpática como de franca benevolência, disse, Talvez um dia me disponha a ver outra vez a tal comédia, pode ser que consiga descobrir o que o faz andar transtornado, supondo que é lá que se encontre a origem do mal. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu da cabeça aos pés, mas, no meio da confusão, no meio do pânico, logrou dar uma resposta plausível, Não se canse, o que me traz transtornado, para usar a sua palavra, é uma ligação de que não sei como sair, se alguma vez, na sua vida, se encontrou em situação semelhante, sabe o que se sente, e agora tenho de ir dar a aula, já estou atrasado, Se não vê inconveniente, e ainda que na história do sítio haja pelo menos um perigoso caso antecedente, acompanho-o até à esquina do corredor, disse o de Matemática, ficando porém solenemente prometido que não repetirei aquele imprudente gesto de lhe pôr a mão no ombro, Assim são as coisas, hoje até podia suceder que não me importasse, Mas eu é que não quero correr riscos, você tem todo o aspecto de estar com as pilhas carregadas até à rolha. Ambos riram, sem qualquer reserva o professor de Matemática, esforçadamente Tertuliano Máximo Afonso, em cujos ouvidos ainda ressoavam as palavras que o haviam posto em pânico, a pior das ameaças que nesta altura alguém lhe poderia fazer. Separaram-se na esquina do corredor e foi cada qual ao seu destino. O aparecimento do professor de História fez perder aos alunos a fagueira ilusão que o atraso já tinha feito nascer, a de que hoje não houvesse aula. Mesmo antes de se sentar, Tertuliano Máximo Afonso anunciou que daí a três dias, portanto na próxima quinta-feira, teriam um novo e último trabalho escrito, Ficam informados de que se trata de um exercício decisivo para a definição final das notas, disse, uma vez que não tenciono proceder a chamadas orais nas duas semanas que faltam para o fim do ano lectivo, além disso, o tempo desta aula e das duas seguintes será exclusivamente dedicado a uma repassagem das matérias dadas, de maneira que possam apresentar-se com ideias frescas no dia do exercício. O exórdio foi bem acolhido pela parte mais imparcial da turma, era patente, a Deus graças, que Tertuliano não tencionava fazer mais sangue que aquele que não pudesse evitar. Daí para diante toda a atenção dos alunos irá ser posta na ênfase com que o professor for tratando cada uma das matérias do curso, porquanto, se a lógica dos pesos e medidas é realmente coisa humana e a sorte a favor um dos seus factores variáveis, tais mudanças de intensidade comunicativa poderiam estar a prenunciar, sem que ele se apercebesse da inconsciente revelação, a escolha dos temas de que o exercício constará. Se é bastamente conhecido que nenhuns seres humanos, incluindo aqueles que já atingiram as idades a que chamamos de senectude, podem subsistir sem ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal, que não diríamos então destas raparigas e destes rapazes que, depois de terem perdido a ilusão de que hoje não haveria aula, se empenham agora em alimentar uma outra ilusão muito mais problemática, a de que o exercício de quinta-feira possa ser para cada um, e portanto para todos, a dourada ponte por onde triunfalmente irão transitar para o ano seguinte. A aula já estava a ponto de acabar quando um empregado bateu à porta e entrou para dizer ao senhor professor Tertuliano Máximo Afonso que o senhor director lhe rogava a especial gentileza de passar pelo seu gabinete logo que terminasse. A exposição que estava a ser desenvolvida, sobre um tratado qualquer, foi despachada em menos de dois minutos, e tão por cima da rama que Tertuliano Máximo Afonso achou por bem dizer, Não se preocupem muito com isto porque não irá sair no exercício. Os alunos trocaram olhares de um entendimento cúmplice, dos quais facilmente se subentendia que as suas ideias sobre as valorações da ênfase tinham acabado de ser confirmadas num caso em que, mais que o significado das palavras, contara o tom despiciendo com que tinham sido pronunciadas. Pouquíssimas vezes uma aula chegou ao fim num tal ambiente de concórdia.
Tertuliano Máximo Afonso meteu os papéis na pasta e saiu. Os corredores enchiam-se rapidamente de estudantes que rompiam de todas as portas já a conversar sobre assuntos que nada tinham que ver com o que lhes fora ensinado um minuto antes, aqui e além um professor tentava passar despercebido no encrespado mar de cabeças que por todos os lados o rodeava e, fintando o melhor que podia os escolhos que lhe surgiam pela frente, esgueirava-se em direcção ao seu porto de abrigo natural, a sala. Tertuliano Máximo Afonso atalhou caminho para o corpo do edifício onde se encontrava o gabinete do director, parou para dar atenção à professora de Literatura que lhe cortava o passo, Falta-nos um bom dicionário de expressões coloquiais, dizia ela segurando-o pela manga do casaco, Mais ou menos, todos os dicionários gerais as costumam recolher, lembrou ele, Sim, mas não de maneira sistemática e analítica nem com ambição de esgotar o tema, registar aquela de amarrar o burro, por exemplo, e dizer o que significa, não bastaria, seria preciso ir mais longe, identificar nos diversos componentes da expressão as analogias, directas e indirectas, com o estado de espírito que se quis representar, Tem toda a razão, respondeu o professor de História, mais para ser agradável que porque realmente o tema lhe interessasse, e agora peço-lhe que me desculpe, tenho de ir, o director chamou-me, Vá, vá, fazer esperar Deus é o pior dos pecados. Três minutos depois Tertuliano Máximo Afonso batia à porta do gabinete, entrou quando a luz verde se acendeu, deu uns bons-dias e recebeu outros, sentou-se ao gesto do director e esperou. Não sentia nenhuma presença intrusa, fosse astral ou de outro tipo. O director pôs de parte os papéis que tinha sobre a mesa e disse, sorridente, Tenho pensado muito na nossa última conversa, aquela sobre o ensino da História, e cheguei a uma conclusão, Qual, senhor director, Pedir-lhe que nos faça um trabalho nas férias, Que trabalho, Evidentemente poderá responder-me que elas foram feitas para descansar e que é tudo menos razoável pedir a um professor, terminadas as aulas, que continue a preocupar-se com os assuntos da escola, Sabe perfeitamente, senhor director, que não lho diria por essas palavras, Dir-mo-ia por outras que significariam o mesmo, Sim, no entanto, e até este momento, não pronunciei nenhumas, nem essas nem aquelas, de modo que devo rogar-lhe que acabe de expor a sua ideia, Pensei que poderíamos tentar convencer o ministério, não a virar os pés pela cabeça ao programa, que isso seria demasiado, o ministro nunca foi pessoa para revoluções, mas a estudar, organizar e pôr em prática uma pequena experiência, uma experiência- piloto, limitada, para começar, a uma escola e a um número reduzido de estudantes, preferentemente voluntários, em que as matérias históricas fossem estudadas do presente para o passado em vez de o serem do passado para o presente, enfim, a tese que há tanto tempo tem andado a defender e de cuja bondade tive o gosto de ser convencido por si, E esse trabalho de que quer encarregar-me, em que consistiria precisamente, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Que elaborasse uma proposta fundamentada para enviar ao ministério, Eu, senhor director, Não é para o lisonjear, mas na verdade não encontro na nossa escola pessoa mais habilitada para o fazer, demonstrou que tem reflectido muito sobre o assunto, tem sobre ele ideias claras, realmente dar-me-ia uma grande satisfação se aceitasse a tarefa, digo-lho com toda a sinceridade, e escusado será dizer que esse trabalho seria remunerado, é com certeza possível encontrar no nosso orçamento uma rubrica onde o encargo caiba, Duvido que as minhas ideias, quer em qualidade, quer em quantidade, a quantidade também conta, como sabe, fossem suficientes para convencer o ministério, o senhor director conhece-os melhor que eu, Ai de mim, demasiado, Então, Então, permita-me que insista, creio que esta seria a melhor ocasião para tomarmos posição perante eles como uma escola capaz de produzir ideias inovadoras, Mesmo que nos mandem passear, Talvez o façam, talvez arquivem a proposta sem mais considerações, mas ela ficará lá, alguém, um dia, se lembrará dela, E nós ficaremos à espera desse dia, Num segundo tempo, poderemos chamar outras escolas a participar no projecto, organizar debates, conferências, meter nisto a comunicação social, Até que o director-geral lhe escreva uma carta a mandar-nos calar, Lamento observar que o meu pedido não o entusiasma, Confesso-lhe que há poucas coisas neste mundo que me entusiasmem, senhor director, mas o problema não é tanto esse como não saber eu o que as próximas férias me vão reservar, Não compreendo, Vou ter que enfrentar algumas questões importantes que surgiram recentemente na minha vida e temo que não me sobre o tempo nem me ajude a disposição de espírito para entregar-me a um trabalho que reclamaria da minha parte uma entrega total, Se assim é, daremos este assunto por encerrado, Deixe-me pensar um pouco mais, senhor director, conceda-me uns dias, comprometo-me a dar-lhe uma resposta até ao fim desta semana, Posso esperar que venha a ser positiva, Talvez, senhor director, mas não lho asseguro, Vejo-o realmente preocupado, oxalá consiga resolver da melhor maneira esses seus problemas, Oxalá, Como correu a aula, Sobre rodas, a turma trabalha, Estupendo, Na quinta-feira vamos ter um exercício escrito, E na sexta dá-me a resposta, Sim, Reflicta bem, Vou reflectir, Suponho que será escusado dizer-lhe em quem penso para conduzir a experiência-piloto, Obrigado, senhor director. Tertuliano Máximo Afonso desceu à sala dos professores, ia ler os jornais e fazer tempo para o almoço. Porém, à medida que a hora se ia aproximando começou a perceber que não suportaria estar com gente, que não sustentaria outra conversa como a da manhã, mesmo que ela não o implicasse directamente, mesmo que discorresse, do princípio ao fim, sobre inocentes expressões coloquiais, como fosse amarrar o burro, andar de monco pendurado ou ter-te comido a língua o gato. Antes que a campainha tocasse, saiu e foi almoçar a um restaurante. Voltou à escola para a segunda aula, não falou a ninguém e antes do fim da tarde estava em casa. Estendeu-se sobre o sofá, fechou os olhos, tentou deixar vazio de pensamentos o cérebro, dormir se o conseguisse, ser como uma pedra que onde a largam fica, mas nem o enorme esforço mental que fez depois para se concentrar no pedido do director logrou apagar a sombra com que teria de viver até chegar a resposta à carta que havia escrito com o nome de Maria da Paz.
Esperou quase duas semanas. Entretanto, deu aulas, telefonou duas vezes à mãe, preparou o exercício escrito para quinta-feira e esboçou aquele que iria apresentar aos alunos da outra classe, na sexta-feira informou o director de que aceitava o seu amável convite, no fim-de-semana não saiu de casa, falou pelo telefone com Maria da Paz para saber como estava e se já tinha recebido resposta, atendeu uma chamada do colega de Matemática que queria saber se havia problemas, terminou a leitura do capítulo sobre os amorreus e passou aos assírios, viu um documentário sobre as glaciações na Europa e outro sobre os antepassados remotos do homem, pensou que este momento da sua vida poderia dar um romance, pensou que seriam penas perdidas porque ninguém acreditaria em semelhante história, tornou a telefonar a Maria da Paz, mas com uma voz tão desmaiada que ela se preocupou e perguntou se podia ajudar em alguma coisa, disse-lhe que viesse e ela veio, e foram para a cama, e depois saíram para jantar, e no dia seguinte foi a vez de telefonar ela para comunicar que a resposta da empresa produtora dos filmes havia chegado, Estou a falar-te do banco, se queres passa por aqui, ou eu levo-ta logo, quando sair. A tremer por dentro, sacudido pela emoção, Tertuliano Máximo Afonso conseguiu reprimir no último instante a interrogação que em caso algum lhe conviria fazer, Abriste-a, e isso levou-o a demorar dois segundos a resposta terminante com que dissiparia qualquer dúvida que existisse sobre se estaria ou não disposto a partilhar com ela o conhecimento do conteúdo da carta, Eu vou aí. Se Maria da Paz havia imaginado uma enternecedora cena doméstica em que se visse a si mesma escutando a leitura enquanto iria bebendo em pequenos goles o chá que ela própria preparara na cozinha do homem amado, podia tirar daí o sentido. Vemo-la agora, sentada à sua pequena mesa de empregada bancária, com a mão ainda em cima do telefone que acabou de desligar, o sobrescrito de formato oblongo diante de si e dentro dele a carta que a sua honestidade não lhe vai permitir que leia porque não lhe pertence, embora ao seu nome tenha vindo dirigida. Ainda não passara uma hora quando Tertuliano Máximo Afonso entrou à pressa no banco e pediu para falar com a empregada Maria da Paz. Ali ninguém o conhecia, ninguém suspeitaria que tivesse negócios de coração e segredos de gabinete negro com a rapariga que se dirige ao balcão. Ela vira-o do fundo da grande sala onde tem o seu pouso de trabalhadora dos números, por isso já traz a carta na mão, Aqui a tens, diz, não se saudaram, não se desejaram um ao outro boas tardes, não disseram Olá como estás, nem coisa nenhuma dessas, havia uma carta para entregar e já está entregue, ele diz, Até logo, depois telefono, e ela, cumprida a parte que lhe havia cabido nas operações de distribuição postal urbana, regressa ao seu lugar, indiferente à atenção desconfiada de um colega mais velho que há tempos lhe andou a rondar a saia sem resultado e que a partir daí, por despeito, a tem sempre debaixo de olho. Na rua, Tertuliano Máximo Afonso caminha rapidamente, quase corre, deixou o carro num estacionamento subterrâneo a três quarteirões de distância, não leva a carta na pasta, mas num bolso interior do casaco, por medo de que lha possa arrebatar algum pequeno díscolo desencaminhado, como em tempos passados se chamava aos rapazes criados na libertinagem da rua, depois anjos de cara suja, depois rebeldes sem causa, hoje delinquentes que não beneficiam de eufemismos nem de metáforas. Vai dizendo a si mesmo que não abrirá a carta enquanto não chegar a casa, que já tem idade para não se portar como um adolescente ansioso, mas, ao mesmo tempo, sabe que estes seus adultos propósitos se vão evaporar quando estiver dentro do carro, na meia penumbra do estacionamento, com a porta fechada a defendê-lo das mórbidas curiosidades do mundo. Tardou a encontrar o sítio onde havia deixado o automóvel, o que agravou o estado de angústia nervosa em que já vinha, parecia o pobre homem, mal comparado, um cão largado no meio do deserto, olhando perdido a um lado e a outro, sem ao menos um cheiro conhecido para o guiar até casa, O nível é este, disso tenho eu a certeza, mas na verdade não a tinha. Por fim lá encontrou o carro, havia estado por três vezes a meia dúzia de passos dele e não o vira. Entrou rapidamente como se viesse a ser perseguido, fechou a porta e trancou-a, acendeu a luz interior. Tem o sobrescrito nas mãos, finalmente, é o momento de conhecer o que ele traz dentro, assim como o comandante de navio, atingido o ponto em que as coordenadas se cruzam, abre a carta de prego para saber que rumo terá de seguir daí por diante. Do sobrescrito saem uma fotografia e uma folha de papel. A fotografia é de Tertuliano Máximo Afonso, mas tem a assinatura de Daniel Santa-Clara por baixo das palavras Muito cordialmente. Quanto à folha de papel, não só informa que Daniel Santa-Clara é o nome artístico do actor António Claro como, adicionalmente e a título excepcional, dá a direcção da sua residência particular, Em atenção à consideração especial que a sua carta nos mereceu, assim está escrito. Tertuliano Máximo Afonso recorda os termos em que a redigiu e felicita-se pela brilhante ideia de sugerir à produtora a realização de um estudo sobre a importância dos actores secundários, Atirei o barro à parede e ficou pegado, murmurou, ao mesmo tempo que se deu conta, sem surpresa, de que o seu espírito recuperara a calma antiga, de que o seu corpo está distendido, nenhum vestígio de nervosismo, nenhum sinal de angústia, o afluente veio simplesmente dar ao rio, o caudal deste aumentou, Tertuliano Máximo Afonso sabe agora que rumo deve tomar. Tirou da bolsa lateral da porta do carro um roteiro da cidade e procurou a rua onde Daniel Santa-Clara vive. Está situada num bairro que não conhece, pelo menos não se lembra de por lá ter passado alguma vez, e ainda por cima encontra-se longe do centro, como acaba de verificar no mapa que desdobrou sobre o volante. Não importa, tem tempo, tem todo o tempo do mundo. Saiu para pagar o estacionamento, voltou ao carro, apagou a luz do tejadilho e arrancou. O seu objectivo, como facilmente se adivinha, é a rua onde mora o actor. Quer ver o prédio, olhar de baixo o andar em que ele vive, as janelas, que tipo de gente habita o bairro, que ambiente, que estilo, que modos. O trânsito é denso, os automóveis movem-se com lentidão exasperante, mas Tertuliano Máximo Afonso não se impacienta, não há nenhum perigo de que a rua aonde se dirige mude de lugar, está prisioneira da rede viária da cidade que por todos os lados a cerca, como muito bem se pode confirmar neste mapa. Foi durante a espera num sinal vermelho, enquanto Tertuliano Máximo Afonso acompanhava com toques ritmados dos dedos no aro do volante uma canção sem palavras, que o senso comum entrou no carro. Boas tardes, disse, Não te chamei cá, respondeu o condutor, Realmente não me lembro de que algum dia me tenhas pedido para vir, Até o faria se não conhecesse de antemão os teus discursos, Como hoje, Sim, vais dizer-me que pense bem, que não me meta nisto, que é uma imprudência de todo o tamanho, que nada me garante que o diabo não esteja atrás da porta, a conversa de sempre, Pois desta vez enganas-te, o que vais fazer não é uma imprudência, é uma estupidez, Uma estupidez, Sim senhor, uma estupidez, e das grossas, Não vejo em quê, É natural, uma das formas secundárias da cegueira de espírito é precisamente a estupidez, Explica-te, Não é necessário que me digas que te diriges à rua onde mora o teu Daniel Santa-Clara, é curioso, o gato tinha o rabo de fora e tu não reparaste, Que gato, que rabo, deixa as adivinhas e vai direito ao assunto, É muito simples, foi do apelido Claro que se criou o pseudónimo Santa-Clara, Não é pseudónimo, é nome artístico, Já o outro também não quis a vulgaridade plebeia do pseudónimo, chamou-lhe heterónimo, E de que me serviria ter visto o rabo do gato, Reconheço que não muito, à mesma terias de procurar, mas, indo aos Claros da lista telefónica, acabarias por acertar, Já tenho o que me interessa, E agora vais à rua onde ele mora, vais ver o prédio, olhar de baixo o andar em que vive, as janelas, que tipo de gente habita o bairro, que ambiente, que estilo, que modos, foram estas, se não me equívoco, as tuas palavras, Sim, Imagina agora que quando estiveres a olhar as janelas te aparece a uma delas a mulher do actor, enfim, falemos com respeito, a esposa desse António Claro, e te pergunta por que não sobes, ou então, pior ainda, aproveita para te pedir que vás à farmácia comprar uma caixa de aspirinas ou um xarope para a tosse, Disparate, Se te parece disparate, imagina agora que alguém passa e te cumprimenta, não como este Tertuliano Máximo Afonso que és, mas como o António Claro que nunca serás, Outro disparate, Então, se também esta hipótese é disparate, imagina que quando estás no passeio a olhar as janelas ou a estudar o estilo dos moradores te aparece pela frente, em carne e osso, o Daniel Santa-Clara, e os dois ficam a olhar-se iguais a dois cãezinhos de porcelana, cada um como reflexo do outro, mas um reflexo diferente, pois este, ao contrário do que faz o espelho, mostraria o esquerdo onde está o esquerdo e o direito onde está o direito, tu como reagirias se tal acontecesse. Tertuliano Máximo Afonso não respondeu logo, esteve calado durante dois ou três minutos, depois disse, A solução será não sair do carro, Mesmo assim, se eu estivesse no teu lugar não me fiaria, objectou o senso comum, podes ter de parar num sinal vermelho, pode haver um engarrafamento, uma camioneta a descarregar, uma ambulância a carregar, e tu ali posto em exposição, como um peixe no aquário, à mercê de que a adolescente cinéfila e curiosa residente no primeiro andar do prédio onde moras te pergunte qual é o teu próximo filme, Que farei, então, Isso não sei, não é da minha competência, o papel do senso comum na história da vossa espécie nunca foi além de aconselhar cautela e caldos de galinha, principalmente nos casos em que a estupidez já tomou a palavra e ameaça tomar as rédeas da acção, O remédio seria disfarçar-me, De quê, Não sei, terei de pensar, Pelos vistos, para seres quem és, a única possibilidade que te resta é a de que pareças ser outro, Tenho de pensar, Sim, já era tempo, Sendo assim, o melhor é ir para casa, Se não te incomoda, leva-me até à porta, depois cá me arranjarei, Não queres subir, Até hoje nunca me tinhas convidado, Estou a convidar-te agora, Obrigado, mas não devo aceitar, Porquê, Porque também não é saudável para o espírito viver de casa e pucarinho com o senso comum, comer com ele à mesa, dormir com ele na cama, levá-lo ao trabalho, pedir-lhe a sua aprovação ou consentimento antes de dar um passo, alguma coisa tereis de arriscar por vossa própria conta, A quem te referes, A vocês todos, ao género humano, Arrisquei-me a conseguir esta carta e tu nessa altura repreendeste-me, Não há nada que possa orgulhar-te no modo como a conseguiste, apostar na honestidade de uma pessoa como tu o fizeste é uma forma de chantagem bastante repugnante, Falas da Maria da Paz, Sim, falo da Maria da Paz, se eu estivesse no seu lugar abria a carta, lia-a e dava-te com ela na cara até que implorasses perdão de joelhos, Assim procede o senso comum, Assim deveria proceder, Adeus, até outro dia, vou pensar no meu disfarce, Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio. Tertuliano Máximo Afonso encontrou um lugar livre quase à porta do prédio onde morava, arrumou o carro, recolheu o mapa e o roteiro, e saiu. No passeio do outro lado da rua, havia um homem de cara levantada, a olhar para os andares altos em frente. Não tinha quaisquer parecenças de cara ou de figura, a sua presença ali não passaria de uma casualidade, mas Tertuliano Máximo Afonso sentiu um arrepio na espinha ao passar-lhe pela cabeça, não o pôde evitar, a doentia imaginação teve mais força que ele, a possibilidade de que Daniel Santa-Clara andasse à sua procura, eu a ti, tu a mim. Logo arredou a incómoda fantasia, Estou a ver fantasmas, o tipo nem sequer sabe que eu existo, a verdade, porém, é que ainda lhe tremiam os joelhos quando entrou em casa e se deixou cair exausto no sofá. Durante uns minutos esteve imerso numa espécie de sopor, ausentado de si mesmo, como um maratonista cuja força de repente se esgotou ao pisar a linha de chegada. Da energia tranquila que o animava quando saiu do estacionamento e quando, depois, levava o automóvel a um destino que acabara por ver-se frustrado, não tinha ficado mais que uma recordação difusa, de algo não realmente vivido, ou que o havia sido por aquela parte de si agora ausente. Levantou-se com dificuldade, as pernas pareciam-lhe estranhas, como se pertencessem a outra pessoa, e foi à cozinha fazer um café. Bebeu-o em goles vagarosos, consciente da quentura reconfortante que lhe descia pela garganta até ao estômago, depois lavou a chávena e o pires, e voltou à sala. Todos os seus gestos se haviam tornado meditados, lentos, como se estivesse ocupado a manipular substâncias perigosas num laboratório de química, e contudo nada mais tinha que fazer que abrir a lista telefónica na letra C e confirmar as informações que constavam da carta. E depois, que faço, perguntou-se, enquanto ia passando as páginas até encontrar. Havia muitos Claros, mas os Antónios não eram além de meia dúzia. Aqui estava, finalmente, o que tanto trabalho lhe tinha custado, tão fácil que o podia ter feito qualquer pessoa, um nome, uma morada, um número de telefone. Copiou os dados para um papel e repetiu a pergunta, E agora, que faço. Num acto reflexo, levou a mão direita ao auscultador, deixou-a ficar ali enquanto relia uma vez e outra o que havia apontado, depois retirou-a, levantou-se e deu uma volta pela casa, discutindo consigo mesmo que o mais sensato seria deixar a continuação do assunto para depois de acabados os exames, dessa maneira teria de haver-se com uma preocupação a menos, infelizmente tinha-se comprometido com o director da escola a redigir o projecto de proposta sobre o ensino da História, não podia escapar a essa obrigação, Mais dia menos dia não terei outro remédio que pôr mãos a um trabalho de que ninguém vai fazer caso, foi uma rematada estupidez ter aceitado o encargo, porém, não valia a pena fingir que estava a enganar-se a si mesmo, parecer que admitia a hipótese de remeter só para depois do trabalho da escola o primeiro passo no caminho que o deverá levar a António Claro, já que Daniel Santa-Clara, em rigor, não existe, é uma sombra, um títere, um vulto variável que se agita e fala dentro de uma cassete de vídeo e que regressa ao silêncio e à imobilidade quando acaba o papel que lhe ensinaram, ao passo que o outro, esse António Claro, é real, concreto, tão consistente como Tertuliano Máximo Afonso, o professor de História que vive nesta casa e cujo nome pode ser encontrado na letra A da lista telefónica, por muito que alguns afirmem que Afonso não é apelido, mas nome próprio. Está outra vez sentado à secretária, tem o papel com as notas que tomou diante de si, tem a mão direita novamente sobre o auscultador, dá a ideia de que se decidiu finalmente a telefonar, mas quanto tarda a resolver-se este homem, que vacilante, que irresoluto nos saiu, ninguém dirá que é a mesma pessoa que ainda não há multas horas quase arrancou a carta das mãos de Maria da Paz. Num repente, sem pensar, como única maneira de vencer a cobardia paralisante, o número foi marcado. Tertuliano Máximo Afonso escuta o toque da campainha, uma vez, duas vezes, três, muitas, e no momento em que vai para desligar, pensando, com metade de alívio e metade de decepção, que não há ninguém para atender, uma mulher, ofegando como se tivesse vindo a correr do outro extremo da casa, disse simplesmente, Estou, Uma súbita contracção muscular constringiu a garganta de Tertuliano Máximo Afonso, a resposta demorou, deu tempo a que a mulher repetisse, impaciente, Estou, quem fala, por fim o professor de História conseguiu pronunciar quatro palavras, Boas tardes, minha senhora, mas a mulher, em lugar de responder no tom reservado de quem se dirige a um desconhecido de quem ainda por cima não pode ver a cara, disse com um sorriso que transparecia em cada palavra, Se é para disfarçar, não te canses, Desculpe, balbuciou Tertuliano Máximo Afonso, eu vinha só pedir uma informação, Que informação pode querer uma pessoa que conhece tudo da casa para onde ligou, O que eu desejava saber é se é aí que mora o actor Daniel Santa-Clara, Meu caro senhor, eu me encarregarei de comunicar ao actor Daniel Santa-Clara, quando ele chegar, que António Claro telefonou a perguntar se os dois moravam aqui, Não compreendo, começou a dizer Tertuliano Máximo Afonso para ganhar tempo, mas a mulher adiantou-se abruptamente, Não te reconheço, não é teu costume teres brincadeiras destas, diz de uma vez o que queres, a filmagem atrasou-se, é isso, Desculpe, minha senhora, há aqui um engano, eu não me chamo António Claro, Não é o meu marido, perguntou ela, Sou só uma pessoa que desejava saber se o actor Daniel Santa-Clara mora nessa casa.