O homem duplicado - Jose´ Manuel Arribas A´lvarez 16 стр.


As contas eram fáceis de fazer. Se alguém nos afirma que escreveu uma carta e ela nos aparece depois com a assinatura de outra pessoa, por uma de duas hipóteses haverá que optar, ou esta segunda pessoa a escreveu a pedido da primeira, ou aquela primeira, por razões que a António Claro falta conhecer, falseou o nome da segunda, Daqui não há que sair. Como quer que seja, considerando que a morada inscrita no remetente da carta não é a da primeira pessoa, mas sim a da segunda, a quem a resposta da produtora tinha evidentemente de ser endereçada, considerando que todos os passos resultantes do conhecimento do seu conteúdo foram dados pela primeira e nem um só pela segunda, as conclusões a extrair deste caso são, mais do que lógicas, transparentes. Em primeiro lugar, é óbvio, patente e manifesto que as duas partes se puseram de acordo para levar a cabo a mistificação epistolar, em segundo lugar, por razões que António Claro igualmente ignora, que o objectivo da primeira pessoa era ficar na sombra até ao último momento, e o conseguiu. Foi a dar voltas a estas induções elementares que António Claro consumiu os três dias que a carta que lhe foi enviada pela enigmática Maria tardou em chegar. Vinha acompanhada de um cartão com as seguintes palavras, manuscritas, mas sem assinatura, Espero que lhe sirva para alguma coisa. Era esta precisamente a pergunta que António Claro dirigia agora a si mesmo, E depois disto, que faço eu. No entanto, há que dizer que, se à presente situação aplicássemos a teoria dos filtros ou coadores de palavras, aqui perceberíamos a presença de um depósito, de uma lia, de um sedimento, ou simplesmente de umas borras, como assim as prefere classificar a mesma Maria a quem António Claro se atreveu a chamar, só ele saberá com que intenções, primeiro, canário, e depois rouxinol, as quais borras, dizíamos, agora que já estamos instruídos no respectivo processo de análise, denunciam a existência de um propósito, talvez ainda impreciso, difuso, mas que apostamos a cabeça não se teria apresentado se a carta recebida estivesse assinada, não por uma mulher, mas por um homem. Quer-se dizer que se Tertuliano Máximo Afonso tivesse, por exemplo, um amigo de confiança, e tivesse combinado com ele a sinuosa estrangeirinha, Daniel Santa-Clara teria simplesmente rasgado a carta porque a consideraria um pormenor sem importância em relação ao fundo da questão, isto é, a igualdade absoluta que os aproxima e ao passo em que vamos muito provavelmente os separará. Mas, ai de nós, a carta vem assinada por uma mulher, Maria da Paz é o seu nome próprio, e António Claro, que no exercício da profissão nunca foi aprovado para desempenhar um papel de galã sedutor, nem sequer dos de nível subalterno, esforça-se o mais que pode por encontrar algumas compensações equilibradoras na vida prática, ainda que nem sempre com auspiciosos resultados, como ainda recentemente tivemos ocasião de verificar naquele episódio da empregada da produtora, convindo esclarecer, já agora, que, se não se fez antes referência a estas suas propensões amatórias, foi somente porque não vinham a propósito dos sucessos então narrados. Sendo, porém, as acções humanas, no geral, determinadas por uma concorrência de impulsos provenientes de todos os pontos cardeais e colaterais do sujeito de instintos que até agora não deixámos de ser, a par, evidentemente, de alguns factores racionais que, não obstante todas as dificuldades, ainda vamos conseguindo introduzir na teia motivadora, e, uma vez que nas ditas acções tanto entra o mais puro como o mais sórdido e tanto conta a honestidade como a prevaricação, não estaríamos usando de justiça com António Claro se não aceitássemos, ainda que com carácter provisório, a explicação que sem dúvida nos prestaria acerca do perceptível interesse que está a demonstrar pela signatária da carta, isto é, a natural curiosidade, muito humana também, de saber que tipo de relações existem entre um Tertuliano Máximo Afonso, seu autor intelectual, e, assim pensa ele, a sua autora material, essa tal Maria da Paz. Bastas ocasiões temos tido para reconhecer que perspicácia e alcance de vistas são qualidades que não faltam a António Claro, mas o certo é que nem o mais subtil dos investigadores que na ciência da criminologia deixaram rasto seria capaz de imaginar que, neste irregular assunto, e contra todas as evidências, sobretudo as documentais, o autor moral e o autor material do engano são uma e a mesma pessoa. Duas hipóteses óbvias pedem para ser consideradas, por esta ordem e subindo de menos a mais, a de que sejam simplesmente amigos e a de que sejam simplesmente amantes. António Claro inclina-se para esta última hipótese, em primeiro lugar por ser a mais conforme aos enredos sentimentais de que se limita a ser testemunha nos filmes em que costuma entrar, em segundo lugar, e por consequência, porque nela se encontra em território conhecido e com roteiros traçados. É a altura de perguntar se Helena tem conhecimento do que se está a passar aqui, se António Claro um destes dias teve a atenção de a informar da sua ida à produtora, da busca no registo e do diálogo com a inteligente e aromática empregada Maria, se lhe mostrou ou vai mostrar a carta assinada por Maria da Paz, se, enfim, como esposa, a fará participar do perigoso vaivém de pensamentos que lhe anda a cruzar a cabeça. A resposta é não, três vezes não. A carta chegou ontem de manhã, e a única preocupação que nesse momento teve António Claro foi procurar um sítio onde ninguém a pudesse descobrir. Já ali está, espalmada entre as páginas de uma História do Cinema que não tornou a despertar o interesse de Helena depois que, salteando muito, a leu nos primeiros meses do casamento. Por respeito à verdade, devemos dizer que António Claro, até agora, e apesar das inúmeras voltas dadas ao assunto, não conseguiu chegar a um traçado razoavelmente satisfatório de um plano de acção merecedor desse nome. No entanto, o privilégio de que gozamos, este de saber tudo quanto haverá de suceder até à última página deste relato, com excepção do que ainda vai ser preciso inventar no futuro, permite-nos adiantar que o actor Danjel Santa-Clara fará amanhã uma chamada telefónica para casa de Maria da Paz, nada mais que para saber se há alguém, não esquecer que estamos no verão, tempo de férias, mas não pronunciará uma palavra, da sua boca não sairá um único som, silêncio total, para que não suceda criar-se uma confusão, por parte de quem do outro lado estiver, entre a sua voz e a de Tertuliano Máximo Afonso, caso em que provavelmente não teria outro remédio, para disfarçar, que assumir a identidade dele, com imprevisíveis consequências no actual estado de coisas. Por mais inesperado que possa parecer, daqui a poucos minutos, antes que Helena regresse do emprego, e também para saber se está ausente, telefonará para casa do professor de História, mas as palavras não irão faltar desta vez, António Claro já leva o discurso preparado, quer haja quem o escute de lá, quer tenha de falar para o gravador. Eis o que dirá, eis o que está dizendo, Boas tardes, fala António Claro, imagino que não estaria à espera de uma chamada minha, realmente o contrário é que me surpreenderia, suponho que não se encontra em casa, se calhar a gozar férias na província, é natural, estamos no tempo delas, seja como for, ausente ou não, venho pedir-lhe um grande favor, o favor de me telefonar logo que regresse, sinceramente penso que ainda temos muitas coisas para dizer um ao outro, creio que nos deveríamos encontrar, não na minha casa de campo, que está francamente fora de mão, mas noutro sítio, num lugar discreto em que estejamos, a salvo de olhares curiosos que em nada nos beneficiariam, espero que esteja de acordo, as melhores horas para me telefonar são entre as dez da manhã e as seis da tarde, em qualquer dia excepto sábado e domingo, mas, tome nota, só até ao fim da próxima semana. Não acrescentou, Porque a partir daí, a Helena, assim se chama a minha mulher, não sei se já lho teria dito, estará em casa, são as suas férias, em todo o caso, apesar de eu não andar ocupado com filmagens, não iremos para fora. Seria o mesmo que confessar que ela não está ao corrente do que se passa, e, faltando a confiança, que é nula na presente circunstância, uma pessoa sensata e equilibrada não se vai pôr a devassar as intimidades da sua vida conjugal, sobretudo em um caso de tanta monta como este. António Claro, cuja agudeza de engenho está provado nada ficar a dever à de Tertuliano Máximo Afonso, percebe que os papéis que ambos até agora haviam estado desempenhando foram trocados, que a contar de agora é ele quem terá de disfarçar-se, e que aquilo que havia começado por parecer uma gratuita e tardia provocação do professor de História, enviar-lhe, como uma bofetada, a barba postiça, tivera afinal uma intenção, nascera de uma prescíência, anunciava um sentido. Ao lugar onde António Claro se encontrará com Tertuliano Máximo Afonso, seja ele qual for, é António Claro quem terá de ir disfarçado, e não Tertuliano Máximo Afonso. E assim como Tertuliano Máximo Afonso veio de barba postiça a esta rua para intentar ver António Claro e a mulher dele, assim de barba postiça irá também António Claro à rua onde reside Maria da Paz para descobrir que mulher é ela, assim a seguirá até ao banco e alguma vez mesmo à vista da casa de Tertuliano Máximo Afonso, assim irá ser a sua sombra pelo tempo necessário e até que a força compulsiva do que está escrito e do que se for escrevendo disponha de outra maneira. Depois do que ficou dito, compreende-se que António Claro tenha ido abrir a gaveta da cómoda onde se encontra a caixa com o bigode que em tempos que já lá vão adornou a cara de Daniel Santa-Clara, disfarce obviamente insuficiente para as actuais necessidades, a caixa de charutos vazia que desde há alguns dias guarda igualmente a barba postiça que António Claro vai usar. Também em tempos que já lá vão, houve na terra um rei considerado de grande sabedoria que, em um momento de inspiração filosófica fácil, afirmou, supõe-se que com a solenidade inerente ao trono, que debaixo do sol não havia nada de novo. A estas frases não convém Tomá-las nunca demasiado a sério, não se dê o caso de as continuarmos a dizer quando tudo à nossa volta já mudou e o próprio sol já não é o que era. Em compensação, não variaram muito os movimentos e os gestos das pessoas, não só desde o terceiro rei de Israel como também desde aquele dia imemorial em que um rosto humano se apercebeu pela primeira vez de si mesmo na superfície lisa de um charco e pensou, Este sou eu, Agora, onde estamos, aqui, onde somos, decorridos que foram quatro ou cinco milhões de anos, os gestos primevos continuam a repetir-se monotonamente, alheios às mudanças do sol e do mundo por ele iluminado, e se de algo ainda necessitássemos para ter a certeza de que assim é, bastar-nos-ia observar como, diante da lisa superfície do espelho da sua casa de banho, António Claro ajusta a barba que havia sido de Tertuliano Máximo Afonso com os mesmos cuidados, a mesma concentração de espírito, e talvez um temor semelhante àqueles com que ainda não há muitas semanas Tertuliano Máximo Afonso, noutra casa de banho e diante de outro espelho, havia desenhado o bigode de António Claro na sua própria cara. Menos seguros porém de si mesmos que o seu bruto antepassado comum, não caíram na ingénua tentação de dizer, Este sou eu, é que desde então os medos mudaram muito e as dúvidas ainda mais, agora, aqui, em vez de uma afirmação confiante, o único que nos sal da boca é a pergunta, Este quem é, e a ela nem mais quatro ou cinco milhões de anos conseguirão provavelmente dar resposta. António Claro despegou a barba e foi guardá-la na caixa, Helena não tardará, cansada do trabalho, ainda mais silenciosa que de costume, parecerá que se move pela casa como se ela não fosse sua, como se os móveis lhe fossem estranhos, como se as esquinas e as arestas deles não a reconhecessem e, iguais a ciosos cães de guarda, ameaçadoramente rosnassem à sua passagem. Uma certa palavra do marido talvez pudesse mudar as coisas, mas já sabemos que nem António Claro nem Daniel Santa-Clara chegarão a pronunciá-la. Talvez não queiram, talvez não possam, todas as razões do destino são humanas, unicamente humanas, e quem, fundando-se em lições do passado, prefira dizer o contrário, seja em prosa, seja em verso, não sabe do que fala, com perdão do atrevido juízo.

No dia seguinte, depois de Helena ter saído, António Claro ligou para casa de Maria da Paz. Não se sentia especialmente nervoso ou excitado, o silêncio iria ser o seu escudo protector. A voz que de lá respondeu era baça, com a fragilidade hesitante de quem está convalescente de uma incomodidade física, e, sendo embora, por todos os indícios, de uma mulher já de certa idade, não soa tão quebradiça como a de uma velha, ou uma anciã, para quem prefira os eufemismos. Não foram muitas as palavras que pronunciou, Está lá, está, quem fala, faça o favor de responder, está, está, que falta de respeito, nem em sua própria casa uma pessoa pode estar tranquila, e desligou, mas Daniel Santa-Clara, apesar de não orbitar no sistema solar dos actores de primeira grandeza, tem um excelente ouvido, para parentescos neste caso, por isso não lhe deu nenhum trabalho deduzir que a idosa senhora, se não é a mãe, é a avó, e se não é a avó, é a tia, com exclusão radical, por se encontrar francamente fora das realidades actuais, daquele gasto tópico literário da criada velha que por amor aos seus amos não se casou. Evidentemente, só por uma questão de método, falta ainda averiguar se há homens na casa, um pai, um avô, algum tio, algum irmão, mas com tal possibilidade não terá por que preocupar-se muito António Claro, uma vez que, em tudo e para tudo, para a saúde e para a doença, para a vida e para a morte, não é como Daniel Santa-Clara que irá aparecer a Maria da Paz, mas como Tertuliano Máximo Afonso, e esse, quer como amigo, quer como amante, se não lhe abriram a porta de par em par, deverá, pelo menos, desfrutar das vantagens de um estatuto relacional tacitamente reconhecido. Se a António Claro perguntássemos qual seria a sua preferência, de acordo com os fins que tem em vista, quanto à natureza da relação de Tertuliano Máximo Afonso e de Maria da Paz, se a de amantes, se a de amigos, não tenhamos dúvidas de que nos responderia que se essa relação fosse simplesmente de amizade não teria, para si, nem a metade do interesse que se fossem amantes. Como se pode ver, o plano de acção que António Claro tinha vindo a delinear não só avançou muito na localização dos objectivos como principia a ganhar a consistência de motivos que lhe faltava, embora tal consistência, salvo grave equívoco de interpretação da nossa parte, pareça ter sido conseguida graças a malévolas ideias de desforra pessoal que a situação, tal como se nos apresentava, não prometia nem de modo algum justificava. É verdade que Tertuliano Máximo Afonso desafiou frontalmente Daniel Santa-Clara quando, sem uma palavra, e isso foi talvez o pior, lhe despachou a barba postiça, mas com um pouco de senso comum as coisas poderiam ter ficado por aí, António Claro poderia ter encolhido os ombros e dizer para a mulher, O tipo é imbecil, se pensou que eu me deixaria levar pela provocação, estava muito enganado, atira-me esta porcaria para o caixote do lixo, e se cai na asneira de insistir com disparates destes, chama-se a polícia e acaba-se de uma vez a história, sejam quais forem as consequências. Infelizmente, o senso comum nem sempre aparece quando é necessário, não sendo poucas as vezes em que de uma sua ausência momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras. A prova de que o universo não foi tão bem pensado quanto conviria está no facto de ter o Criador mandado chamar sol à estrela que nos ilumina. Levasse o astro-rei o nome de Senso Comum e já veríamos como andaria hoje esclarecido o espírito humano, e isto tanto no que se refere ao diurno como ao nocturno, porque, não há quem o ignore, a luz que dizemos da lua, luz da lua não é, mas sempre, e unicamente, luz do sol. É caso para pensar que se tantas foram as cosmogonias criadas desde o nascimento da fala e da palavra foi porque todas e] as, uma por uma, falharam miseravelmente, regularidade essa que não augura nada de bom à que, com algumas variações, nos vem consensualmente regendo… Voltemos, porém, a António Claro. Está visto que ele quer, e o mais depressa possível, conhecer Maria da Paz, por más razões meteu-se-lhe a obsessiva vindicação na cabeça, e, como decerto já se terá percebido, não há nem no céu nem na terra forças que daí o consigam arredar. Não poderá, evidentemente, ir postar-se à porta do prédio onde ela vive e perguntar a cada mulher que venha entrando ou saindo, É você a Maria da Paz, também não poderá confiar-se às mãos dos fortuitos acasos da sorte, por exemplo, ir passear uma, duas, três vezes à rua em que ela mora, e à terceira vez dizer à primeira mulher que lhe aparecer pela frente, Você tem cara de ser Maria da Paz, não pode imaginar o enorme prazer que sinto por finalmente a conhecer, sou actor de cinema e chamo-me Daniel Santa-Clara, permita-me que a convide a tomar um café, é só atravessar a rua, estou convencido de que iremos ter muito para dizer um ao outro, a barba, ali sim, a barba, felicito-a por ser tão arguta e não se deixar enganar, mas rogo-lhe que não se assuste, esteja tranquila, quando nos encontrarmos num sítio discreto, um sítio em que eu a possa tirar sem perigo, verá como diante de si vai aparecer uma pessoa a quem conhece bem, creio até que intimamente, e a quem eu, sem a mínima inveja, felicitaria agora mesmo se aqui estivesse, o nosso Tertuliano Máximo Afonso. A pobre senhora ficaria terrivelmente confundida perante a prodigiosa transmutação, inexplicável a todos os títulos nesta altura da narrativa, é indispensável ter sempre presente a ideia condutora fundamental de que as coisas deverão aguardar o seu momento com paciência, não empurrar nem estender o braço por cima do ombro das que chegaram primeiro, não gritar, Aqui estou eu, ainda que não seja de desprezar totalmente a hipótese de que, se uma vez por outra, as deixássemos passar à frente, talvez certos males que se adivinham perdessem parte da virulência, ou se desvanecessem como fumo no ar, por um motivo tão banal como terem perdido a sua vez, Este derramar de considerações e análises, este espraiar complacente de reflexões e derivados em que ultimamente nos temos demorado, não deverão fazer perder de vista a prosaica realidade de que, no fundo, no fundo, o que António Claro quer saber é se Maria da Paz vai valer a pena, se vai realmente valer o trabalho que lhe está a dar. Fosse ela uma mulher desgraciosa, um pau-de-virar-tripas ou, pelo contrário, sofresse de uma excessiva abundância de volumes, o que, tanto num caso como no outro, apressemo-nos já a dizer, não constituiria obstáculo de maior se o amor tivesse posto o resto, e aí veríamos Daniel Santa-Clara a voltar rapidamente para trás, como tantas vezes terá acontecido em tempos passados, naqueles encontros que se tratavam por carta, as estratégias ridículas, as identificações ingénuas, eu levarei uma sombrinha azul na mão direita, eu levarei uma flor branca na botoeira, e finalmente nem sombrinha nem flor, talvez um deles esperando em vão no lugar combinado, ou então nem um nem outro, a flor atirada precipitadamente para a valeta, a sombrinha a esconder um rosto que afinal não quis ser visto. Que vá, porém, Daniel Santa-Clara tranquilo, Maria da Paz é uma mulher jovem, bonita, elegante, bem torneada no corpo e bem feita no carácter, atributo este, em todo o caso, não determinante na matéria em exame, uma vez que a balança em que antes se decidia a sorte da sombrinha e o destino da flor não é hoje especialmente sensível a ponderações dessa natureza. No entanto, António Claro tem ainda uma questão importante para resolver se não quiser passar horas e horas pespegado no passeio em frente da casa de Maria da Paz à espera de que ela apareça, com as fatais e perigosas consequências resultantes da natural desconfiança dos vizinhos, que não levariam muito tempo a telefonar à polícia avisando da presença suspeita de um homem de barbas que com certeza não veio aqui para segurar o prédio com as costas. Há que recorrer, por conseguinte, ao raciocínio e à lógica. O mais provável, evidentemente, é que Maria da Paz trabalhe, que tenha um emprego regular e horas certas de entrar e sair. Como Helena. António Claro não quer pensar em Helena, a si mesmo repete que uma coisa não tem nada que ver com a outra, que o que se passar com Maria da Paz não irá pôr em risco o seu casamento, até se lhe poderia chamar um mero capricho, desses a que se diz serem facilmente sujeitos os homens, se as palavras mais exactas, no caso presente, não fossem antes as de desforra, desforço, despique, desagravo, desafronta, represália, rancor, vindicta, se não mesmo a pior de todas, ódio. Meu Deus, que exagero, o que aí vai, dirão as pessoas felizes que nunca se viram diante de uma cópia de si mesmas, que nunca receberam a insolente desfeita de uma barba postiça dentro de uma caixa e sem, ao menos, um bilhete com uma palavra simpática ou bem-humorada que amenizasse o choque. O que neste momento acaba de passar pela cabeça de António Claro vai mostrar até que ponto, contra o mais elementar bom senso, uma mente dominada por sentimentos inferiores é capaz de obrigar a própria consciência a pactuar com eles, forçando-a, ardilosamente, a por as piores acções em harmonia com as melhores razões e a justificá-las umas pelas outras, numa espécie de jogo cruzado em que sempre o mesmo terá de ganhar ou de perder. O que António Claro acabou de pensar, por incrível que nos pareça, foi que levar a amante de Tertuliano Máximo Afonso para a cama à falsa fé, além de responder à bofetada com uma bofetada mais sonora, será, imagine-se o absurdo propósito, a mais drástica maneira de desagravar a dignidade ofendida de Helena, sua mulher. Ainda que lho rogássemos com todo o empenho, António Claro não nos saberia explicar que ofensas tão singulares teriam sido essas que só uma nova e não menos chocante ofensa poderia supostamente desagravar. Ele tem esta ideia fixa, não há nada a fazer por agora. Já não é pouco que consiga ainda tornar ao raciocínio interrompido, aquele em que se havia lembrado de Helena como similar a Maria da Paz nas suas obrigações de empregadas, aquilo do trabalho regular e das entradas e saídas a horas certas. Em lugar de andar rua acima, rua abaixo, na expectativa de um mais que improvável encontro ocasional, o que deverá fazer é ir para lá muito cedo, colocar-se num sítio onde não seja notado, esperar que Maria da Paz saia e depois segui-la até ao emprego. Nada mais fácil, dir-se-á, e, contudo, que enorme engano. A primeira dificuldade está em ignorar ele se Maria da Paz, ao sair de casa, virará à esquerda ou virará à direita, e portanto até que ponto a sua posição de vigilante, em relação quer à direcção por ela escolhida, quer ao lugar onde ele próprio deixará o carro, virá a complicar ou a facilitar a tarefa do seguimento, sem esquecer ainda, e aqui se apresenta o segundo e não menor embaraço, a possibilidade de que ela tenha o seu próprio carro estacionado à porta, não lhe dando tempo a ele para correr ao seu e meter-se no trânsito sem a perder de vista. O mais provável será que falhe em tudo no primeiro dia, que volte no segundo para falhar uma e acertar noutra, e confiar que o patrono dos detectives, impressionado pela pertinácia deste, tome a seu cuidado fazer do dia terceiro uma perfeita e definitiva vitória na arte de seguir um rasto. António Claro terá ainda um problema para resolver, é certo que relativamente insignificante em comparação com as ingentes dificuldades já solucionadas, mas que requer um tacto e uma naturalidade a toda a prova no seu tratamento. Excepto quando as obrigações do trabalho, filmagens matutinas ou em lugar afastado da cidade, lhe impõem que se arranque cedo ao conforto dos lençóis, Daniel Santa-Clara, como já se terá observado, é propenso a deixar-se ficar no choco da cama uma ou duas horas depois de Helena sair para o emprego. Terá portanto de inventar uma boa explicação para o facto insólito de se propor madrugar, não um dia, mas dois, e talvez mesmo três, quando, como sabemos, se encontra num período de pousio profissional, à espera do sinal de acção para O Julgamento do Ladrão Simpático, em que interpretará o papel de um advogado auxiliar. Dizer a Helena que tem uma reunião com os produtores não seria de todo uma má. ideia se as averiguações sobre Maria da Paz ficassem concluídas em um só dia, mas a probabilidade de que tal sorte suceda é, vistas as circunstâncias, mais do que remota. Por outro lado, os dias precisos às suas indagações não terão de ser necessariamente sucessivos, nem isso seria conveniente, pensando bem, para o fim que tem em vista, porquanto o aparecimento de um homem de barbas três dias a fio na rua onde mora Maria da Paz, além de despertar suspeitas e alarme na vizinhança, como deixámos dito antes, poderia ocasionar o renascimento de pesadelos infantis historicamente fora de tempo, portanto traumáticos a dobrar, quando tão certos estávamos de que o advento da televisão havia limpado da imaginação das crianças modernas, e de uma vez para sempre, a ameaça terrível que o homem das barbas representou para gerações e gerações de infantes inocentes. Posto a pensar nesta via, António Claro chegou rapidamente à conclusão de que não tinha qualquer sentido estar a preocupar-se com hipotéticos segundos e terceiros dias ainda antes de saber o que o primeiro teria para lhe oferecer. Dirá portanto a Helena que amanhã vai participar numa reunião de trabalho na produtora, Terei de lá estar o mais tardar às oito, Tão cedo, estranhará ela, sem demasiada ênfase, Só podia ser nesta hora, o realizador sai para o aeroporto ao meio-dia, Muito bem, disse ela, e foi-se meter na cozinha, fechando a porta, para decidir o que faria para o jantar. Tinha tempo de sobra, mas queria estar sozinha.

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