A Morta - Henrique Lopes Mendonça


Henrique Lopes de Mendonça

A MORTA

Sala de entrada nos paços de apar S. Martinho, em Lisboa. À direita, aposentos de el-rei. À esquerda, galeria com uma enfiada de portas, sendo a primeira a do aposento do corregedor Lourenço Gonçalves. Ao fundo, porta principal de entrada, dando sobre outra galeria, cujas janelas deitam para os lados do Tejo. A cena começa de dia, devendo anoitecer durante o acto, conforme as indicações das rubricas e do diálogo.

CENA I

Estêvão Lobato, em cena;

Lourenço Gonçalves, saindo dos aposentos de el-rei

Lourenço

Catarina onde está?

Estêvão

Nos vossos aposentos.
Vi-a com sua mãe, inda há poucos momentos,
Entrando para ali.

Lourenço

Valha-me Deus! A mãe,
Não a esperava já. Bem sei para o que vem.
Suspirando.
Querem roubar-me a esposa, Estêvão!

Estêvão

Quê? roubá-la?

Lourenço

Por uns dias somente! Embora! não me cala
No espírito o projecto. Inda estou noivo

Estêvão

Sim?

Lourenço

Há dois anos casado apenas

Estêvão

Quanto a mim,
O noivado de um velho é como a fruta seca;
Não tem viço nem cor, mas dura como a breca.

Lourenço

Mas velho é que eu não sou!

Estêvão

Cantai-me a palinódia!
Na vossa idade o amor é já fruta serôdia.
Por isso quando el-rei, nas fúrias de justiça,
Lança peias no amor, vós ajudais à missa.
É que as peias, a vós, há muito que a bisonha
Natureza as lançou.

Lourenço

Quê?

Estêvão

Sois como a cegonha,
Que não pode comer na escudela da zorra.

Lourenço

Ruim língua tu tens.

Estêvão

Que Deus me não socorra,
Se o que eu digo é mentira.

Lourenço

Acuda Catarina
Em defesa do esposo.

Estêvão

Apenas a fascina
Um bom pano de Arrás, ou qualquer arrebique,
Que o judeu lhe vender

Lourenço

Pois que não sacrifique
Um só desejo seu! Quero gastar à larga
Para adorná-la! Não! que eu tenho à minha ilharga
A doida mais formosa e mais gentil da corte!
Que a todos enfeitice a graça do seu porte,
E que a minha mulher a todas se avantaje
Na riqueza do adorno e nas pompas do traje!

Estêvão

Se é tal vosso desejo

Lourenço

E mais que o meu: o dela.
Inda o judeu lá está?

Estêvão faz sinal afirmativo.

Pois se não se acautela,
Arrisca-se a encontrar de noite, pelas ruas,
Um dos meus aguazis que nas espáduas nuas
Lhe ensine co tagante o caminho de asa.

Estêvão

O perro bem conhece as ordens. Não se atrasa
Após o sol poente. À custa de uns açoites,
Que uma vez apanhou, soube que são as noites
Nocivas aos judeus, fora da Judiaria.

Lourenço

Mesma para os cristãos: a noite há de ser fria,
E Catarina, embora envolta em terciopelo,
Pra que há de tiritar, caminho do Restelo?

Estêvão, à parte

Não terá mais calor no leito conjugal!

Lourenço

Coa fortuna! Inda falta a permissão real!
Se el-rei a recusasse! Eu, só por min, não tenho
Valor de resistir ao seu veemente empenho.