A conversa continuou animada durante algum tempo. Fui perdendo, pouco a pouco, o interesse por ela, pois uma estranha voz me chamava a sair da cabana. Cada vez que essa voz me chamava, eu me sentia compelido a ir por curiosidade. Eu tinha que ir. Queria saber o que significava aquela estranha voz no meu pensamento. Com delicadeza, despedi-me da senhora e pus-me a andar na direção indicada pela voz. O que me espera? Continuemos juntos, leitor.
A noite era fria, e a insistente voz permanecia na minha mente. Era um tipo de ligação estranha entre mime ela. Já tinha andado poucos metros fora da cabana, mas pareciam ser quilômetros pelo cansaço que meu corpo respirava. As instruções que eu recebia mentalmente me guiavam na escuridão. Um misto de cansaço, medo do desconhecido e curiosidade imperavam em meu ser. Quem seria a dona daquela estranha voz? O que queria comigo? A montanha e seus segredos. Desde que a conheci, aprendi a respeitá-la. A guardiã e seus mistérios, os desafios que tive de enfrentar, o encontro com o fantasma, tudo a tornavam especial. Ela não era a mais alta do Nordeste, nem a mais imponente, mas era sagrada. O mito do pajé e os meus sonhos me levaram até ela. Quero vencer todos os desafios, entrar na gruta e fazer o meu pedido. Eu serei um homem transformado. Não serei apenas eu, mas serei o homem que venceu a gruta e seu fogo. Lembro-me bem das palavras da guardiã, para não confiar muito. Lembro-me melhor ainda das palavras de Jesus que disse: Aquele que acreditar em mim terá vida eterna.
O meu risco de vida não me fará desistir dos meus sonhos. É com esse pensamento que eu permaneço com fé. A voz se tornava cada vez mais forte. Acho que estou chegando ao meu destino. Logo à frente, visualizo uma cabana. A voz me diz para eu ir lá. A cabana e a respectiva fogueira que a ilumina estão num lugar espaçoso e plano. Uma jovem alta, magra e de cabelos negros, assa um tipo de petisco em seu fogo.
Então você chegou. Eu sabia que você atenderia o meu chamado.
Quem é você? O que quer de mim?
Eu sou outra sonhadora que pretende entrar na gruta.
Que poder especial você tem para me chamar pela mente?
É telepatia, bobo. Não conhece?
Eu ouvi falar. Poderia me ensinar?
Você vai aprender um dia, mas não comigo. Diga-me que sonho traz você aqui?
Antes de tudo, meu nome é Aldivan. Eu subi a montanha em busca de encontrar minhas forças opostas. Elas definirão o meu destino. Quando alguém é capaz de controlar suas forças opostas pode realizar milagres. É disso que eu preciso para realizar o meu sonho, que é trabalhar no que gosto e, assim, fazer muitos corações sonharem. Quero entrar na gruta não apenas por mim, mas por todo o universo que me proporcionou os dons. Terei o meu lugar no mundo e assim serei feliz.
Meu nome é Nadja. Sou habitante do litoral pernambucano. Na minha terra ouvi falar dessa miraculosa montanha e de sua gruta. Imediatamente interessei-me em fazer uma viagem até aqui, mesmo pensando que tudo não passava de uma lenda. Reuni as minhas tralhas, parti, cheguei a Mimoso e subi a montanha. Eu tirei mesmo a sorte grande. Agora que estou aqui, entrarei na gruta e realizarei o meu desejo. Serei uma grande deusa, ornada de poder e riquezas. Todos me servirão. O seu sonho é apenas uma bobagem. Para que pedir pouco se podemos ter o mundo?
Você está enganada. A gruta não realiza desejos mesquinhos. Você vai fracassar. A guardiã não permitirá que você entre nela. Para entrar na gruta, é necessário vencer três desafios. Eu já conquistei duas etapas. Quantas você já venceu?
Que mané de desafio e de guardiã. A gruta só respeita o mais forte e o mais convicto. Eu realizarei os meus desejos amanhã e ninguém vai me impedir, ouviu?
Você é quem sabe. Quando quiser se arrepender será tarde demais. Bom, acho que vou indo. Preciso descansar um pouco, pois já é tarde. Quanto a você, não posso desejar boa sorte na gruta, pois quer ser maior do que Deus. Quando o ser humano chega a esse ponto, ele destrói a si mesmo.
Tudo bobagem e palavras. Nada me fará voltar atrás em minha decisão.
Vendo que ela estava irredutível afastei-me dela com pena. Como as pessoas tornam-se pequenas, às vezes. O ser humano só é digno quando luta por ideais justos e igualitários. Percorrendo a trilha, lembrei-me das vezes que fui injustiçado, por uma prova mal corrigida, ou mesmo pelo descaso dos outros. Isso me deixa inconformado. Além de tudo, a minha família é avessa ao meu sonho e não acredita em mim. Como é doloroso! Um dia eles vão me dar razão e ver que os sonhos podem ser possíveis. Nesse dia, depois que tudo passar, eu cantarei a minha vitória e glorificarei o criador. Ele me deu tudo e só exigiu que eu resplandecesse meus dons, pois, como diz a Bíblia, não se acende uma luz para colocá-la debaixo da mesa, e sim em cima para que todos aplaudam e sejam iluminados. A trilha se desfaz, logo vejo a cabana que tanto suor me custou. Preciso dormir, pois amanhã será outro dia e tenho planos para mim e o mundo. Boa noite, leitores. Até o próximo capítulo.
O tremor
Surge um novo dia. A luz aparece, a brisa da manhã acaricia os nossos cabelos, pássaros e insetos fazem a festa, a vegetação parece renascer. Isso acontece todos os dias. Esfrego os olhos, lavo o rosto, escovo os dentes e tomo um banho. Esta é a minha rotina antes do café da manhã. A mata não oferece regalias nem opções. Eu não estou acostumado. A minha mãe sempre me mimou a ponto de servir o café para mim. Tomo meu desjejum em silêncio, mas com a mente aflita. Qual será o terceiro e último desafio? O que acontecerá comigo na gruta? São tantas as perguntas sem resposta que me deixam zonzo. A manhã avança e com ela minhas palpitações, meus temores e calafrios. Quem eu era agora? Certamente não era o mesmo. Subi a montanha sagrada atrás de um destino que eu mesmo não conhecia. Encontrei a guardiã e descobri novos valores e um mundo maior do que eu jamais pensei antes. Venci dois desafios e agora só me restava o terceiro. Um terceiro frio, distante e desconhecido. As folhas ao redor da cabana levemente se moveram. Aprendi a entender a natureza e seus sinais. Alguém se aproxima.
Oh de casa! Ou melhor, oh da cabana!
De um sobressalto, mudo a direção do meu olhar e contemplo a figura misteriosa da guardiã. Ela me parece mais feliz e rosada, apesar da idade que aparenta.
Estou aqui, como me vê. Que novidades traz para mim?
Como você sabe, hoje venho anunciar o seu terceiro e último desafio. Ele será realizado no seu sétimo dia sob a montanha, pois é o prazo máximo que um mortal pode ficar sob ela. Ele é simples e consiste no seguinte: mate o primeiro ser, homem ou animal, que você encontrar ao sair da cabana nesse mesmo dia. Caso contrário, você não terá direito de entrar na gruta que realiza os desejos mais profundos. O que você me diz? Não é fácil?
Como assim? Matar? Por acaso sou um assassino?
É a única condição para você entrar na gruta. Prepare-se, pois, só faltam dois dias e.um tremor de 3,7 graus na escala Richter abala todo o topo da montanha. O tremor me deixa tonto e penso que vou desmaiar. Pensamentos e mais pensamentos me vêm à mente. Sinto minhas forças se esgotando e algemas que prendem com força minhas mãos e meus pés. Num rápido momento, vejo-me escravo, trabalhando em cafezais dominados por senhores. Vejo o chicote, o sangue e o clamor dos meus companheiros. Vejo a riqueza dos coronéis, seu orgulho e sua perfídia. Vejo também o grito por liberdade e por justiça dos oprimidos. Ó, como o mundo é injusto! Enquanto uns vencem, outros apodrecem esquecidos. As algemas quebram. Eu estou parcialmente livre. Ainda sou discriminado, odiado e injustiçado. Ainda vejo a maldade dos brancos me chamando de negro. Continuo me sentindo inferior. Ouço novamente gritos de clamor, mas agora a voz é clara, nítida e conhecida. O tremor desaparece e pouco a pouco retomo a consciência. Alguém me levanta. Ainda um pouco tonto, exclamo:
O que aconteceu?
A guardiã, em prantos, parece não achar resposta.
Meu filho, a gruta acaba de destruir um outro coração. Por favor, vença o terceiro desafio e acabe com essa maldição. O universo conspira para sua vitória.
Eu não sei como vencer. Somente a luz do Criador pode iluminar meus pensamentos e minhas ações. Eu garanto: não desistirei facilmente dos meus sonhos.
Eu confio em você e na educação que teve. Boa sorte, filho de Deus! Até a próxima!
Dito isso, a estranha senhora se afastou e foi envolvida numa fumaça. Eu agora estava só e precisava me preparar para o último desafio.
Um dia antes do último desafio
Já faz seis dias que subi a montanha. Todo esse tempo de desafios e experiências me fizeram crescer muito. Posso entender a natureza, a mim mesmo e aos outros. A natureza marcha em um ritmo próprio e avessa às pretensões do ser humano. Nós desmatamos, poluímos as águas, jogamos gases na atmosfera. O que ganhamos com isso? O que realmente importa para nós, o dinheiro ou a sobrevivência? As consequências estão aí: aquecimento global, redução da fauna e flora, desastres naturais. Será que o ser humano não enxerga que tudo isso é culpa dele? Ainda há tempo. Há tempo para a vida. Faça sua parte: economize água e energia, recicle o lixo, não polua o ambiente. Exija dos seus governantes um comprometimento com a questão ambiental. É o mínimo que devemos fazer por nós e pelo mundo.
Voltando à minha aventura, depois que subi a montanha, passei a entender melhor os meus desejos e os meus limites. Compreendi que os sonhos só se tornam possíveis se forem nobres e justos. A gruta é justa e, se eu vencer o terceiro desafio realizará o meu sonho. Quando venci o primeiro e o segundo desafios, passei a entender melhor os desejos do próximo. A maioria das pessoas sonha em ter riquezas, prestígio social e altas funções de comando. Elas deixam de enxergar o que há de melhor na vida: a realização profissional, o amor e a felicidade. O que torna o ser humano realmente especial são suas qualidades que resplandecem através de suas obras. Poder, riqueza, ostentação social não fazem ninguém feliz. É isso que procuro na montanha sagrada: felicidade e o total domínio sobre as forças opostas. Preciso sair um pouco. Passo a passo, meus pés me levam para fora da cabana que construí. Espero um sinal do destino.
O sol esquenta, o vento fica mais forte e nenhum sinal aparece. Como vencerei o terceiro desafio? Como conviver com o fracasso caso eu não consiga realizar o meu sonho? Tento afastar os pensamentos negativos, mas o medo é mais forte. Quem eu era antes de subir a montanha? Um jovem totalmente inseguro, com medo de enfrentar o mundo e as pessoas. Um jovem que um dia lutou na Justiça por seus direitos, mas não foi atendido. O futuro mostrou-me que foi melhor assim. Às vezes, ganhamos ao perder. A vida me ensinou isso. Alguns pássaros gritam ao meu redor. Eles parecem entender minha preocupação. Amanhã será um novo dia, o sétimo sob a montanha. O meu destino estará em jogo no terceiro desafio. Rezem, leitores, para que eu o vença.
O terceiro desafio
Um novo dia amanhece. A temperatura é agradável, e o céu é azul em toda sua imensidão. Preguiçosamente, levanto-me esfregando os olhos de sonolência. O grande dia chegou, estou preparado para ele. Antes de qualquer coisa, preciso preparar o meu café da manhã. Com os ingredientes que consegui no dia anterior, ele não será tão escasso. Preparo a vasilha e começo a estralar os apetitosos ovos de galinha. A gordura espirra e quase atinge o meu olho. Quantas vezes, na vida, os outros parecem nos ferir com suas inquietações. Tomo o meu café, descanso um pouco e preparo minha estratégia. O terceiro desafio não parece ser nada fácil. Matar para mim é impensável. Bem, mesmo assim, terei de enfrentá-lo. Com essa resolução, começo a caminhar e logo estou fora da cabana. O terceiro desafio começa aí, e eu me preparo para tal. Pego a primeira trilha e começo a percorrê-la. As árvores da estrada da vereda batida são árvores grossas e de raízes profundas. O que eu realmente procuro? O sucesso, a vitória e a realização. Porém, não farei qualquer coisa que fuja aos meus princípios. A minha idoneidade está acima de fama, sucesso e poder. O terceiro desafio me aflige. Matar para mim é um crime mesmo que seja apenas um animal. Entretanto, quero entrar na gruta e fazer o meu pedido. Isso representa duas forças opostas, ou caminhos opostos.
Permaneço seguindo a trilha e torço para que eu não encontre nada. Quem sabe assim o terceiro desafio não seja dispensado. Talvez a guardiã não seja tão generosa assim. As regras têm de ser seguidas por todos. Eu paro um pouco e não acredito na cena que visualizo: uma jaguatirica e seus três filhotes, brincando ao meu redor. Chega. Eu não matarei a mãe de três filhotes. Eu não tenho esse coração. Adeus sucesso; adeus, gruta do desespero. Chega de sonhos. Não cumpri o terceiro desafio e vou embora. Vou voltar para minha casa e para meus entes queridos. Apressadamente, volto à cabana para arrumar minhas malas. Eu não cumpri o terceiro desafio.
A cabana está desfeita. O que significa isso tudo? Uma mão toca levemente o meu ombro. Olho para trás e me deparo com a guardiã.
Meus parabéns, querido! Você cumpriu o desafio e agora tem o direito de entrar na gruta do desespero. Você venceu!
O forte abraço que levei em seguida deixou-me ainda mais confuso. O que aquela mulher estava dizendo? O meu sonho e a gruta poderiam se encontrar? Eu não acreditava.
Como assim? Eu não cumpri o terceiro desafio. Veja minhas mãos: elas estão limpas. Não manchei o meu nome com sangue.
Você não se conhece? Você acredita que o filho de Deus seja capaz da atrocidade que pedi? Eu não tenho dúvidas de que você é digno de realizar seus sonhos. Embora eles possam demorar a tornar-se realidade. O terceiro desafio o avaliou completamente, e você demonstrou o amor incondicional às criaturas. Isso é o mais importante num ser humano. Mais um conselho: somente o coração puro sobrevive à gruta. Mantenha seu pensamento e coração limpos para vencê-la.
Obrigado, Deus! Obrigado, vida, por essa oportunidade. Prometo não os desapontar.
A emoção tomou conta de mim como nunca, desde que subi a montanha. Será que a gruta seria capaz mesmo de realizar milagres? Eu estava a ponto de descobrir.
A gruta do desespero
Após vencer o terceiro desafio, eu já estava apto a entrar na temida gruta do desespero. A gruta que realiza os sonhos impossíveis. Eu era mais um sonhador que iria tentar a sorte. Desde que subi a montanha, eu já não era mais o mesmo. Agora estava confiante em mim mesmo e no universo maravilhoso que me abrigava. O abraço da estranha senhora também me deixou mais tranquilo. Agora ela estava ali, ao meu lado, apoiando-me em todos os sentidos. O apoio que eu não recebi dos meus entes queridos. A minha mala inseparável debaixo do meu braço. Estava na hora de eu me despedir daquela montanha e seus mistérios. Os desafios, a guardiã, o fantasma, a jovem e a própria montanha que parecia ter vida ajudaram-me a crescer. Eu estava pronto para partir e enfrentar a gruta tão temida. A guardiã está do meu lado e me acompanhará nessa viagem até a entrada da gruta. Partimos, pois o sol já se adianta no horizonte. Os nossos planos estão em total harmonia. A vegetação ao redor da trilha que percorremos e o barulho dos animais tornam o ambiente o mais rural possível. O silêncio da guardiã durante todo o percurso parece antever os perigos que a gruta encerra. Paramos um pouco. As vozes da montanha parecem querer dizer alguma coisa. Aproveito para quebrar o silêncio.