Entrevistas Do Século Breve - Marco Lupis 2 стр.


Falamos de teatro, de seu irmão Eduardo, naturalmente. Ele nos contou como nasceu no palco e estava sempre rodando com a companhia de família.

Fomos embora depois de quase uma hora, um pouco atordoados e com o cassete do gravador cheio totalmente cheio.

Aquela não foi apenas a primeira entrevista da minha vida. Foi sobretudo o momento em que entendi que a profissão de jornalista teria sido para mim a única opção possível. E foi o momento em que experimentei pela primeira vez aquela estranha alquimia, quase uma magia sutil, que se instaura entre o entrevistado e o entrevistador.

Uma entrevista pode ser a fórmula matemática da verdade ou uma inútil e vaidosa exibição. A entrevista é também uma arma poderosa nas mãos do jornalista que tem o poder de escolher se agradar o entrevistado ou servir e apaixonar o leitor.

Para mim, a entrevista é também muito mais; é um confronto psicológico, é uma sessão de psicanálise. Na qual são envolvidos ambos, o entrevistado e o seu entrevistador.

Como me disse mais tarde o Marquês de Vilallonga, em uma das entrevistas coletadas neste livro, «o segredo está todo naquele estado de graça que se cria quando o jornalista para de ser um jornalista e se torna o amigo ao qual se conta tudo. Mesmo aquilo que não se conta a um jornalista».

A entrevista é aplicação em prática da arte socrática da maiêutica, a capacidade do jornalista de extrair do entrevistado os seus pensamentos mais sinceros, de levá-lo a abaixar a guarda, de surpreendê-lo enquanto conta e conta de si sem filtros.

Não sempre esta magia particular se realiza. Mas quando acontece, então estamos diante de uma bela entrevista. Algo mais de uma pergunta e resposta estéril, nada a ver com a inútil vaidade do jornalista que mira só executar um scoop .

Em mais de trinta anos de atividade jornalística, encontrei celebridades, chefes de estado, primeiros ministros, líderes religiosos e políticos. Mas tenho que admitir que não foi com eles que senti instaurar-se uma verdadeira forma de empatia.

Por formação cultural e familiar, deveria ter-me sentido do lado deles, do lado daquelas mulheres e daqueles homens que lidavam com o poder, que tinham o poder para decidir o destino de milhões de pessoas, da sua vida e, com frequência, da sua morte. Às vezes, do futuro de povos inteiros.

Em vez disso, nunca foi assim. A empatia, a corrente de simpatia, o arrepio e a excitação os vivi quando encontrei os rebeldes, os lutadores, aqueles que estavam prontos - e o demonstravam - a sacrificar as suas vidas, geralmente tranquilas e favorecidas, pelos seus ideais.

Que fosse um chefe revolucionário com o capuz, encontrado em uma cabana na floresta mexicana ou uma mãe corajosa que procurava digna, mas teimosamente, saber a verdade sobre o fim horrível dos seus filhos, desaparecidos no Chile de Pinochet.

Eles me pareceram os verdadeiros poderosos.

Grotteria, agosto de 2017

*****

As entrevistas coletadas neste livro foram publicadas em um período que vai de 1993 a 2006, nos jornais para os quais trabalhei no curso dos anos, como enviado ou correspondente, principalmente da América Latina e do Extremo Oriente: os jornais semanais Panorama e L’Espresso , os diários Il Tempo , Il Corriere della Sera e La Repubblica e algumas para a rai .

Mantive intencionalmente a forma original na qual foram ao seu tempo escritas, às vezes na estrutura tradicional de pergunta/resposta, outras vezes, naquela mais coloquial do "entre aspas" .

Escolhi antecipar cada uma das entrevistas com uma introdução que ajudasse ao leitor a orientar-se no espaço e tempo em que elas foram realizadas.

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Subcomandante Marcos

Venceremos! (antes ou depois)

Chiapas, México, San Cristobal de Las Casas, Hotel Flamboyant .

A mensagem foi inserida por baixo da porta do quarto:

É necessário partir para a Selva hoje.

Encontro na recepção às 19.

Levar sapatos de montanha, uma coberta,

uma mochila e comida em lata.

Tenho só uma hora e meia para juntar estas poucas coisas. A minha meta está no coração da floresta. Na fronteira entre o México e a Guatemala, onde começa a Selva Lacandona, um dos poucos locais no mundo completamente inexplorados. No momento, existe só um, muito especial, “operador de turismo” capaz de me fazer chegar lá em cima. Ele pede para ser chamado subcomandante Marcos e a Selva Lacandona é o seu último refúgio.

*****

Motivo pelo qual, ainda hoje, se estou provavelmente mais orgulhoso na minha carreira é sem dúvida este encontro com o subcomandante Marcos na floresta Lacandona del Chiapas, em abril de 1995, para o jornal Sette del Corriere della Sera; primeiro jornalista italiano a entrevistá-lo (não sei, na verdade, se antes de mim, foi o simpático e onipresente Gianni Minà, a bem dizer, o verdadeiro), mas certamente bem antes que o mítico subcomandante, com o seu eterno capuz preto, fez surgir nos anos seguintes um tipo de autêntica “assessoria de imprensa guerrilheiro” que levava para cima e para baixo do seu refúgio na floresta de jornalistas de cada lugar.

Tinham se passado quase duas semanas de quando, os últimos dias de março daquele dia de 1995, o avião proveniente da Cidade do México tinha aterrissado no pequeno aeroporto militar de Tuxla Gutierrez, a capital de Chiapas. Na pista passavam aviões com os emblemas do exército mexicano e meios militares estacionavam ameaçadores nas bordas. Em um território grande quanto um terço da Itália viviam milhões de habitantes. A maior parte dos quais com sangue índio nas veias: duzentos e cinquenta mil os descendentes direitos dos Maias. Encontram-me em uma das áreas mais pobres do mundo: noventa por cento dos índios não tinha água potável. Sessenta e três em cem eram analfabetos. Tudo me parecia muito claro: por um lado, os proprietários de terras brancos, poucos e riquíssimos. Pelo outro, os camponeses, tantos e que recebiam em média sete pesos: menos de dez dólares por dia.

Para estas pessoas, a esperança de receber tinha começado em primeiro de janeiro de 1994. Enquanto o México assinava o acordo de livre troca comercial com os Estados Unidos e Canadá, um revolucionário encapuzado declarava guerra ao País: a cavalo, armados com fuzis - alguns verdadeiros (poucos), outros falsos, de madeira - dois mil homens do Exército Zapatista de liberação nacional ocupavam San Cristobal de Las Casas, a antiga capital de Chiapas, Palavra de ordem: «Terra e liberdade».

Hoje sabemos como acabou o primeiro round, aquele decisivo: venceram os cinquenta mil soldados mandados com os carros blindados para enfrentar a revolta. E Marcos? Onde estava o homem que de algum modo tinha feito reviver a lenda de Emiliano Zapata, o herói da revolução mexicana de 1910?

*****

Às 19 horas, Hotel Flamboyant: o nosso contato chega pontual. Ele se chama Antonio, é um jornalista mexicano que na Selva tinha ido não uma, mas dez, vinte vezes. Claro, agora não é mais como um ano atrás, quando Marcos ficava relativamente tranquilo com os seus na pequena cidade de Guadalupe Tepeyac, às portas da Selva, munido com um celular, computador, conexão à rede internet, pronto para receber os enviados das tvs americanas. Hoje para os índios não mudou nada, mas para Marcos e os seus mudou tudo: depois da última ofensiva do governo, os chefes zapatistas tiveram que se esconder realmente na montanha. Ali não existem telefones, não existe eletricidade, nem estradas: nada.

O colectivo ( como chamamos aqui estes estranhos táxi-miniônibus) corre rápido entre as curvas, na noite. Dentro sente-se o cheiro de suor e de tecido molhado. São necessárias duas horas para chegar em Ocosingo , um pueblo às portas da Selva. Para as estradas animadíssimas, as garotas com os longos cabelos pretos e com traços indígenas sorriem. E tantos militares, em todo lugar. Os quartos do único hotel não têm janelas, só uma grade na porta. Parece estar em um cárcere. Na rádio ouve-se uma notícia: «Hoje, o pai de Marcos declarou: meu filho, o professor universitário Rafael Sebastian Guillen Vicente, 38 anos, nascido em Tampico, é o subcomandante Marcos».

Na manhã seguinte, temos um novo guia. Chama-se Porfirio. Ele também é índio.

A bordo da sua camionete, são necessárias quase sete horas de buracos e poeira para chegar em Lacandon, o último povoado. Ali termina a terra batida. E começa a Selva. Não chove, mas a lama chega mesmo assim até os joelhos. Dorme-se em algumas barracas na floresta, ao longo do caminho. Depois de dois dias de marcha intensa, cansativa, no meio da floresta inóspita, sufocados pela umidade, chegamos ao povoado. A comunidade se chama Giardin ; estamos na área dos Montes Azules . Vivem aqui quase duzentas pessoas. Todos velhos, crianças e mulheres. Os homens estão na guerra. Fomos bem acolhidos. Poucos conhecem o espanhol. Todos falam o Tzeltal , o dialeto Maya. «Encontraremos Marcos?» perguntamos. «Pode ser», diz Porfirio.

Às três da manhã, nos acordam delicadamente: é preciso ir, não tem lua, mas há muitas estrelas. Meia hora de caminhada para chegar em uma cabana. Dentro se intui a presença de três homens. Está tudo preto, como o capuz deles. No retrato falado do governo, Marcos é um professor formado em filosofia com uma tese sobre Althusser e uma especialização na Sorbonne de Paris. Agora, rompendo o silêncio na cabana, chega uma voz em francês: «Temos só vinte minutos. Prefiro falar em espanhol, se não houver problemas. Sou o subcomandante Marcos. Melhor não usar o gravador porque se a gravação for interceptada seria um problema para todos, principalmente para vocês. Mesmo se oficialmente, estamos em um momento de trégua, na realidade me procuram em todos os modos. Pode me perguntar o que desejar».

Por que se faz chamar de subcomandante?

Dizem de mim: «Marcos é o chefe». Não é verdade. Os chefes são eles, o povo zapatista, eu tenho apenas funções de responsabilidade a nível militar. Eles me encarregaram de falar porque sei espanhol. Através de mim falam os companheiros. Eu só obedeço.

Dez anos de clandestinidade é muito tempo... Como vive na montanha?

Leio. Dos doze livros que levei comigo na Selva um é o Canto Generale , de Pablo Neruda. Um outro é Don Quixote ...

E depois?

E depois os dias, os anos passam na nossa luta. Vendo todos os dias a mesma pobreza, a mesma injustiça... Não se pode ficar aqui sem que a vontade de lutar, de mudar, aumente. A menos que você não seja um cínico ou um filho da puta. Depois existem as coisas que geralmente os jornalista não me perguntam. É que aqui na Selva, às vezes temos que comer os ratos, beber a urina dos companheiros para não morrer de sede nas longas transferências... é isso.

O que lhe falta? O que deixou?

Falta o açúcar. E um par de meias secas. Ter sempre os pés molhados, dia e noite, no frio, é uma coisa que não desejo a ninguém. E depois o açúcar: é a única coisa que a Selva não lhe dá, é preciso fazê-lo vir de longe, pelo cansaço físico seria necessário. Para aqueles de nós que veem da cidade, certas lembranças são uma espécie de masoquismo. Então, nos repetimos: «Você se lembra dos sorvetes de Coyoacàn ? E os tacos da Division del Norte ?». Lembranças. Aqui se captura-se um faisão ou um outro animal, é preciso esperar três ou quatro horas para que fique pronto. E se a tropa está desesperada de fome e o come cru, no dia depois é diarreia para todos. Aqui a vida é diferente, se vê tudo de uma outra forma... Ah, sim, me perguntou o que deixei na cidade. Um bilhete de metrô, uma montanha de livros, um caderno cheio de poesias... e alguns amigos. Não tantos, alguns.

Quando mostrará o seu rosto?

Não sei, acho que o nosso capuz tenha também um significado ideológico positivo, corresponde à concepção desta nossa revolução, que não é individual e que não tem um chefe. Com o capuz somos todos Marcos.

Porém, para o governo, você esconde o rosto porque tem algo a esconder…

Eles não entenderam nada. Mas o verdadeiro problema não é nem o governo, são sim as forças reacionárias do Chiapas, os criadores e os latifundiários da área, com as suas “guardas brancas” privadas. Não acredito que exista muita diferença entre a tradicional abordagem racista de um branco da África do Sul perante um negro e aquele de um proprietário de terras do Chiapas em relação a um Índio. Aqui a expectativa de vida para um Índio é de 50-60 anos para os homens e 45-50 para as mulheres.

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