De 95 até hoje, o isolamento da Birmânia pouco a pouco se desfez, o Ateneu de Rangoon foi reaberto e talvez o nÃvel de vida melhorou levemente; mas a história da Birmânia continua a se desenvolver no quotidiano feito de violências, ilegalidades e abusos tanto contra os dissidentes quanto contra as minorias étnicas (Shan, We, Kajn) na busca de autonomias e, em geral, contra a maior parte da sua população. Os militares estão sempre mais em dificuldades, tanto no plano interno quanto naquele internacional. Neste Ãnterim, continuam a traficar droga, a menos que não consigam substituir esta rentável fonte de renda com uma outra, igualmente lucrativa. Mas qual? A nação é praticamente um imenso cofre do qual só o exército conhece a combinação. E não será fácil convencer os generais a dividir esta riqueza com os outros cinquenta milhões de birmaneses.
A este ponto, quais são as suas condições para começar o diálogo?
Não aceitaremos nenhuma iniciativa - fala-se também de eleições convocadas pelos generais - até que seja reunido o Parlamento eleito em 90. O meu PaÃs continua dominado pelo medo. Não haverá paz verdadeira até que não existirá um verdadeiro empenho que honra todos aqueles que lutaram por uma Birmânia livre e independente, mesmo se com a grande consciência que paz e reconciliação não possam ser alcançadas uma vez por todas e por isso é necessária uma vigilância sempre mais atenta, maior coragem e a capacidade de desenvolver em nós mesmos a verdadeira resistência ativa e não violenta.
O que pode fazer a União Europeia para ajudar o povo birmanês?
Continuar a fazer pressão, porque os generais devem saber que o mundo olha para eles e que não podem cometer impunemente outros atos vergonhosos.
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Finalmente, no dia treze de novembro de 2010, Aung San Suu Kyi foi definitivamente solta. Em 2012, obteve uma cadeira no parlamento birmanês e no dia dezesseis de junho do mesmo ano, pode receber o prêmio Nobel pela Paz. Como o governo lhe concedeu finalmente a permissão de ir para o exterior, foi para a Inglaterra, para se encontrar com o filho que não via há anos.
Em seis de abril de 2016, se tornou Conselheira de Estado (Primeira Ministra) de Myanmar.
A Birmânia, hoje Myanmar, não é ainda um paÃs completamente livre e o passado ditatorial pesa na história e no futuro da nação. Mas algo mais de uma esperança de liberdade e democracia se abriu afinal no paÃs dos Mil Pagodes.
7
Lucia Pinochet
â Asasinar, torturar y hacer desaparecir â
Santiago do Cile, março 1999 .
«Pinochet? Para os clientes é como um câncer. Um mal obscuro..., doloroso. Nós sabemos que o temos, mas temos medo até de falar nele, pronunciar o seu nome. Assim acabamos em fazer de conta que não existe. Talvez esperamos que ignorando-o, este mal vá embora sozinho, sem termos que enfrentá-lo...». A moça que serve à s mesas do Cafè El Biografo , ponto de encontro de poetas e estudantes, no Barrio pitoresco de Bellavista em Santiago, o bairro dos artistas e dos velhos restaurantes, com as suas casas coloridas, terá um pouco mais de vinte anos. Talvez ainda nem tivesse nascido quando o general Augusto Pinochet Ugarte, o âSenador vitalÃcioâ, como o chamam aqui, ordenava âasasinar, torturar y hacer desaparecirâ os seus opositores - como gritam os familiares dos mais de três mil desaparecidos - ou enquanto providenciava com punho de ferro âliberar o Chile da ameaça do bolchevismo internacionalâ, como garantem os seus admiradores. Porém é ela mesma a querer falar-me de Pinochet e tem as ideias claras: «Tudo aqui é Pinochet. Prós ou contras, mas em cada aspecto da vida do Chile existe ele, o general. à na polÃtica, claro. à na memória de todos, nos contos dos meus pais, nos discursos dos professores na escola. E é nos romances, nos livros... no cinema. Sim também o cinema, aqui no Chile, se faz prós ou contras Pinochet. E nós continuamos a fazer de conta que não existe...».
Já, este ancião senhor obstinado, que enfrenta âcom dignidade de soldadoâ a justiça britânica («...pobre velho!» sussurrou-me no ouvido o porteiro do âCirculo de la Prensaâ, onde os fidelÃssimos do Senador vitalÃcio , nos anos obscuros da ditadura militar, vinham âretirarâ os jornalistas irritados, exatamente atrás do palácio da Moneda onde morreu Salvador Allende, perseguido pelo golpe do General), esse âpobre velhoâ que aliás, no Chile do Terceiro milênio, se torna um colosso incômodo, que ocupa com os seus cais cada bairro, cada esquina, cada rua dessa cidade, Santiago, que aparece como incerta, dobrada sobre si mesma.
E depois é ele a memória vÃvida deste PaÃs, uma memória imensa, invasora, embaraçosa para os seus sustentadores e que incomoda aos seus difamadores. Uma memória que se expande pegajosa como um blob nas vidas, nas esperanças e dores, no passado e no futuro dos chilenos.
Em outubro de 1998, ao se tornar senador, poucos meses depois do abandono do papel de chefe do exército, enquanto estava em Londres para alguns tratamentos médicos, Pinochet é preso e colocado em prisão domiciliar. Antes na clÃnica, na qual tinha acabado de sofrer uma intervenção cirúrgica na coluna, depois em uma residência em locação.
O mandato de prisão internacional foi assinado por um juiz espanhol, Baltasar Garzón, por crimes contra a humanidade. As acusações incluÃam quase cem casos de tortura contra cidadãos espanhóis e um caso de conspiração por cometer tortura. A Grã Bretanha tinha recentemente assinado a Convenção internacional contra a tortura e todas as acusações eram por fatos ocorridos nos últimos quatorze meses do seu regime.
O governo do Chile se opôs logo à prisão, à extradição e ao processo. Foi iniciada uma dura batalha legal na Câmara dos Lordes, o órgão máximo jurisdicional britânico, que durou dezesseis meses. Pinochet reivindicou a imunidade diplomática como ex-chefe de Estado, mas os Lordes a negaram em consideração à gravidade das acusações e concederam a extradição, mesmo com vários limites. Pouco tempo depois, porém uma segunda pronúncia dos mesmos Lordes permitiu à Pinochet evitar a extradição por causa das suas precárias condições de saúde (tinha oitenta e dois anos no momento da sua prisão), por motivos definidos âhumanitáriosâ. Depois de alguns acertos sanitários, o então ministro do exterior britânico Jack Straw permitiu à Pinochet, depois de quase dois anos de prisão domiciliar ou na clÃnica, voltar para o seu PaÃs, em março de 2000.
Durante este intricado caso legal internacional, no fim de março de 1999, fui à Santiago para acompanhar a evolução da situação para o jornal Il Tempo , e para encontrar a filha mais velha do Senador vitalÃcio , Lucia. A Câmara dos Lordes tinha acabado de negar a imunidade à Pinochet e o avião que â na esperança da famÃlia e dos apoiadores do general - deveria levá-lo de volta ao Chile, chegava sem ele.
A reação pelas ruas de Santiago foi imediata. Em vinte e quatro de março a capital chilena tinha esperado a sentença com a respiração suspensa, mesmo se não como uma cidade blindada. Enquanto uma discreta presença de âCarabinerosâ, controlava os pontos quentes da capital chilena - o palácio presidencial da Moneda, as embaixadas da Grã Bretanha e Espanha e as sedes das associações pró e contra o Senador vitalÃcio - os chilenos acompanhavam minuto a minuto o ocorrido através da cobertura maciça que todas as redes nacionais lhe dedicavam. A atenção era aquela dirigida a um evento histórico, com conexões diretas via satélite de Londres, Madri e diversos pontos de Santiago, iniciados perto das sete da manhã e que continuaram por todo o dia. Pouco menos de uma hora depois da decisão dos Lordes, por volta de meio-dia local, dois jornais da tarde já estavam prontos com uma edição extraordinária. Um deles trazia o tÃtulo assim, eficaz, na primeira página: «Pinochet perdeu e venceu».
Nos momentos cruciais da manhã muitos santiaguinos tinham se juntado em torno às televisões instalados um pouco em todos os locais públicos, dos McDonald's aos bares menores. Em uma grande loja do centro tinha se reunido uma multidão revoltada de clientes quando, furiosos, forçaram verbalmente o gerente para obrigá-lo a sintonizar a televisão na transmissão direta de Londres.
No fim da tarde a situação que até então tinha se mantido calma, começava a mostrar os primeiros sinais de tensão. Ãs dezesseis, hora de Santiago, ocorriam os primeiros confrontos entre estudantes e polÃcia no centro da capital, no cruzamento entre a Alameda [2] e a calle Miraflores, com um balanço de uma dezena de feridos e uns cinquenta estudantes presos.
Muitos os apelos à calma, principalmente por parte dos expoentes do governo. Também as declarações ameaçadoras do general Fernando Rojas Vender, (o piloto que bombardeou o palácio presidencial da Moneda), comandante da Força Aérea Chilena, a fidelÃssima FACH, que na terça-feira antes tinha sustentado publicamente que no PaÃs estava se preparando um clima «parecido com aquele do Golpe de Estado de 73», tinham sido asperamente censuradas pelo Governo, que tinha até forçado Rojas a uma retificação pública.
Agora, a atenção se deslocava para a decisão do Ministro britânico da justiça, Straw. E em torno à sua figura já tinham se colocado em movimento todos os aparatos publicitários dos apoiadores de Pinochet, que apontavam «fazer com que Straw tivesse o mesmo fim do Lord Hofmann», desacreditar o Ministro britânico acusado de ter manifestado, na juventude, fortes e públicas simpatias pela esquerda chilena, no curso de uma sua viagem ao Chile com a idade de trinta e três anos. Havia até quem sustentasse poder fornecer provas de um encontra amigável entre o jovem Straw e o então presidente Allende, que o teria convidado para tomar um chá.
Enfim, os assuntos a enfrentar, eu pensava, enquanto caminhava para a casa de Lucia Pinochet, não faltavam.
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Inés Lucia Pinochet Hiriart é a filha mais velha. Uma bela senhora, que traz muito bem a sua idade e ainda melhor o seu sobrenome. Um gesso banal a impediu de estar ela também, como os seus irmãos, ao lado do pai, em Londres. Assim, sem poder ajudá-lo, coube-lhe na sorte permanecer aqui em Santiago, para representar, e principalmente defender, a figura do Senador, em um momento certamente não fácil.
Pelas janelas abertas da sua bela casa nos bairros altos, onde nos chegam as vozes dos manifestantes que gritam slogans a favor de seu pai, com os seus três rapazes ao lado, Hernan, Francisco e Rodrigo, falamos por quase uma hora dos temas âquentesâ do caso que envolve o destino de seu pai e, inevitavelmente, o futuro de todo o Chile.
O que pensa da decisão âhumanitáriaâ aplicada em relação ao seu pai?
Teria preferido que tivesse sido reconhecida ao meu pai aquela imunidade completa que lhe cabia como ex Chefe de Estado de um paÃs soberano. Em vez de um processo penal passou-se a uma discussão polÃtica sobre presumidos casos de tortura, vários crimes e genocÃdio, cedendo à s pressões dos socialistas e de gente que diz querer defender os direitos humanos.
Falou com o seu pai? Como ele reagiu?
Meu pai não está contente com a solução. Tinham-no avisado antes sobre a possibilidade de uma decisão âhumanitáriaâ. E claro, não ficou contente pelo dato que tudo tenha sido confiado ao Ministro Jack Straw...
Aquele mesmo que visitou o Chile em 1966 e, se diz aqui, foi tomar chá com Salvador Allende?
Exato, e isso já sabÃamos a tempo. Basta dizer que quando prenderam meu pai, em Londres, Straw declarou que tinha sido realizado o sonho da sua vida.
Assim, agora, do plano jurÃdico passou-se à quele humanitário...
Tudo sempre foi um fato polÃtico! Falar de um processo judiciário queria dizer fechar os olhos porque em Londres não tinha que se discutir de tortura, mas apenas de imunidade presidencial e de soberania territorial.
Muitos comentaristas observaram que se trata de uma sentença histórica, que constitui um precedente jurÃdico de notável importância. Está de acordo?
Certo, visto que é a primeira vez que se enfrenta uma situação como esta. Deve considerar que há muitos anos existiam convenções internacionais mas não existia nem um procedimento judicial, nem um tribunal de justiça que tivesse que julgar e, eventualmente, punir os crimes contra os direitos humanos. Assim, o experimento está sendo feito na pele do meu pai!
Como está o estado de saúde do general?
Não devemos esquecer que ele tem oitenta e três anos e que acabou de passar por uma cirurgia dificÃlima. Está se recuperando aos poucos, mas o diabetes não o deixa tranquilo e todos os dias deve se submeter a cuidados e controles médicos.
Teme pela sua saúde, se for extraditado?
Sim, porque poderá lhe causar uma notável piora. E temo principalmente pela saúde da minha mãe. Não sentiu seguir as fases mais dramáticas deste caso. Por exemplo, quando ouviu a sentença dos Lordes, na televisão, teve um mal estar e os médicos tiveram que aplicar diversas injeções para atenuar as oscilações de pressão a ser submetida...