Perto de mim um ambiente abafado, onde finalmente podia acender um fogo para aquecer-me. Felizmente na sacola tinha ainda a minha reserva de carne posta a secar; preparei o fogo e pus-me comodamente a acampar. Depois deitei-me para julgar a noite.
A noite foi longa e sonhei viajando pelos mares nos deselegantes barcos.
Ao despertar, a geada e depois gotas de orvalho. Devia ser no meio de Setembro e as folhas tinham criado uma camada de vários centímetros onde as minhas botas altas enterravam-se.
Eram botas femininas, confortáveis, e tinham a elegância das antigas botas para Cowboy. O próprio pensamento atenuava as reflexões na solidão, a pontada fria e profunda da nostalgia e os pensamentos íntimos e tristes. Era certamente esta intimidade que sentia no profundo daquela estranha floresta de carvalho vermelho, onde as folhas caiam e eram vermelho de sangue.
Todavia me sentia seguida, espiada.
Esta sensação de ser espiada, a percepção que algo de obscuro estivesse apinhando-se e estivesse projectando-se nas minhas costas, a tivera anos depois da adolescência, quando alguém tinha ocultado as minhas estranhas mensagens no correio, mensagens que pareciam de amor, porém não eram claras e por isso mais perturbadoras ainda.
Não obstante aqueles obscuros pressentimentos, avançava no bosque e muitas vezes virava para trás para controlar porque não me sentia tranquila; notava a neblina, o orvalho e não percebia o que era.
Depois, de repente, a incerteza e o receio materializaram-se e foi verdadeiro medo, terror como aquele que só as crianças podem sentir.
Senti-me pequena e fugi daquele homem com as botas altas pretas que me seguiam, questionando-me como um doido:
«Por quê?»
Mas como por quê?
Porque pelo contrário és tu a fazer-me esta pergunta? Disse para mim.
Enquanto corria para não cair em pânico, pensava de como organizar-me para sobreviver: era o instinto de sobrevivência, era uma espécie de frieza natural e orgulho.
Podia matar-me mas não teria entrado por acaso na minha cabeça.
A minha cabeça concentrava-se no momento em que o meu corpo fugia.
Corria sobre as raízes esperando que o homem feroz que me seguia caísse. Não o reparava por acaso nos olhos, aqueles olhos que te controlavam furtivamente, olhos de crocodilo que apontam a presa por baixo do nível mais alto da água.
Por intuição tinha percebido que o meu seguidor era diabético. Tinha-o notado graças a uma das minhas estranhas intuições e graças a algumas vozes provenientes de outras dimensões muito distantes. Ainda mais sabia que era diabético porque tinha os pés atormentados por chagas; em breve deviam ser cortados.
A minha esperança vinha da minha alma tenaz e esperava que se esgotasse, esperava que a estranha doença da qual provavelmente sofria o atingisse de repente na corrida, que lhe paralisasse o metabolismo dos açúcares, ou que tivesse uma crise e acocorar-se no chão.
Corria e no entanto os ramos faziam-se mais baixos e emaranhados. Abaixei-me esperando que ele tivesse mais dificuldade, sendo mais alto do que eu; puxava os ramos para comigo desejando que lhe atingissem na cara.
Odiava profundamente aquilo que me estava a fazer. O meu ódio era provocado, especialmente, pelo medo que sentia.
Era em parte orgulho, admito: quem estava para forçar-me à fuga, para afligir os meus membros na mordaça atormentadora do medo?
Entretanto continuava a correr e ele, com o seu físico robusto, parecia tolerar que aquela corrida de velocidade estivesse transformada numa corrida de resistência.
O meu suor caia no chão juntamente com enormes lágrimas, e sentia que a esperança estava a abandonar-me mas eis que vi algo novo: o meu avô, diante de mim.
Vendo-me preocupada, o avô teria me projectado numa outra situação, numa dimensão muito mais íntima e menos perigosa, e me teria tranquilizado, estava certa.
A minha certeza bem cedo teria tido tempo para materializar-se ou destruir-se.
2º CAPITULO
«O futuro pertence a quem crê na beleza dos próprios sonhos» (Eleonor Roosevelt)
A CONSOLAÇÃO E PROBLEMAS ALTERNATIVOS
Era próprio o meu querido avô, tenro na velhice, terrível na juventude. Tinha sido sempre um indivíduo difícil, implicativo, pungente, e por alguns gestos era o típico macho italiano.
Desde jovem tinha sido moreno de cabelos, olhos escuros como dos espanhóis, pele olivácea queimada pelo sol, ombros largos como de um camponês. Não era alto, mais ou menos como eu, mas muito mais robusto. Apenas as mãos as tínhamos iguais, mãos compridas e afuseladas, mãos que os inglese definem como de forneiro, de padeiro, e efectivamente tinha sido propriamente esta a sua profissão durante a sua vida. Levantava-se antes do canto do galo para trabalhar duramente, e não tinha necessidade do rádio: tinha efectivamente uma voz viva e completa como de barítono, uma voz que te acompanha a te tranquiliza ao longo do caminho, e ao longo do meu caminho nos meus sonhos o tinha reencontrado.
O nosso encontro tinha sido tranquilizador. Tinha colocado a sua mão calejada e comprida nos meus ombros e tinha sussurrado para não me preocupar, que tudo se teria ajustado e que me entendia, consolava-me e sabia como tivesse sido difícil o meu percurso. Verdade, ao longo do meu trajecto emotivo havia moitas e picos, e os meus pés estavam repletos de vesículas. Moralmente estava muito abatida.
Ele sabia o que estava a pensar. Tinha sido chefe partidário, tinha lutado contra a opressão de Mussolini. Amava a liberdade e propriamente este nome lhe tinha sido dado: chamava-se livre. Era livre, era aeriforme; era um espírito enfim, depois que em 1996 um enfarte tinha-o levado, subitamente e velozmente.
Tão rápido que não tivera a coragem de vê-lo na capela mortuária. Todavia agora estava diante de mim, como o recordava: ainda oliváceo, sempre activo, e com a preocupação de ver a neta tornar-se rapidamente uma jovem mulher.
Certo, uma mulher, dentro de mim teria me tornado uma mulher. Sentia-me inocente e ingénua, mas sabia que muitas coisas deveriam ainda acontecer comigo, que a vida era longa e cheia de perseguições, de chatices, chicote. O chicote é dado pela autoflagelação e esta última tem um nome: para mim, chama-se sentimento de culpa.
Os sentimentos de culpa tinham me provocado sempre os pesadelos, e, efectivamente, ter sido sempre, durante a minha vida, muito compreensiva com as crianças, levara-me ao sucessivo pesadelo com olhos abertos.
As pupilas viam materializar-se uma criança que me seguia, mas não era uma criança sorridente: tinha unhas e dentes, garras que podiam morder e rasgar. A pequena criatura podia dilacerar-me. Chorava mas o seu choro era quase um horrível latido, e eu ficava aterrorizada, transpirava e tremia. Tinha sido sempre emotiva, efectivamente representava-me bem a descrição do feeler, neste caso apavorada.
Os feeler são emotivos e empáticos. Amam a vida tranquila, os sorrisos e as crianças; afectos dos sentimentos de culpa, evitam todo contacto com os outros dentro de si.
Eu não podia fechar-me dentro de mim mesma porque a criança enfurecida seguia-me e chorava, gritava como o uivar do vento.
Tinha medo de enfrentar o bicho e a minha inocência que não tinha preservado. Não tinha salvado o que deveria salvar e a minha consciência me molestava e me seguia, e eu não podia fazer nada se não fugir, uma outra vez.
Não teria tido o coração de dar murros a uma criança, assim corria, mas encontrava-me a correr com as botas altas com biqueiras desconfortáveis. Estas provocaram-me uma dor surda a cada passo, dilaceravam-me atormentando a minha pele e abriam-me velozmente as chagas. Eram uma tortura sem fim.
Não teria tido o coração de dar murros a uma criança, assim corria, mas encontrava-me a correr com as botas altas com biqueiras desconfortáveis. Estas provocaram-me uma dor surda a cada passo, dilaceravam-me atormentando a minha pele e abriam-me velozmente as chagas. Eram uma tortura sem fim.
Depois caí de cotovelos e comecei avançando com ainda mais fadiga no pavimento de madeira castanho-escuro, escorregadio e hostil, gélido como os olhos da criança que me seguia. Sabia que os merecia, aqueles olhos, não tinha defendido suficientemente as crianças na vida, não os tinha amado o suficiente e através deste infinito monstro eles voltavam visitando-me. Uma visita amarga mas construtiva: devia pagar o preço dos meus erros e estava pronta para reconhecê-los.
Depois daquela perseguição houve uma outra perturbante visão: uma criança que ressaltava contra as paredes e eu não conseguia evitar que se fizesse mal. Era repugnante, coberta de ódio, e mudava de direcção. Era imprevisível.
Representava exactamente a confusão que tinha dentro.
Não sabia se pudesse proteger a ela ou salvar-me do monstro que estava ainda a seguir-me, a criança que uivava questionando-me o porquê, tentando agarrar-me e me chamando MAMÃ.
Assustadora palavra para mim que, se bem que amo as crianças, não considerei seriamente por acaso a possibilidade de ser mãe e de construir uma família. Vi-a sempre como uma coisa distante no futuro, distante de mim, limitadora para a minha possibilidade e mesmo, ódio tê-lo de admitir, destrutiva para o corpo feminino tão delicado. Tenros são as crianças que necessitam de cuidados, e cada vez mais que via as filhas das minhas amigas mover os primeiros passos circundava-me pensativa, temendo que a peste de cada vez quebrasse ou se fizesse mal; depois existem crianças e crianças. Existem crianças que não nascem normais.
Quer dizer, todos temos a nossa individualidade, mas existem crianças que maltratam os animais e este é um primeiro sinal preocupante. Muitos seriais killer desde criança maltratavam os animais, e era certamente o caso da criança que me perseguia naquele lugar imundo, aquela barraca lenhosa cheia de cubículos.
Percebia pela sua violência, pelo modo com o qual quebrava as coisas, que não tinha recebido amor, mas sentia mesmo que a semente do mal estava enraizado nela: tinha sido abusado e agora se divertia abusando. Era o mal que se expandia como uma doença que não deixava salvação, que te perseguia e que acabaria por destruir-te lentamente somente tocando-te. Era atormentador e sempre presente. Não podia continuar a fugir, tinha que reagir, todavia não sentia ainda as pernas suficientemente fortes, embora que, antes ou depois, uma decisão tinha que ser tomada.
A decisão era vital, não podia deixar que a criança me destruísse, mas tinha mesmo de fazer parar a criança que continuava a resvalar-me e a ressaltar contra nas paredes.
Tinha que esboçar um plano, uma estratégia para tornar inofensivo o monstro e salvá-la.
Entretanto me causavam mesmo dor nos ombros; era uma minha típica reacção ao stress.
A tensão nervosa, por exemplo, antes dos exames na universidade, levava-me a contrair os músculos dos ombros com resultados péssimos para as omoplatas e para os membros cervicais.
Todavia tinha que fazer algo, devia horrivelmente fazer alguma coisa.
Afastei-me, de forma que a criança não esbarrasse contra a parede mas contra a minha pessoa; esperava que algum tempo depois com a inércia teria cessado. As cordas rasgadas que a agitavam estavam desarticuladas, em parte arranhadas e não íntegras; todavia eram resistentes. Tentei cortá-las com um canivete apanhado na minha sacola, mas ela tendia escapar-me da mão e era muito viscoso por causa do óleo espesso e impenetrável. Uma substancia oleosa semelhante ao betume.
Estava escuro e aquele negócio causava-me fadiga. Sentia-me observada pela criança que estava a perseguir-me, sentia os calafrios nas costas e temia a morte em cada momento, em cada minha única respiração a criança era a minha consciência e não me dava paz.
A consciência é aquela coisa que te mantém acordado de noite e te faz observar durante muito tempo um tecto sempre igual.
Faz-te percorrer o passado e o futuro num instante, vês toda a vida num instante e depois deves decidir, tens de decidir segundo a consciência.
E decidido: teria tentado de salvar a criança. Eu podia morrer, podia ser despedaçada mas devia superar o teste; devia mudar e ser mais forte.
A força aprende-se mesmo criando o caminho e eu queria que fosse assim para a minha vida, não queria mais fugir se não quando tivesse sido extremamente necessário, algo em mim estava a mudar e no fim, talvez, era justo assim. Era um desejo de paz e justiça que paradoxalmente forçava-me a lutar, um misto de bondade e dignidade que está enraizado nos bons guerreiros das histórias que me narravam desde criança.
Era a não-aceitação do mal, nunca e sem nenhum compromisso, porque de compromissos por demasiada bondade tinha possuído bastantes e tinha recorrido à fuga, à humilhação e a um depressivo sentimento de baixa auto-estima. A depressão não a queria mais, queria combatê-la. Queria salvar a criança que baloiçava, porque naquele pêndulo de incertezas via eu mesma, a balançar entre uma decisão e outra, confusa e insegura.
Devia agir instintivamente quando a criança teria chegado no meio percurso. Teria tentado com o canivete com o qual cortava a carne seca ou então ramos das plantas de baga onde andava muito ávida. Era uma pequena navalha e estava suficientemente em mau estado portanto tinha que agir apressadamente e ser precisa, porque tinha um outro monstro não distante de mim.
Atirei-me de cabeça baixa, pensando que podia ser minha filha e que tinha o dever moral de salvá-la, ou pelo menos de tentar. A faca cortou rapidamente a primeira parte da corda pois que macilenta, mas depois parou.
Mais tentava e menos conseguia cortar.
Sentia que estivesse a rir nas minhas costas e sentia um gelo dentro de mim, um calafrio que me percorria a coluna deixando-me tremer os braços. Os meus ombros tremiam mas não a minha vontade, e percebi que a obscura criança era a criança que me perseguia e que naquele momento apresentava-se diante de mim, os olhos verdes e terríveis.
Tinha escondido na corda uns pequenos alfinetes.
Estando furioso comecei a tirá-los, procurando de equilibrar a rotação com o meu peso. Estava desesperada, mas tentei e tentei de novo, furando-me as mãos e praguejando pelas picadas.
E a corda cedeu. A criança caiu no chão mas pelo menos podia dizer que o seu eterno baloiçar tinha cessado.
Acabado de ver aqueles horríveis olhos verdes ficara confusa, mas ganhei força e comecei a gritar contra o monstro, não tinha outra coisa que a minha voz. Lhe disse, mostrando a criança que jazia no chão: «eis o que fizeste, não me resta mais nada, NADA! Tiraste tudo de mim porque sei que esta criança teria sido ligada a mim num futuro. Agora acaba comigo se te convém faz aquilo que queres, o que queres ainda, o meu sangue?»
Desafiava-o como uma doida, mas ele tinha mudado. Apertou-me a mão e me disse que tinha feito a coisa certa, que tinha superado o teste e que estava tornando-me mais forte.
A força a tinha temperado dentro de mim forjando-a com a paciência, como os ferreiros quando batem o ferro e o moldam até obter uma espada afiadíssima e objectos de raro valor. Mas também quem forja, espreme e dedica-se pode falhar, e é talvez esta a origem de toda a insegurança que nos obrigam a fugir ou a atacar; a render-se ou a vencer.
Desta vez vencido, mas a viagem devia continuar e outros desafios se teriam apresentado diante de mim. Dum lado não via a hora de bater-se com eles, mas do outro sentia outra vez o calafrio gélido do medo para com o desconhecido. Apesar disto prossegui com as minhas botas altas consumidas para outros desafios e outros territórios.