O que você está me propondo então?
David, surgiu um projeto em Cingapura de uns seis meses de duração, ampliável a dois anos, no qual você se encaixa perfeitamente por causa dos seus conhecimentos e do idioma. Sei que é um pouco precipitado, mas preciso que me diga algo entre hoje e amanhã, porque existe uma urgência para começar a cuidar de toda a papelada. Levantei as sobrancelhas, expectante. Vou te mandar todas as informações do projeto e das condições nas quais você iria. Qualquer coisa, me liga e esclareceremos tudo. O que acha?
Não sei o que dizer, Valentín. Você me pegou um pouco de surpresa
Eu sei, eu sei. Pense nisso e amanhã você me dá uma resposta. Não estava cansado de fazer testes? Essa é sua oportunidade e, se você se der bem, isso ajudará muito na sua possível promoção deste ano. Vou te mandar o e-mail. Pense e amanhã você me fala. Ei, sei eu não achasse que você se encaixava bem, não teria tocado no assunto.
Tudo bem, tudo bem. Amanhã te dou uma resposta. De qualquer forma, obrigado por se lembrar de mim.
Quando desliguei o telefone, fiquei pensativo. Ao chegar à minha mesa, o e-mail de Valentín já estava na caixa de entrada. Estava claro que ele tinha pressa. Abri e li todas as informações. Projeto interessante, país com referências incríveis, boas condições financeiras que incluíam o alojamento e, acima de tudo, sair daqui por um tempo; afastando-me da lembrança da minha ex e dos chatíssimos testes. Estava claro. Cinco minutos depois da ligação eu já sabia qual era minha decisão. Ainda assim, decidi esperar até o dia seguinte para dar ao meu cérebro a chance de repensar, ainda que, quando eu tomava uma decisão, e costumava fazer isso muito rapidamente, poucas vezes eu mudava de ideia. Ao chegar em casa, a única coisa que fiz foi verificar se meu passaporte estava em ordem.
O que de verdade eu sentiria falta era todos os esportes que praticava: corrida, basquete, futebol, tênis, escalada eu era um apaixonado por tudo o que sugeria esforço ou risco, especialmente se fosse ao ar livre. Por outro lado, em Cingapura eu poderia praticar esportes de mar que em Madri era impossível e só podiam ser aproveitados no verão, como mergulho, navegação ou jet ski. Eu teria que fazer muito pouco para praticá-los vivendo em uma ilha. Voltei ao trabalho. Resultado correto, resultado incorreto, ocorrência.
No dia seguinte, ao meio-dia, liguei para Valentín e comuniquei minha decisão. Iria para Cingapura. Ele me mandou os detalhes da viagem e começamos a reunir toda a documentação. Personalised Employment Pass, EntrePass, Work Permit... Era um monte de opções e vistos. No fim, o que eu precisava era um Employment Pass, um visto de trabalho. Para este tipo de licença, era a empresa que solicitava em nome do candidato, mas tive que traduzir meus títulos acadêmicos (mas assim que cheguei a Cingapura, tive que homologar os originais com um tradutor juramentado de lá e esperar que fossem aprovados pelo Ministério do Trabalho), preencher formulários para o seguro saúde, providenciar cópias do passaporte e do registro de trabalho da minha empresa O fato de não ser uma mudança de empresa, mas uma transferência e de a companhia se encarregar de quase todos os trâmites tornou o processo muito mais simples.
Algumas semanas depois, eu estava no aeroporto de Barajas pegando um voo a Qatar Airways a caminho de Cingapura. As outras pessoas da equipe já estavam ali há algumas semanas preparando o lançamento do projeto e lendo documentações. A empresa pagava um apartamento de três dormitórios compartilhado com dois colegas, por isso, não teria que me preocupar em buscar correndo um lugar para morar e teria a oportunidade de conhecer gente desde o primeiro dia.
Eu tinha comprado um livro de viagem sobre o país que li durante o voo. Tempo era o que não me faltava: dezesseis horas de voo com escala em Qatar. Era para se imbuir de paciência.
O livro começava com a típica apresentação da história do lugar. Pelo visto, Cingapura era uma cidade-estado que tinha passado de mão em mão e onde agora vivia uma mistura de raças e idiomas única. De fato, os idiomas oficiais eram quatro: inglês, malaio, tâmil e chinês mandarim. Dois além dos que eu achava que sabia.
O que me importava era o fato de ser o quarto maior centro financeiro do mundo (atrás de Nova York, Londres e Tóquio) e o quinto porto de mercadorias mais importante, dada sua posição estratégica. Na teoria, quase um paraíso na Terra e uma oportunidade profissional sem igual. Logo descobriríamos, uma vez ali. Pelo menos, de cara, parecia promissor. O livro estava cheio de todo tipo de dados, o que aproveitei muito. Me encantavam as cifras e as curiosidades sobre qualquer coisa. Eu mergulhei na leitura tentando absorver, como bom turista, todas as informações relevantes.
Por fim, anunciaram que estávamos chegando ao aeroporto de Cingapura. Um aeroporto construído sobre o mar. Grudei na janela para poder vê-lo bem. Debaixo de mim, via-se a aglomeração da cidade, apesar de eu ter ficado surpreso de forma grata com a quantidade de árvores que havia ali. Odiava os lugares em que a única cor visível era a do cemitério. O aeroporto estava em um canto da ilha e, em seguida, via-se um grande porto naval. O mar ao redor estava coalhado de barcos de todos os tamanhos, mas principalmente daqueles gigantescos que carregavam contêineres. Nunca tinha visto tantos juntos de forma tão organizada, formando longas filas de barcos paralelos. A cidade estava infestada de arranha-céus e altos edifícios. Nas bordas da ilha havia largas praias com densa vegetação por trás. Logo pude ver uma área de casas mais baixas, como urbanizações dos arredores, que acabavam ao lado de um largo rio cruzado por pontes.
O avião voava muito baixo sobre uma região de gramado bem cuidado e pude ver aparecer a pista bem debaixo da asa esquerda, onde me encontrava. Logo senti o solavanco do trem de pouso ao tocar o solo e o avião começou a frear. Ao fundo, a uns cem metros, estava escrito com arbustos o nome do aeroporto: Changi.
O avião saiu da pista e se dirigiu ao terminal. Não dava para ver do meu lado, mas podia deduzir que estava ali através da vista das janelas do outro lado. A comissária de bordo anunciava pelos autofalantes, entre outras coisas, que a temperatura era de vinte e seis graus. Por se tratar de uma zona equatorial, as temperaturas costumavam ser mais ou menos essa, com alta umidade e muitas chuvas rápidas, mas intensas.
Em pouco tempo, nos deixaram levantar e ir atrás das bagagens. Com a mala e a mochila nos ombros, dei uma volta pelo aeroporto. Havia coisas curiosas que eu estava acostumado a ver, como áreas de internet grátis para notebooks e até computadores para quem não tivesse um. Também havia uma área para relaxar, com espreguiçadeiras, parecidas com as de piscinas, de frente para os aviões e onde as pessoas estavam escutando música, dormindo ou lendo.
Continuei avançando em busca da plataforma dos trens. Nas telas eram anunciadas chegadas e partidas de todas as partes do mundo. Finalmente cheguei. Era preciso pegar algo parecido com um bonde chamado Skytrain que levava ao Terminal 2, onde eu pegaria um táxi. Quando o trem parou na plataforma, me chamou muito a atenção que ele não tinha condutor. Em seguida, ele me deixou no Terminal 2. No meio dele havia um jardim tropical com um pequeno tanque e flores lindas. Sofás de automassagem gratuitos, lágrimas de cristal pendentes que subiam e desciam, aquários com peixes laranjas, lugares para receber massagem asiática Até anunciavam uma piscina no Terminal 1 de onde, segundo as fotos, podia-se ver a pista de aterrisagem! Incrível. Nos banheiros haviam painéis táteis com a foto do faxineiro do turno em vigor, onde se podia votar pressionando umas carinhas de acordo como você considerava que estava a limpeza do lugar. É claro que estava limpíssimo. Por algum motivo, aquele era considerado um dos melhores aeroportos do mundo. A primeira impressão de uma pessoa nova na cidade era seu aeroporto, e aqui eles tinham sido perfeitos.
Finalmente cheguei à saída e peguei um dos táxis que estavam esperando. Entreguei ao motorista um papel com o endereço da minha futura casa e ele saiu dali. Eu tinha chegado em um sábado e a empresa tinha me comunicado que meus colegas de apartamento me esperariam em casa para ajudar com minha instalação e me contar um pouco do que eu precisava saber para começar a me adaptar o quanto antes. Não havia possibilidade de me enganar com o lugar, porque se chamava Spanish Village. Vila Espanhola, no idioma de Cervantes. Curioso lugar para se hospedar um grupo de espanhóis. Não se era coincidência ou de propósito, mas o nome era perfeito para tentar me sentir como se estivesse em casa. Eu tinha procurado na internet e ficava no bairro de Tanglin, ainda que isso, naquele momento, não significasse nada para mim.
Começava minhas andanças por Cingapura.
Cingapura 2
Em menos de meia hora, o táxi parou na frente da entrada de um complexo de edifícios e o motorista me indicou que esse era o destino que dizia o papel. Dei uma olhada e vi que à direita da entrada estava Spanish Village 56-88 Farrer Road e, o que deduzi, que era a mesma coisa em caracteres chineses. Após trocar algumas palavras com o guarda da guarita de segurança, este entrou no complexo e parou em seu interior. Paguei ao motorista com os dólares de Cingapura que tinha trazido da Espanha e o vi se afastando.
Olhei de novo para o papel onde tinha anotado o endereço. Eu estava no lugar certo. Comecei a andar com toda a minha bagagem nas costas buscando pela entrada. O conjunto era formado por um grupo de edifícios de cor bege e terra vermelha em cada terraço. Com quatro andares de altura, mais um andar térreo, formavam todos uma elipse. No meio dos edifícios, encontrei uma piscina bastante grande, um parque infantil, áreas para estacionar ao ar livre, duas quadras de tênis, uma área de churrasqueiras Via-se que aqui a urbanização era muito completa, não como o triste apartamento em que eu morava enquanto procurava uma casa melhor para viver com minha ex. Minha ex, Cristina. Agora ela estava a milhares de quilômetros de mim e, ainda que houvesse momentos em que a sentisse dolorosamente perto, até com terrível intensidade, eu tinha que me esquecer dela. Já estava farto de tanta penúria, motivada autocompaixão e inusitada tristeza, tinha que voltar a aproveitar a vida. Eu gostaria de voltar a ser esse David louco de antes de conhecê-la; sem rodeios, sem compromissos, sem necessidade de dar explicações a ninguém. Pelo menos na parte de conhecer muitas mulheres e curtir com elas sem amarras.
Uma vez dentro, enquanto procurava a porta do edifício, um homem de traços asiáticos me interceptou e me perguntou em um inglês sofrível onde eu estava indo. Adivinhei que era alguém da manutenção ou algo assim. Eu disse a ele que era um novo inquilino e informei o apartamento. Isso pareceu tranquilizá-lo. Ele apertou minha mão com efusividade e, com um largo sorriso na cara, me acompanhou até a porta do meu edifício, ajudando-me com minha mala. Ele mesmo chamou no meu apartamento e, quando alguém respondeu, uma voz que me soou familiar, ele avisou que o novo inquilino tinha chegado. Parei um momento para pensar como tinha sido esperto o zelador, não aceitando minha palavra de cara, mas acompanhando-me até a porta para confirmar o que eu disse com meus companheiros. Quando a voz confirmou que estava me esperando, deu-se por satisfeito, despediu-se de mim e eu entrei no que seria meu novo lar, pelo menos pelos próximos seis meses. Ou pelo menos era o que eu achava.
Soou a campainha e eu empurrei a porta. Fiquei surpreso. Eu achava que tinha reconhecido a voz de Josele, que era um colega da minha empresa, um amigo com quem eu trabalhei três anos lado a lado e que, no fim, acabou em um projeto nos Estados Unidos junto com algum outro colega do banco. Desde o início nos demos muito bem. Senti muito quando o projeto terminou e tivemos que nos separar, mas tínhamos continuado a manter contato regular e nos vendo sempre que ele voltava para a Espanha.
Na porta do apartamento, como tinha suspeitado, Josele estava me esperando. Não tinha mudado nada, com esse cabelo que crescia nele como um topete, uma má imitação de Elvis Presley. Deixei minha mala e a mochila no chão e o abracei com entusiasmo.
Josele, é você?
Surpresa! Entre e já conversamos. Olha quem está aqui disse ele, abrindo totalmente a porta.
Dámaso!
Saí correndo e o abracei, levantando-o no ar. Dámaso era outro dos colegas que a empresa tinha mandado com Josele para os Estados Unidos. Um pouco estranho, mas uma cara conhecida, no fim das contas. O dia não podia começar melhor, tendo como meus colegas de apartamento esses dois personagens.
Mas, o que está acontecendo aqui? Vocês não estavam nos Estados Unidos?
Sim, estávamos respondeu Dámaso. O projeto acabou e nos mandaram para cá faz pouco tempo. Valentín nos disse que você estava vindo também, mas não quisemos dizer nada para não estragar a surpresa.
E que surpresa, rapazes! Com certeza não poderia ser melhor. Outra vez juntos, e desta vez, colegas de apartamento. Cingapura, prepare-se!
Sim! gritou Josele, entusiasmado. Poderemos voltar a praticar esportes juntos. Dámaso e eu saímos para correr duas vezes por semana e estamos em uma liga de basquete de expatriados. Já inscrevemos você na equipe.
Fantástico respondi. Pelo menos não ficarei como um boi e me servirá para conhecer gente. Bom, me contem como é a vida aqui.
Diego e Tere também estão aqui informou Dámaso.
Também! Que legal, toda a turma junta de novo. Não achava que fossemos voltar a trabalhar juntos no mesmo projeto.
Sim, e sabemos de algo que você não sabe
Diego também está na equipe de basquete?
Sim, ele está inscrito, mas não é isso.
Então o que é?
Estão saindo juntos.
O quê? Tere e Diego? Desde quando?
Não sabemos, porque demoraram para nos dizer, mas com certeza antes de virem para cá, então há pelo menos dois meses.
Nunca teria suspeitado. Mas, de fato, se parar para pensar, eles são combinam muito mesmo. Fico feliz por eles! E o que fazemos agora então?
Josele e Dámaso primeiro me mostraram a casa. Tinha três quartos e dois banheiros. Eu teria que dividir o banheiro com Josele. Pelo visto, Dámaso insistiu em ter um só para ele e Josele não se importava. A sala e a cozinha eram espaçosas. A casa tinha internet com WiFi e um terraço fechado de onde dava para ver a piscina. Também me contaram que o bloco tinha segurança 24 horas. O homem que tinha me interceptado no jardim era de origem chinesa e se chamava Shao Nan e era o funcionário da manutenção do turno diurno. À noite era um malaio que se chamava Datuk Musa. Também havia uma academia, uma sauna e quadra de squash no térreo, além de um jardim com várias churrasqueiras, que eu já tinha visto, para poder fazer piquenique sem ter que sair do condomínio. Havia uma televisão grande na sala, mas cada quarto tinha outra pequena, além de ar condicionado, uma escrivaninha com cadeira e um armário grande para as roupas. Não sei se as outras pessoas do país teriam casas iguais, mas o nível devida aqui parecia incrível. Tínhamos dois shoppings a menos de vinte minutos andando, com todo tipo de restaurantes, lojas de alimentação e roupas, bancos ou lugares para se divertir. Pois é, nossa localização era perfeita.
Eles me contaram coisas úteis sobre os meios de transporte da cidade. O metrô se chamava MRT e tinha quatro linhas que cruzavam Cingapura de norte a sul e de leste a oeste. Também havia ônibus e o uso de táxi era muito comum, pois era bem barato. A empresa tinha me dado um cartão de transporte misto que servia tanto para o MRT quanto para os ônibus. Os escritórios da nossa empresa ficavam ao lado da desembocadura do rio Cingapura e próximo a um parque urbano chamado Fort Canning Park. Eles usavam o ônibus para ir ao trabalho. Tínhamos fretado e em menos de quarenta minutos ele chegava ao escritório.