Perguntei pela comida típica cingapurense e me disseram que era picante e também muito condimentada, mas que eu não me preocupasse, porque havia todo tipo de restaurantes para escolher. Eu gostava de comida picante, mas de vez em quando e não muito. Tinha uma amiga que gostava da comida pegando fogo, mas para mim, com o ardor na boca não se podia saborear de verdade o gosto dos alimentos. De qualquer forma, também havia muita influência chinesa na comida do país e essa, sim, eu gostava mais. Teria que experimentar logo.
Depois de comer, voltamos para nossa casa. Tinha que terminar de colocar todas as minhas coisas no quarto e eu queria descansar um pouco. Não sabia se era pelo jet leg ou não, mas estava esgotado. De qualquer forma, tinha recebido muita informação desde que cheguei à cidade e eu queria um pouco de tranquilidade, e até começar a trabalhar no dia seguinte para ir pegando um pouco da rotina.
Passamos o resto da tarde na casa vendo um pouco as notícias em inglês na televisão e conversando sobre as coisas que faríamos nas próximas semanas.
Jantamos no final do dia o que restava na geladeira e fui dormir cedo. No dia seguinte começaria minha nova aventura de trabalho.
Tailândia 13
Meus pensamentos sobre o apartamento em Cingapura foram interrompidos quando senti que alguém estava me observando. Parei a série de socos que estava fazendo e olhei para a porta da cela. Dali, um homem curioso me observava. Seu nome era Channarong. Eu o conhecia de ouvir os outros prisioneiros falarem dele, sempre com respeito. Seu nome, segundo me contaram, significava algo como lutar para ganhar, que era justamente para o que eu estava me preparando. Não estava muito claro para mim porque as pessoas o tinham em consideração. Não sabia se era um membro de alguma máfia, um lutador famoso ou o filho de um rico homem de negócios que podia pagar a alguém para que te matassem se o incomodassem. O caso é que ele estava me olhando em silêncio dali não sei há quanto tempo. Comecei a dissimular, esticando os braços e fazendo movimentos estúpidos, tentando imitar o que em minha cabeça seria tai chi. Eu tinha certeza de que seria tarde e que estaria claro para Channarong que eu estava treinando artes marciais. Teria que ser muito idiota para acreditar que o que eu estava fazendo era tai chi.
Me sentia ridículo tentando despistá-lo, assim, parei e fiquei olhando para ele se dizer nada. Channarong fixou seus olhos nos meus e me examinou com atenção. Seu rosto era totalmente inexpressivo. Era impossível saber o que ele estava pensando. Após alguns instantes, que me pareceram horas, deu uns passos e se aproximou de mim. De forma instintiva, deu um passo para trás e ergui os braços em posição defensiva. Estava acostumado com todos que se aproximavam era para me bater, ainda que desta vez eram muitas surras seguida, já que a última tinha sido a menos de uma hora.
Channarong se aproximou até estar a vinte centímetros de mim e me olhou curioso. Levantou sua mão e me encolhi, esperando receber o primeiro golpe, mas em vez disso, o que fez foi pegar o braço e esticá-lo um soco.
Assim não disse ele em um inglês bastante descente, enquanto negava com a cabeça várias vezes. Assim não. Não, não, não.
Pegou meu braço e o esticou de novo, desta vez com muito mais força, Obrigando-me a girar sobre minha cadeira para não cair.
Mova a cadeira, golpeia a cadeira. Mova a cadeira, golpeia a cadeira. Sabe como chamar esta cela? O Grande Tigre, porque dizem que caça e come. Quer ser preza ou caçador?
Repetiu essa frase como se fosse um mantra, e mais algumas vezes, enquanto eu movia meu braço e me dava palmadas na cintura. Ele estava corrigindo o movimento! Além de não querer me bater, ainda estava me ensinando a golpear de forma correta. Ele soltou meu braço e me animou com um gesto da mão a continuar tentando. Lancei uma nova série de socos, trocando de braços e utilizando a cadeira nos golpes enquanto Channarong ia corrigindo meus movimentos.
Décima lição de Muay Thai disse ele, muito sério, quando demos um tempo: treinar e exercitar-se de forma regular. Você constante, eu observar. Muito bem. Muay Thai ser guerreiros de oito braços. Punhos, cotovelos, joelhos e pés. Treinar tudo, buscar equilíbrio.
Assim, ele ficou me vendo treinar sem que me desse conta. Estava claro que eu não escondia isso tão bem quanto acreditava. Um momento! Ele tinha dito décima lição? E as nove anteriores? Não importava. Fiz outra série de socos, concentrando0me em fazer tudo perfeito, tal qual ele tinha me ensinado, pondo toda minha atenção em cada detalhe do movimento, tentando não deixar que a dor no meu corpo influenciasse. Me virei, satisfeito, para ver o que ele achava, mas Channarong já tinha ido embora. Desapareceu da mesma forma que apareceu. Em silêncio e sem aviso. Me deixou todo confuso. Por que tinha me ajudado? Por que se foi sem me dar tempo para agradecê-lo? Não tinha respostas nem a possibilidade de obtê-las naquele momento, como se esperava de alguém prático como eu. Continuei treinando meus socos, usando a cadeira de apoio para golpear com mais força. Tentando superar a dor que me causava cada movimento naqueles lugares golpeados pela surra.
No dia seguinte procurei Channarong para agradecê-lo, mas não o encontrei. Também não insisti em procurar por todo o complexo, porque, com meus antecedentes, era melhor não me deixar ser visto para evitar problemas. Quando usavam alguém como saco de pancadas, o mais prudente era que não o encontrassem. Continuei treinando meus socos e o resto dos movimentos. Eu ia adorar se ele decidisse ser meu mentor, como o senhor Miyagi, do Karatê Kid, ou como Ángel, o professor de boxe que me ensinou o que era o respeito pelos demais e por si mesmo, mas duvidada muito que esse homem tão querido e a quem eu nunca tinha dirigido a palavra tivesse muito interesse em mim. Por outro lado, ele tinha me ajudado, não? Em todo caso, ninguém costumava me dirigir a palavra. Assim, me sentia grato pelo menos por isso.
Alguns dias depois, encontrei Channarong na fila do refeitório. Me aproximei para agradecer por seu interesse, mas ele mandou que eu me afastasse dele com rápidos movimentos de mão e um som como o de uma serpente
Segunda lição gritou, enquanto eu me afastava, confuso: fazer-se útil aos demais.
Enquanto comia, tentava decifrar o significado dessas palavras. Ele queria que eu ajudasse as pessoas da prisão? Queria que eu pensasse em mim mesmo? Os orientais às vezes gostavam de divagar sobre as coisas. Não era mais fácil dizer logo o que queria? Fazer-se útil aos demais defender aos demais dos brutamontes em vez de a mim mesmo? Filosofia barata. É tão mais útil dizer as coisas de forma direta. Olhei para Channarong e ele estava apontando para minha mesa, contando algo a seus companheiros, que riam com vontade. Não sabia o que pensar. Eu estava totalmente perdido. Provavelmente só estava rindo de mim, mas então, para que me ajudar?
Percebi que o grupo que tinha invocado comigo estava entrando no refeitório, assim, levantei, deixei a bandeja no lugar como tudo o que ainda restava para comer e fui embora rápido. Como dizia minha mãe: Quem evita a ocasião evita o perigo. Isso, sim, era um conselho útil. E claro.
Fui para a cela treinar. Não que treinar depois de comer fosse o mais aconselhável, mas era o único de poucos momentos em que costumava não ter ninguém e tinha que aproveitar. Fiz o que eu tinha que fazer. O que era necessário. Comecei minha rotina de treinamento. Alongamentos complexos, flexões, agachamentos Trabalhando cada parte do corpo de forma independente e junto com as demais. Em seguida, continuei com os golpes no ar: primeiro socos, depois chutes, por último, joelhadas e cotoveladas, como os que via os presos que treinavam no pátio fazerem. Como disse Channarong, o guerreiro dos oito braços. Como ninguém falava comigo por medo de também se tornarem alvo dos que me batiam, eu tinha muito tempo para pensar. Em uma das minhas reflexões diárias, tinha considerado que, além de conseguir a melhor forma física e de tentar melhorar minha técnica e velocidade, deveria também enrijecer meu corpo e acostumá-lo aos golpes. Por isso, acrescentei a minha rotinha uma série de golpes com punhos, cotovelos, canela e dorso da mão na parede, usando pedaços de pano como atadura e começando com menos intensidade. Às vezes, exagerava com os golpes e ficava com alguma parte do corpo inchada por alguns dias, mas considerava isso necessário para ensinar a meu corpo a superar a dor. Quando meu ânimo fraquejava no treinamento, eu só tinha que me lembrar de alguns dos meus inimigos antagônicos da juventude ou de qualquer uma das surras recebidas; de mim no chão, sendo alvo de pontapés e golpes, encolhido como um animal e esperando que tudo acabasse. Então, aumentava o ímpeto dos golpes, o esforço do treinamento, tirando forças da fúria, ânimo do medo, intensidade do desespero.
Fui para a cela treinar. Não que treinar depois de comer fosse o mais aconselhável, mas era o único de poucos momentos em que costumava não ter ninguém e tinha que aproveitar. Fiz o que eu tinha que fazer. O que era necessário. Comecei minha rotina de treinamento. Alongamentos complexos, flexões, agachamentos Trabalhando cada parte do corpo de forma independente e junto com as demais. Em seguida, continuei com os golpes no ar: primeiro socos, depois chutes, por último, joelhadas e cotoveladas, como os que via os presos que treinavam no pátio fazerem. Como disse Channarong, o guerreiro dos oito braços. Como ninguém falava comigo por medo de também se tornarem alvo dos que me batiam, eu tinha muito tempo para pensar. Em uma das minhas reflexões diárias, tinha considerado que, além de conseguir a melhor forma física e de tentar melhorar minha técnica e velocidade, deveria também enrijecer meu corpo e acostumá-lo aos golpes. Por isso, acrescentei a minha rotinha uma série de golpes com punhos, cotovelos, canela e dorso da mão na parede, usando pedaços de pano como atadura e começando com menos intensidade. Às vezes, exagerava com os golpes e ficava com alguma parte do corpo inchada por alguns dias, mas considerava isso necessário para ensinar a meu corpo a superar a dor. Quando meu ânimo fraquejava no treinamento, eu só tinha que me lembrar de alguns dos meus inimigos antagônicos da juventude ou de qualquer uma das surras recebidas; de mim no chão, sendo alvo de pontapés e golpes, encolhido como um animal e esperando que tudo acabasse. Então, aumentava o ímpeto dos golpes, o esforço do treinamento, tirando forças da fúria, ânimo do medo, intensidade do desespero.
Também tinha que aumentar muito minha resistência, por isso, dedicava meu tempo a correr sem parar no pátio; o que meus perseguidores comemoravam com piadas e risadas porque deviam pensar que eu estava treinando para fugir deles. Para mim, ao mesmo tempo, servia como terapia. Nem sempre gostei de correr. Logo que comecei a treinar boxe em Madri, tive que acrescentar rotinas de corrida para ganhar resistência e poder aguentar de pé um combate completo. Era extenuante, mas necessário. No fim, correr meia hora todos os dias se provou um alívio estabelecido para doutrinar meu corpo e mente.
Logo seria meu momento e a situação mudaria completamente. Logo essas risadas se transformariam e gritos. Gritos de dor. Pelo menos era nisso que eu acreditava. Era isso ou a morte.
Não havia outra alternativa.
Cingapura 4
Finalmente, segunda-feira. Primeiro dia de trabalho. Levantei às seis e meia da manhã, comecei o dia com café, cereais e um copo de suco. Um café da manhã completo. Meus colegas de apartamento me contaram, enquanto isso, que o que eles, e muita gente, costumavam fazer era tomar café da manhã no trabalho, na cafeteria da empresa, onde havia bebidas, frutas, pães e bolos grátis, ou nos estabelecimentos do edifício, se queiram algo diferente. Assim, podiam conversar um pouco com os colegas antes de começar o trabalho. Às vezes tinha gente que tomava de café, principalmente da Ásia, o mesmo que comemos nas outras refeições: macarrão, sopas, legumes refogados Era muito curioso vê-los comer assim a essa hora da manhã. Me vesti e esperei dez minutos até que os outros estivessem prontos.
Entre uma coisa e outra, nos atrapalhamos e decidimos pegar um táxi para o trabalho. Por apenas dez dólares cingapurenses, que Josele pagou, em quinze minutos estávamos à porta do nosso edifício, em uma pracinha que havia na entrada, como a dos hotéis onde paravam os carros para se descarregar as malas.
A área era um complexo de quatro arranha-céus de cor branca com planta octogonal chamado Raffles City Tower. Pelo visto, era um conglomerado com shopping, escritórios, centro de convenções, restaurantes e dois hotéis que ocupavam duas das torres. Cada edifício devia ter quarenta ou quarenta e cinco andares. Impressionante. À direita da entrada onde estávamos havia um bar que se chamava Salt Tapas & Bar, um nome premonitório para os espanhóis, como o da nossa casa. O destino, no qual não acreditava, parecia me dizer que eu estava onde tinha de estar.
Nossos escritórios ficavam no 36º andar da torre de escritóriosRaffles City Tower. A vista devia ser espetacular. Na entrada, como era meu primeiro dia, tiveram que me identificar e criar meu cartão de acesso permanente. Quando me entregaram, subimos de elevador até o escritório. Nosso andar tinha a vista livre, quase sem paredes, salvo pelas salas de reunião. Enquanto me levavam até onde estava aquele que seria meu gerente, cruzei com Teresa e Diego. Nos cumprimentamos rapidamente e combinamos de nos ver em breve na cafeteria do andar. Depois, Dámaso foi para sua mesa trabalhar e Josele me levou até Amit Dabrai, um indiano que era meu novo chefe.
Amit era uma pessoa muito seca e prepotente. Ele me contou em linhas gerais em que consistia o projeto como se estivesse me fazendo um favor e me mostrou meu posto de trabalho, onde meu notebook já estava me esperando. Assinei todos os papeis da entrega do computador e do celular e me instalei em meu lugar. Amit compartilhou comigo uma pasta na nuvem como toda a documentação e me disse que Jérôme, a quem me apresentou como o colega no projeto que tinha me designado, me contaria o que era mais importante ler para começar. Nisso, sim, ele insistiu que eu devia me colocar a par muito rápido e que esperava que naquela mesma semana eu começasse a trabalhar a todo vapor. Grande chefe arrogante e sério que me deram! Me lembrava muito um que tive em um projeto na Espanha.
Jérôme, que era francês, acabou sendo um cara totalmente diferente de Amit. Ele era doido, mas muito louco. Defini-lo como extrovertido era dizer o mínimo. Além disso, ele tinha um entusiasmo e uma vitalidade contagiosas e parecia estar sempre de bom humor. Falava um inglês com marcadíssimo sotaque francês me custou acostumar-me a ele e escutá-lo sem rir. Ele me disse quais eram os principais documentos que deveria ler e me fez uma apresentação do projeto de quase uma hora, destacando o que era importante de verdade: em que consistia, o que se esperava de nós, em que ponto dele estávamos e quais eram os próximos passos que tínhamos que dar. Tudo isso depois de ir ao refeitório e conversar animadamente com Tere e Diego.
No meio da manhã, Josele me acompanhou até uma filial do banco POSB para eu abrir uma conta. Ele tinha conta no mesmo banco, que era um estatal do departamento de correios que funcionava muito bem. Segundo tinha me contado, por ser um paraíso fiscal, abrir uma conta era um processo muito simples. Me pediram o número FIN, que era como o documento de identidade. A empresa tinha agilizado para mim com o visto de trabalho, mas, pelo visto, era possível abrir uma conta sem ele e entregá-lo quando o tivesse. Tudo era fácil. Emitiram um cartão de débito para mim na hora e me deram minhas chaves para operar por internet e telefone.
Não muito longe havia um escritório exclusivo para banco privado.
Ali, com um bom maço de notas, não é necessário nem identificarem você disse Josele, olhando para mim com uma cara travessa. Ainda que não possam dizer isso abertamente, claro. Essa gente facilita tudo para receber dinheiro.
Que nada, espero conseguir ser cliente deles assegurei, rindo.
Uma vez feitos os trâmites, voltamos para o escritório.
Cingapura 5
Josele se aproximou sorridente da minha mesa no trabalho.