As Lendas Da Deusa Mãe - Pedro Ceinos Arcones 2 стр.


Os povos que vivem na China falam idiomas que pertencem principalmente a três famílias linguísticas2:

a) Família sino tibetana.

Pertencem a ela a maior parte dos idiomas falados pelos povos da China. Seus principais grupos são:

1. Sínico. Ao qual pertencem os chineses e seus dialetos.

2. Tibeto - birmanês. É falado por diversos povos que vivem no oeste da China, no Tibet, e nas regiões próximas dos países vizinhos. São geralmente povos da montanha que, acredita-se que habitavam o oeste e noroeste da China, e que foram imigrando para o sul nos últimos 2.000 anos. Entre eles temos os tibetanos, Yi, Lahu, Lisu, Naxi.

3. Miao-Yao. Falado por povos considerados Miao (uma parte deles são chamados de Hmong fora da China) e Yao. Acredita-se que viviam nos tempos históricos na bacia média do rio Yangtze, e emigraram para o sul, para regiões cada vez mais isoladas, fugindo da pressão colonizadora dos chineses.

- Zhuang Dong. Também chamado Kam-Thai3. Falado por vários povos do sul da China e do sudeste da Ásia, populações que vivem nas terras baixas e cultivam o arroz, possivelmente descendentes dos antigos Baiyue que viviam no sul da China, como os tailandeses da Tailândia, os Laosianos, e os Dai e os Zhuang da China, etc.

b) Família altaica.

Pertencem a essa família a maior parte dos idiomas falados no norte da China, Mongólia e sul da Sibéria. Seus principais grupos são:

1. Turco. Falado na China pelos Uygures e povos relacionados a eles, e pelos turcos da Turquia.

2. Mongol. Falado pelos Mongóis e outros povos vizinhos.

3. Man-Tungus. Falado pelos Manchúes e grupos étnicos de origem Tungus, que como eles, vivam originalmente nas florestas no nordeste da China e no sudeste da Sibéria.

c) Família austronésica.

Pertencem a essa família os idiomas falados na China somente por alguns grupos étnicos que vivem no extremo sul, e nas montanhas próximas a fronteira com o Laos e Birmânia. Todos seus idiomas pertencem ao grupo Mon-Khmer. São falados pelos Wa, Bulang e Deang.

Com essas três famílias de idiomas e seus grupos temos um total de oito grandes entidades linguísticas na China. É importante ressaltar esses oito grupos linguísticos, porque as características culturais compartilhadas pelos povos que falam línguas pertencentes a mesma família linguística são muito vagas; enquanto que entre os povos que falam as línguas pertencentes a cada um desses oito grupos linguísticos, encontramos um bom número de semelhanças culturais, que enquadram-se nas características comuns dos seus idiomas, (como fez Li Jinfang4 para as línguas Zhuang - Dong), que podem ajudar a reconstruir, em parte, uma cultura antiga comum, da qual todos eles tiraram um bom número de elementos.

Naturalmente, ao estudar a mitologia desses oito grupos linguísticos, descobrimos que os povos que falam línguas que pertencem a cada um desses grupos, compartilham uma série de mitos em comum. Outros mitos, com suas variações lógicas, são comuns a todas as etnias que pertencem à mesma família linguística, e há até mesmo motivos míticos que são compartilhados por todos os povos da China.

Essa correspondência entre os mitos dos povos que vivem em territórios relativamente próximos, e que ao longo da história interagiram por muito tempo, não surpreenderá nenhum leitor interessado pela mitologia porque, desde o século XIX tem sido estudada com certa profundidade a difusão universal de alguns motivos míticos dando origem a uma série de classificações, como a de Aarne-Thompsnon5, que permite de alguma forma enquadrar cada mito ou conto em um modelo predeterminado. No fim das contas todos são produtos surgidos do intelecto da mesma espécie: o ser humano.

Mas por outro lado, enquanto que um grande número de mitos e motivos míticos são compartilhados por tantos povos, que poderia dizer que são universalmente difundidos, outros são tão particulares que não resta dúvida que definem as características essenciais de povos diferentes6.

2. As deusas na antiguidade

O estudo da existência e importância das deusas nas antigas sociedades se iniciou, de alguma forma, no século XIX, tanto por estudiosos da antiga cultura europeia, especialmente Bachofen7, que sugere a existência de uma sociedade matriarcal arcaica na Europa, quanto pela difusão dos primeiros estudos antropológicos sérios sobre povos um tanto distantes da nossa órbita cultural, especialmente Morgan e seu estudo da família entre os iroqueses8. Os trabalhos de Morgan tiveram grande influência sobre Marx e Engels9, e através deles, sobre todo o universo cultural relacionado ao comunismo. De tal forma que, nos países onde triunfou a crença comunista, logo se propagou o dogma de que a evolução das sociedades humanas passava necessariamente por uma série de fases, sendo a primeira delas, a sociedade matriarcal.

Os inconvenientes desse dogma são múltiplos. Por um lado, por ser um ato de fé, elimina qualquer reflexão posterior, com a desvantagem de que poder ser rejeitado quando os altos e baixos políticos assim exigirem. Segundo porque ao colocar no passado remoto, em épocas das quais não sabemos nada, no tempo em que a mulher dominava ou desempenhava um papel igualitário na sociedade, e afirmar que essa fase havia passado tornando-a histórica através das leis, podia-se considerar que acabar com a igualdade de gênero era um passo necessário para iniciar o caminho que acabaria conduzindo a uma sociedade ideal10.

Enquanto esses acontecimentos iam delineando a situação política da mulher nas sociedades modernas, o descobrimento de restos arqueológicos de culturas até pouco tempo desconhecidas ou compreendidas, e a publicação de muitos trabalhos sobre as civilizações antigas e outras culturas contemporâneas ignoradas pelo Ocidente, apresentava para o leitor interessado um amplo leque de provas que, demonstram em alguns casos ou só sugerem em outros, a humanidade, em tempos anteriores ao culto aos deuses, efetivamente passou por uma época de culto às deusas.

O conhecimento das Vênus paleolíticas desenterradas em todo território geográfico europeu, a evolução do papel primordial que tinha Ishtar e as outras deusas dos povos sumérios e babilônicos, as divindades femininas recuperadas em Catal Huyuk (Turquia) e Creta, as antigas deusas da remota Europa descobertas por Gimbutas11, e até mesmo a visão da bíblia como uma descrição da contínua luta realizada em terras da Palestina para banir os cultos femininos12, são conceitos que vão ressoando nas mentes mais abertas do Ocidente. Entretanto, os estudos sobre a China não pareciam dar qualquer informação interessante sobre um fato histórico que ainda influência de forma decisiva a nossa vida atual.

3. A importância das culturas das minorias no conhecimento da cultura antiga da China.

Faz alguns anos que os pesquisadores ocidentais descobriram que muitos dos aspectos da cultura tradicional chinesa, que haviam desaparecido entre os próprios chineses, se mantinham presentes entre os povos da periferia do seu império. Isso ocorreu devido a duas circunstâncias: o longo contato mantido entre os chineses e os outros grupos étnicos que viviam nas proximidades, e o zelo com que esses grupos étnicos conservam as suas tradições. Enquanto alguns autores apontam a relação entre essas culturas indígenas e a cultura chinesa,13 outros postulam a utilidade de estudar essas sociedades para conhecer a cultura chinesa dos tempos antigos.

Nessa mesma linha, Maspero14 baseia-se no estudo das populações Dai do norte do Vietnã (Tai negros), para propor um modelo de sociedade agrícola da China da dinastia Zhou. Outros autores, tais como Ma Kui15, seguiram esse exemplo, e comparando os sistemas de posse de terras entre os atuais Dai de Xishuangbanna, com o descrito nos livros clássicos para a dinastia Zhou do Oeste, vê-se semelhanças que são difíceis de atribuir ao acaso.

3. A importância das culturas das minorias no conhecimento da cultura antiga da China.

Faz alguns anos que os pesquisadores ocidentais descobriram que muitos dos aspectos da cultura tradicional chinesa, que haviam desaparecido entre os próprios chineses, se mantinham presentes entre os povos da periferia do seu império. Isso ocorreu devido a duas circunstâncias: o longo contato mantido entre os chineses e os outros grupos étnicos que viviam nas proximidades, e o zelo com que esses grupos étnicos conservam as suas tradições. Enquanto alguns autores apontam a relação entre essas culturas indígenas e a cultura chinesa,13 outros postulam a utilidade de estudar essas sociedades para conhecer a cultura chinesa dos tempos antigos.

Nessa mesma linha, Maspero14 baseia-se no estudo das populações Dai do norte do Vietnã (Tai negros), para propor um modelo de sociedade agrícola da China da dinastia Zhou. Outros autores, tais como Ma Kui15, seguiram esse exemplo, e comparando os sistemas de posse de terras entre os atuais Dai de Xishuangbanna, com o descrito nos livros clássicos para a dinastia Zhou do Oeste, vê-se semelhanças que são difíceis de atribuir ao acaso.

Entre os estudiosos da religião taoísta, por outro lado, o conhecimento dos rituais e práticas religiosas dos povos Yao, é de valor incalculável porque considera-se que eles mantêm inalterada a religião taoísta tal como se praticava na China há oito séculos. Outro exemplo são os cultos da religião Benzu dos Bai, por meio do qual cada aldeia adora uma série de heróis locais, em torno dos quais foi construída um ritual e uma mitologia elaborada, que na realidade tem diversas semelhanças com os cultos às divindades locais da China, cujo exemplo mais visível foram os chamados Templos dos Deuses da Cidade (chenghuangmiao) presentes em todas as cidades chinesas. O sistema de atribuir a diferentes divindades o governo e o controle de diferentes doenças, que é descrito por Doré16, está praticamente traçado entre os Nu e outros povos do sudeste da China, que ainda hoje pensam que cada divindade regula um tipo de doença e que para curá-la, é necessário realizar uma série de rituais em sua homenagem, rituais dos quais não tenho conhecimento sobre estudos efetivos quanto a sua possível utilidade terapêutica. No entanto, é interessante ponderar o efeito que a ingestão maciça de proteínas pode ter sobre um organismo doente em sociedades onde a carne nunca fez parte da dieta cotidiana (muito menos fresca).

Quanto mais se estudam as minorias e a cultura antiga da China, mais e mais relações aparecem, de tal forma que poderíamos multiplicar os exemplos.

É perfeitamente normal pensar que uma série de características culturais chinesas tenham sido transmitidas aos povos de culturas minoritárias, ainda mais se considerarmos que a cultura chinesa era a cultura do grande e poderoso império, cujos imperadores dominavam esses povos, e que era tecnológica e economicamente mais avançada. Estranho seria pensar que, apesar dos séculos de relacionamento entre os chineses e os povos da periferia do império, este último havia se negado completamente a aceitar qualquer influência externa. Também deve-se considerar que, outro conjunto de características da cultura chinesa que hoje encontramos entre povos distantes, no passado, poderiam ser simplesmente parte da herança comum dos povos que viviam perto. Porque essa cultura majoritária Han formou-se como uma fusão das culturas do norte (que sem dúvida têm semelhanças com os antepassados dos povos manchúes e mongóis), do oeste (relacionado aos povos Qiang e proto tibeto-birmanese) e do sul (em uma margem do Yangtze, outrora lar dos antepassados dos povos Zhuang Dong e Miao Yao).

Essa relação entre a cultura chinesa e a das minorias, nos permite afirmar que, ao apresentar esses mitos e contos ao leitor ocidental, não só lhe damos o conhecimento da literatura e pensamento dos povos situados na periferia dos processos culturais, mas também contribuímos para fomentar o debate sobre a existência de um estado matriarcal nas sociedades primitivas da China, bem como a forma como ele desapareceu; e com isso, oferecemos novos materiais para debater sobre a possibilidade de que as sociedades matriarcais tenham existido de forma generalizada, antes do estabelecimento dos modelos de dominação masculina.

4. A utilidade dos mitos para descobrir os valores predominantes em uma sociedade.

Sob o termo mitologia incluimos uma das mais variadas produções do intelecto humano, caracterizada pela forma como define a concepção que uma sociedade tem de si mesma. Como muitos autores têm destacado, os mitos podem ter uma origem muito distinta: desde o endeusamento de personagens históricos, como apontado por Evhemero17 há muitos séculos atrás, a personificação de fenômenos solares, a expressão de experiências psicológicas, a representação das fases evolutivas das pessoas, a idealização dos processos históricos e muito mais. O mais importante não é a sua origem, mas a sua função socializadora que os transforma em adaptadores das pessoas à sociedade em que vivem.

Cito somente alguns autores que se dedicaram a estudar esse assunto, seguindo Juan Carlos Ochoa Abaurre em sua tese de doutorado18: O mito configurou um modelo de comportamento que regulou a interação social, a forma de conhecimento do mundo e do além; Creuze afirmava que o mito contém uma misteriosa verdade que abriga formas simbólicas de pensamento natural; Von Schelling considerou...o mito como uma realidade que incide (e deve incidir) sempre e de maneira positiva no presente; Malinowski... interpretou o mito... como: histórias que afetam decisivamente toda a sociedade.

Ainda que normalmente vejamos a palavra mito associada ao estudo das culturas distantes no tempo e no espaço, diversos autores, entre eles Barthes19, apontaram a importância do mito na formação do suporte ideológico das sociedades modernas. Outros pensadores apontaram a influência do mito na formação de determinadas sociedades e culturas, de tal forma que, podemos afirmar que, qualquer que seja a sua origem e seu verdadeiro significado os mitos marcam e modelam as ideias e comportamentos da sociedade.

É difícil pensar que em uma sociedade onde, em cada uma das cerimônias mais profundas, se escute sobre a bondade de alguns deuses masculinos e a maldade de algumas divindades femininas, as mulheres possam alcançar um papel igualitário. Igualmente, é difícil imaginar que em outra, onde o louvor às deusas e às mulheres ancestrais estavam na ordem do dia, as mulheres tenham sofrido uma grande discriminação. A esse respeito disse Engels: O papel da mulher nos mitos demonstra que nos tempos antigos a mulher gozava de maior liberdade e recebia mais respeito.

De fato, o estudo dos mitos e culturas das minorias na China não deixa dúvidas sobre essas afirmações. Os trabalhos de Du Shanshan20, por exemplo, nos mostram que entre os Lahu, com sua manifesta igualdade, a criação é um trabalho de duas divindades, uma masculina e outra feminina. No entanto, também vemos no trabalho dessa outra autora que, de acordo com a própria sociedade Lahu, as mulheres estão perdendo a sua importância devido a influência da cultura chinesa, suas divindades criadoras estão se transformando em um só deus masculino, com o nome ainda composto, que prepara psicologicamente para futuras transformações.

Entre os Moso, onde a mulher ainda conserva um papel importante na vida social, descobrimos que sua divindade principal é uma deusa, Gemu. Outro conjunto de deusas governam as montanhas e as águas, monopolizando, como é natural, seu fervor religioso.

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