No dia depois da sua liberação de maio de 2002, através de alguns contatos que tinha com a dissidência birmanesa, conseguiu fazer-lhe chegar uma série de perguntas para uma entrevista âà distânciaâ via e-mail.
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Ãs dez da manhã de ontem, silenciosamente, os guardas que estacionavam em frente à residência de Aung San Suu Kyi, lÃder da dissidência democrática birmanesa, voltaram ao seu quartel. Assim, com um movimento de surpresa, a junta militar de Rangoon revogou as restrições à liberdade de movimento da lÃder pacifista, âa Senhoraâ como a chamamos simplesmente na Birmânia, prêmio Nobel da Paz em 1991, em prisão domiciliar do distante vinte de julho de 1989.
Das dez da manhã de ontem, então, depois de quase treze anos, Aung San Suu Kyi está livre para sair da Casa no lago, de se comunicar com qualquer pessoa, de fazer polÃtica, de ver os seus filhos.
Mas, realmente acabou o terrÃvel isolamento da âapaixonada birmanesaâ? A oposição no exÃlio não acredita ainda à s altas declarações da junta militar que declarou liberá-la sem condições.
Incrédulos, os exilados birmaneses esperam. E rezam. Desde ontem, de fato, a diáspora birmanesa convocou manifestações de orações em todos os templos budistas da Tailândia e da Ãsia Oriental.
Ela, a Senhora , assim que voltou em liberdade não perdeu tempo. Alcançou logo de carro o quartel geral do seu partido, aquela Liga nacional pela democracia ( lnd ), que nas eleições de 1990, obteve uma esmagadora vitória (oitenta por cento dos votos), enquanto o Partido do governo da unidade nacional se adjudicou apenas dez cadeiras de 485. O governo militar anulou o resultado das eleições, proibiu as atividades da oposição, reprimiu violentamente as manifestações das praças e os lÃderes da oposição foram presos ou exilados. O parlamento nunca foi convocado.
A edição italiana da sua autobiografia se intitula âLibera dalla pauraâ. Sente-se assim, agora?
Agora, pela primeira vez há mais de dez anos, me sinto livre. Fisicamente livre. Livre principalmente para agir e pensar. Como explico no meu livro, são muitos anos afinal que me sentia "livre do medo". De quando tinha entendido que os abusos de poder da ditadura aqui no meu paÃs podiam nos ferir, humilhar, até nos matar. Mas não podiam mais nos amedrontar.
Hoje, assim que foi libertada, logo declarou de não ter sido submetida a condições e que a junta militar no poder a autorizou a ficar também no exterior. Acredita nisso realmente?
Um porta-voz da junta, em um comunicado por escrito anunciado ontem à noite, anunciou a abertura âde uma nova página para o povo de Myanmar e para a comunidade internacionalâ. Nos últimos meses, foram liberados centenas de prisioneiros polÃticos e os militares me garantiram que continuarão a liberar aqueles que - eles dizem â «não representam um perigo para a comunidade». Todos aqui querem acreditar, querem esperar que isto seja realmente o sinal da mudança. A retomada daquele caminho para a democracia interrompida bruscamente com a violência com o golpe de Estado de 1990. Mas nunca esquecida no ânimo do povo birmanês.
Agora que foi liberada, não teme ser expulsa, afastadas pelos seus sustentadores ?
Deve ficar claro que eu não irei embora. Eu sou birmanesa, renunciei à cidadania britânica exatamente para não oferecer desculpas ao regime. Não tenho medo. E isso me dá força. Mas o povo tem fome, por isso tem medo e assim se torna fraca.
Você, por mais vezes e com força, denunciou as intimidações dos militares contra os simpatizantes da Liga para a democracia. Tudo isso continua ainda hoje?
De acordo com os dados em nossa posse, só em 2001 o exército deteve mais de mil militantes da oposição por ordem dos generais do slorc . Muitos outros foram obrigados a demitir-se da Liga depois de ter sofrido intimidações, ameaças, pressões ilegais para as quais não existe nenhuma justificação. A estratégia de ação é sempre a mesma, capilar: unidade de funcionários estatais espalhados em todo o território nacional vão âporta à portaâ para as casas pedindo aos cidadãos para deixar a Liga . As famÃlias que se negam são chantageadas com o espectro da perda do trabalho e, com frequência, com ameaças explÃcitas. Muitas seções do partido foram fechadas e todos os dias os militares controlam o número de quantos se demitiram. Isto demonstra quanto medo ele têm da Liga . A esperança neste momento é, para nós todos, que tudo isso tenha realmente acabado.
A virada de hoje, o acontecimento da sua liberação, a colheu de surpresa ou se tratou de algo atentamente preparado e estudado pelos militares por questões de âimagemâ internacional?
De 95 até hoje, o isolamento da Birmânia pouco a pouco se desfez, o Ateneu de Rangoon foi reaberto e talvez o nÃvel de vida melhorou levemente; mas a história da Birmânia continua a se desenvolver no quotidiano feito de violências, ilegalidades e abusos tanto contra os dissidentes quanto contra as minorias étnicas (Shan, We, Kajn) na busca de autonomias e, em geral, contra a maior parte da sua população. Os militares estão sempre mais em dificuldades, tanto no plano interno quanto naquele internacional. Neste Ãnterim, continuam a traficar droga, a menos que não consigam substituir esta rentável fonte de renda com uma outra, igualmente lucrativa. Mas qual? A nação é praticamente um imenso cofre do qual só o exército conhece a combinação. E não será fácil convencer os generais a dividir esta riqueza com os outros cinquenta milhões de birmaneses.
A este ponto, quais são as suas condições para começar o diálogo ?
Não aceitaremos nenhuma iniciativa - fala-se também de eleições convocadas pelos generais - até que seja reunido o Parlamento eleito em 90. O meu PaÃs continua dominado pelo medo. Não haverá paz verdadeira até que não existirá um verdadeiro empenho que honra todos aqueles que lutaram por uma Birmânia livre e independente, mesmo se com a grande consciência que paz e reconciliação não possam ser alcançadas uma vez por todas e por isso é necessária uma vigilância sempre mais atenta, maior coragem e a capacidade de desenvolver em nós mesmos a verdadeira resistência ativa e não violenta.
O que pode fazer a União Europeia para ajudar o povo birmanês?
Continuar a fazer pressão, porque os generais devem saber que o mundo olha para eles e que não podem cometer impunemente outros atos vergonhosos.
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Finalmente, no dia treze de novembro de 2010, Aung San Suu Kyi foi definitivamente solta. Em 2012, obteve uma cadeira no parlamento birmanês e no dia dezesseis de junho do mesmo ano, pode receber o prêmio Nobel pela Paz. Como o governo lhe concedeu finalmente a permissão de ir para o exterior, foi para a Inglaterra, para se encontrar com o filho que não via há anos.
Em seis de abril de 2016, se tornou Conselheira de Estado (Primeira Ministra) de Myanmar.
A Birmânia, hoje Myanmar, não é ainda um paÃs completamente livre e o passado ditatorial pesa na história e no futuro da nação. Mas algo mais de uma esperança de liberdade e democracia se abriu afinal no paÃs dos Mil Pagodes.
7
Lucia Pinochet
â Asasinar, torturar y hacer desaparecir â
Santiago do Cile, março 1999 .
«Pinochet? Para os clientes é como um câncer. Um mal obscuro..., doloroso. Nós sabemos que o temos, mas temos medo até de falar nele, pronunciar o seu nome. Assim acabamos em fazer de conta que não existe. Talvez esperamos que ignorando-o, este mal vá embora sozinho, sem termos que enfrentá-lo...». A moça que serve à s mesas do Cafè El Biografo , ponto de encontro de poetas e estudantes, no Barrio pitoresco de Bellavista em Santiago, o bairro dos artistas e dos velhos restaurantes, com as suas casas coloridas, terá um pouco mais de vinte anos. Talvez ainda nem tivesse nascido quando o general Augusto Pinochet Ugarte, o âSenador vitalÃcioâ, como o chamam aqui, ordenava âasasinar, torturar y hacer desaparecirâ os seus opositores - como gritam os familiares dos mais de três mil desaparecidos - ou enquanto providenciava com punho de ferro âliberar o Chile da ameaça do bolchevismo internacionalâ, como garantem os seus admiradores. Porém é ela mesma a querer falar-me de Pinochet e tem as ideias claras: «Tudo aqui é Pinochet. Prós ou contras, mas em cada aspecto da vida do Chile existe ele, o general. à na polÃtica, claro. à na memória de todos, nos contos dos meus pais, nos discursos dos professores na escola. E é nos romances, nos livros... no cinema. Sim também o cinema, aqui no Chile, se faz prós ou contras Pinochet. E nós continuamos a fazer de conta que não existe...».
Já, este ancião senhor obstinado, que enfrenta âcom dignidade de soldadoâ a justiça britânica («...pobre velho!» sussurrou-me no ouvido o porteiro do âCirculo de la Prensaâ, onde os fidelÃssimos do Senador vitalÃcio , nos anos obscuros da ditadura militar, vinham âretirarâ os jornalistas irritados, exatamente atrás do palácio da Moneda onde morreu Salvador Allende, perseguido pelo golpe do General), esse âpobre velhoâ que aliás, no Chile do Terceiro milênio, se torna um colosso incômodo, que ocupa com os seus cais cada bairro, cada esquina, cada rua dessa cidade, Santiago, que aparece como incerta, dobrada sobre si mesma.
E depois é ele a memória vÃvida deste PaÃs, uma memória imensa, invasora, embaraçosa para os seus sustentadores e que incomoda aos seus difamadores. Uma memória que se expande pegajosa como um blob nas vidas, nas esperanças e dores, no passado e no futuro dos chilenos.
Em outubro de 1998, ao se tornar senador, poucos meses depois do abandono do papel de chefe do exército, enquanto estava em Londres para alguns tratamentos médicos, Pinochet é preso e colocado em prisão domiciliar. Antes na clÃnica, na qual tinha acabado de sofrer uma intervenção cirúrgica na coluna, depois em uma residência em locação.
O mandato de prisão internacional foi assinado por um juiz espanhol, Baltasar Garzón, por crimes contra a humanidade. As acusações incluÃam quase cem casos de tortura contra cidadãos espanhóis e um caso de conspiração por cometer tortura. A Grã Bretanha tinha recentemente assinado a Convenção internacional contra a tortura e todas as acusações eram por fatos ocorridos nos últimos quatorze meses do seu regime.
O governo do Chile se opôs logo à prisão, à extradição e ao processo. Foi iniciada uma dura batalha legal na Câmara dos Lordes, o órgão máximo jurisdicional britânico, que durou dezesseis meses. Pinochet reivindicou a imunidade diplomática como ex-chefe de Estado, mas os Lordes a negaram em consideração à gravidade das acusações e concederam a extradição, mesmo com vários limites. Pouco tempo depois, porém uma segunda pronúncia dos mesmos Lordes permitiu à Pinochet evitar a extradição por causa das suas precárias condições de saúde (tinha oitenta e dois anos no momento da sua prisão), por motivos definidos âhumanitáriosâ. Depois de alguns acertos sanitários, o então ministro do exterior britânico Jack Straw permitiu à Pinochet, depois de quase dois anos de prisão domiciliar ou na clÃnica, voltar para o seu PaÃs, em março de 2000.
Durante este intricado caso legal internacional, no fim de março de 1999, fui à Santiago para acompanhar a evolução da situação para o jornal Il Tempo , e para encontrar a filha mais velha do Senador vitalÃcio , Lucia. A Câmara dos Lordes tinha acabado de negar a imunidade à Pinochet e o avião que â na esperança da famÃlia e dos apoiadores do general - deveria levá-lo de volta ao Chile, chegava sem ele.
A reação pelas ruas de Santiago foi imediata. Em vinte e quatro de março a capital chilena tinha esperado a sentença com a respiração suspensa, mesmo se não como uma cidade blindada. Enquanto uma discreta presença de âCarabinerosâ, controlava os pontos quentes da capital chilena - o palácio presidencial da Moneda, as embaixadas da Grã Bretanha e Espanha e as sedes das associações pró e contra o Senador vitalÃcio - os chilenos acompanhavam minuto a minuto o ocorrido através da cobertura maciça que todas as redes nacionais lhe dedicavam. A atenção era aquela dirigida a um evento histórico, com conexões diretas via satélite de Londres, Madri e diversos pontos de Santiago, iniciados perto das sete da manhã e que continuaram por todo o dia. Pouco menos de uma hora depois da decisão dos Lordes, por volta de meio-dia local, dois jornais da tarde já estavam prontos com uma edição extraordinária. Um deles trazia o tÃtulo assim, eficaz, na primeira página: «Pinochet perdeu e venceu».
Nos momentos cruciais da manhã muitos santiaguinos tinham se juntado em torno às televisões instalados um pouco em todos os locais públicos, dos McDonald's aos bares menores. Em uma grande loja do centro tinha se reunido uma multidão revoltada de clientes quando, furiosos, forçaram verbalmente o gerente para obrigá-lo a sintonizar a televisão na transmissão direta de Londres.
No fim da tarde a situação que até então tinha se mantido calma, começava a mostrar os primeiros sinais de tensão. Ãs dezesseis, hora de Santiago, ocorriam os primeiros confrontos entre estudantes e polÃcia no centro da capital, no cruzamento entre a Alameda
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Muitos os apelos à calma, principalmente por parte dos expoentes do governo. Também as declarações ameaçadoras do general Fernando Rojas Vender, (o piloto que bombardeou o palácio presidencial da Moneda), comandante da Força Aérea Chilena, a fidelÃssima FACH, que na terça-feira antes tinha sustentado publicamente que no PaÃs estava se preparando um clima «parecido com aquele do Golpe de Estado de 73», tinham sido asperamente censuradas pelo Governo, que tinha até forçado Rojas a uma retificação pública.
Agora, a atenção se deslocava para a decisão do Ministro britânico da justiça, Straw. E em torno à sua figura já tinham se colocado em movimento todos os aparatos publicitários dos apoiadores de Pinochet, que apontavam «fazer com que Straw tivesse o mesmo fim do Lord Hofmann», desacreditar o Ministro britânico acusado de ter manifestado, na juventude, fortes e públicas simpatias pela esquerda chilena, no curso de uma sua viagem ao Chile com a idade de trinta e três anos. Havia até quem sustentasse poder fornecer provas de um encontra amigável entre o jovem Straw e o então presidente Allende, que o teria convidado para tomar um chá.
Enfim, os assuntos a enfrentar, eu pensava, enquanto caminhava para a casa de Lucia Pinochet, não faltavam.
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Inés Lucia Pinochet Hiriart é a filha mais velha. Uma bela senhora, que traz muito bem a sua idade e ainda melhor o seu sobrenome. Um gesso banal a impediu de estar ela também, como os seus irmãos, ao lado do pai, em Londres. Assim, sem poder ajudá-lo, coube-lhe na sorte permanecer aqui em Santiago, para representar, e principalmente defender, a figura do Senador, em um momento certamente não fácil.
Pelas janelas abertas da sua bela casa nos bairros altos, onde nos chegam as vozes dos manifestantes que gritam slogans a favor de seu pai, com os seus três rapazes ao lado, Hernan, Francisco e Rodrigo, falamos por quase uma hora dos temas âquentesâ do caso que envolve o destino de seu pai e, inevitavelmente, o futuro de todo o Chile.
O que pensa da decisão âhumanitáriaâ aplicada em relação ao seu pai?
Teria preferido que tivesse sido reconhecida ao meu pai aquela imunidade completa que lhe cabia como ex Chefe de Estado de um paÃs soberano. Em vez de um processo penal passou-se a uma discussão polÃtica sobre presumidos casos de tortura, vários crimes e genocÃdio, cedendo à s pressões dos socialistas e de gente que diz querer defender os direitos humanos.
Falou com o seu pai? Como ele reagiu?
Meu pai não está contente com a solução. Tinham-no avisado antes sobre a possibilidade de uma decisão âhumanitáriaâ. E claro, não ficou contente pelo dato que tudo tenha sido confiado ao Ministro Jack Straw...
Aquele mesmo que visitou o Chile em 1966 e, se diz aqui, foi tomar chá com Salvador Allende?
Exato, e isso já sabÃamos a tempo. Basta dizer que quando prenderam meu pai, em Londres, Straw declarou que tinha sido realizado o sonho da sua vida.