Tiffany levou Riley e April para a sala de estar. Os pais de Tiffany estavam sentados num sofá, ligeiramente separados um do outro. A sua linguagem corporal revelava alguma coisa? Riley não estava certa. Ela sabia que os casais lidavam com a dor de muitas formas diferentes.
Havia várias outras pessoas por ali, a falar umas com as outras em sussurros silenciosos. Riley pressupôs que fossem amigos e família que tivessem vindo ajudar como pudessem.
Ouviu vozes baixas e o ruído de utensílios na cozinha onde as pessoas pareciam estar a preparar comida. Através de um arco que dava para a sala de refeições, viu dois casais a arranjar fotos e recordações na mesa. Também havia várias fotos de Lois e da família em diversas idades dispostas na sala de estar.
Riley estremeceu perante o mero pensamento de que aquela rapariga estivera viva há apenas dois dias. Como é que ela se sentiria se tivesse perdido April de forma tão súbita? Era uma possibilidade assustadora e já houvera momentos em que essa possibilidade não fora uma hipótese remota.
Quem iria a sua casa ajudar e confortar?
Quereria que alguém a ajudasse e confortasse?
Abandonou estes pensamentos assim que Tiffany a apresentou aos pais, Lester e Eunice.
“Não se levantem, por favor,” Disse Riley quando o casal se começou a erguer para a cumprimentar.
Riley e April sentaram-se junto do casal. Eunice tinha a compleição sardenta e cabelo claro da filha. A compleição de Lester era mais escura e o seu rosto era longo e magro.
“Lamento muito a vossa perda,” Principiou Riley.
O casal agradeceu-lhe. Lester conseguiu forçar um pequeno sorriso.
“Nunca nos encontrámos, mas conheço o Ryan superficialmente,” Disse ele. “Como é que ele tem passado?”
Tiffany levantou-se da sua cadeira e deu um toque no braço do pai. Disse em voz baixa, “Pai, eles estão divorciados.”
O rosto de Lester corou ligeiramente.
“Oh, peço desculpa,” Disse ele.
Riley sentiu-se enrubescer.
“Não faz mal,” Disse ela. “Como as pessoas dizem hoje em dia – ‘é complicado’”.
Lester anuiu, ainda sorrindo fracamente.
Ninguém disse nada durante alguns instantes enquanto um ruído ligeiro de atividade permanecia à sua volta.
Então Tiffany disse, “Mãe, pai – a mãe da April é agente do FBI.”
Lester e Eunice ficaram atrapalhados por um momento sem saber o que dizer. Outra vez envergonhada, Riley também não sabia o que dizer. Ela sabia que April tinha ligado a Tiffany no dia anterior para lhe dizer que iriam aparecer. Parecia que Tiffany não tinha dito aos pais qual era a profissão de Riley.
Tiffany olhou para os pais e depois disse, “Pensei que talvez ela pudesse ajudar-nos a descobrir… o que realmente aconteceu.”
Lester tossicou e Eunice suspirou amargamente.
“Tiffany, já falámos sobre isto,” Disse Eunice. “Nós sabemos o que aconteceu. A polícia tem a certeza. Não temos nenhuma razão para crer no contrário.”
Lester levantou-se desequilibradamente.
“Eu não consigo lidar com isto,” Disse ele. “Eu simplesmente… não consigo.”
Virou-se e dirigiu-se à sala de refeições. Riley percebeu que os dois casais que lá se encontravam se apressaram a confortá-lo.
“Tiffany, devias ter vergonha,” Disse Eunice.
Os olhos da rapariga brilhavam com lágrimas.
“Mas eu só quero saber a verdade mãe. A Lois não se matou. Ela não podia ter feito isso. Eu sei.”
Eunice olhou para Riley.
“Peço desculpa por ter sido arrastada para esta situação,” Disse ela. “À Tiffany está a ter problemas em aceitar a verdade.”
“Tu e o pai é que não conseguem lidar com a verdade,” Disse Tiffany.
“Cala-te,” Ripostou a mãe.
Eunice deu um lenço a filha.
“Tiffany, há coisas que não sabias a respeito da Lois,” Disse ela lenta e cautelosamente. “Ela era mais infeliz do que alguma vez te deu a entender. Ela adorava a faculdade, mas não era fácil para ela. Manter as notas altas para ter direito à bolsa de estudo implicava muita pressão e também lhe era difícil estar longe de casa. Tinha começado a tomar antidepressivos e estava a ser acompanhada em Byars. O teu pai e eu pensámos que ela estivesse melhor, mas enganámo-nos.”
Tiffany tentava controlar os soluços, mas ainda parecia estar muito zangada.
“Aquela escola é um lugar horrível,” Disse ela. “Eu nunca iria para lá.”
“Não é horrível,” Disse Eunice. “É uma escola muito boa. É exigente, é tudo.”
“Aposto que as outras raparigas que lá andam não pensam que a escola seja assim tão boa,” Disse Tiffany.
April ouvia a amiga com grande preocupação.
“Que outras raparigas?” Perguntou.
“A Deanna e a Cory,” Disse Tiffany. “Elas também morreram.”
Eunice abanou a cabeça com tristeza e disse a Riley, “Duas outras raparigas cometeram suicídio em Bryars no último semestre. Foi um ano terrível lá.”
Tiffany olhou para a mãe.
“Não foram suicídios,” Disse ela. “A Lois não pensava que tivessem sido. Ela pensava que havia algo de errado com aquele lugar. Ela não sabia o que era mas disse-me que era algo muito mau.”
“Tiffany, foram suicídios,” Disse Eunice, agastada. “Todos o dizem. Essas coisas acontecem.”
Tiffany levantou-se a tremer e raiva e frustração.
“A morte da Lois não se limitou a acontecer,” Disse ela.
Eunice disse, “Quando fores mais velha, vais entender que a vida pode ser mais dura do que gostaríamos. Agora, senta-te se fizeres favor.”
Tiffany sentou-se num silêncio soturno. Eunice fixou o olhar no vazio. Riley sentiu-se tremendamente desconfortável.
“Não viémos até cá para a perturbar,” Disse Riley a Eunice. “Peço desculpa pela intrusão. Talvez seja melhor irmos embora.”
Eunice anuiu em silêncio. Riley e April saíram da casa dos Pennington.
“Devíamos ter ficado,” Disse April soturnamente assim que chegaram ao exterior. “Devíamos ter feito mais perguntas.”
“Não, só as estávamos a aborrecer,” Disse Riley. “Foi um erro terrível.”
De repente, April afastou-se dela.
“Onde vais?” Perguntou Riley, alarmada.
April dirigiu-se à porta lateral da garagem. Havia uma fita de polícia sobre o caixilho da porta.
“April, fica longe daí!” Disse Riley.
April ignorou tanto a fita como o aviso da mãe e girou a maçaneta da porta. A porta estava destrancada e abriu-se. April passou debaixo da fita e entrou na garagem. Riley foi atrás dela com a intenção de a repreender. Mas em vez disso, a sua própria curiosidade levou a melhor e começou a observar a garagem.
Não havia carros lá dentro o que tornava o espaço geralmente ocupado por três carros estranhamente cavernoso. Uma luz difusa entrava por várias janelas.
April apontou para um canto.
“A Tiffany disse-me que a Lois foi encontrada ali,” Disse April.
O local estava assinalado com fita adesiva no chão.
Debaixo do teto eram visíveis amplas vigas e um escadote encostado à parede.
“Vamos embora,” Disse Riley. “Não devíamos estar aqui.”
Conduziu a filha para o exterior e fechou a porta. Enquanto ela e April se encaminhavam para o carro, Riley visualizou a cena. Era fácil imaginar como é que a rapariga subira o escadote e se enforcara.
Ou algo diferente acontecera? Perguntou-se.
Não tinha nenhuma razão para pensar o contrário.
Mesmo assim, começava a sentir-se invadir pela dúvida.
*
Pouco depois em casa, Riley ligou para a médica legista distrital, Danica Selves. Eram amigas há anos e quando Riley a questionou sobre o caso de Lois Pennington, Danica ficou surpreendida.
“Porque é que estás tão curiosa?” Perguntou Danica. “O FBI está interessado no caso?”
“Não, é uma coisa pessoal.”
“Pessoal?”
Riley hesitou, depois disse, “A minha filha é amiga da irmã da Lois e também a conhecia. Tanto ela como a irmã da Lois não conseguem acreditar que ela tenha cometido suicídio.”
“Já percebi,” Disse Danica. “Bem, a polícia não encontrou sinais de luta e eu fiz os testes e a autópsia. De acordo com as análises de sangue, ela tomou uma dose pesada de alprazolam algum tempo antes de morrer. Creio que ela apenas queria estar o mais inconsciente possível. Quando ela se enforcou, provavelmente nem queria saber o que estava a fazer. Teria sido bem mais fácil fazê-lo dessa forma.”
“Então é realmente um caso sem história,” Disse Riley.
“É o que me parece,” Disse Danica.
Riley agraeceu-lhe e terminou a chamada. Naquele momento, April desceu as escadas com uma calculadora e um pedaço de papel.
“Mãe, acho que já sei!” Disse ela excitadamente. “A única hipótese é ter sido homicídio!”
April sentou-se ao lado de Riley e mostrou-lhe alguns números que escrevera.
“Fiz alguma pesquisa online,” Disse ela. “Descobri que em cada cem mil estudantes de faculdade, cerca de 7.5 cometem suicídio. Ou seja, corresponde a 0,075%. Mas apenas existem setecentos alunos em Byars e três supostamente mataram-se nos últimos meses. Isso corresponde a 0,43%, ou seja, cinquenta e sete vezes superior à média! É simplesmente impossível!”
Riley ficou impressionada com a forma como April estava a pensar no assunto. Parecia-lhe algo de grande maturidade.
“April, tenho a certeza que os teus cálculos estão corretos, mas..”
“Mas o quê?”
Riley abanou a cabeça. “Não prova nada.”
Os olhos de April dilataram-se incrédulos.
“O que é que queres dizer com não prova nada?”
“Em estatística, a isso chamam-se aberrações. São exceções à regra, vão contra as estatísticas. É como no último caso em que trabalhei – o envenenador, lembras-te? A maioria dos assassinos em série são homens, mas aquela era uma mulher. E a maioria dos assassinos gostam de ver as vítimas morrer, mas ela nem queria saber. É o mesmo neste caso. Não é de espantar que haja faculdades onde mais alunos se suicidem do que a média.”
April fixou-a e não disse nada.
“April, acabei de falar com a médica-legista que fez a autópsia. Ela tem a certeza de que a morte da Lois foi provocada por suicídio. E ela sabe o que faz. É uma perita. Temos que confiar no seu julgamento.”
O rosto de April estava tenso de raiva.
“Não sei porque é que não podes confiar no meu julgamento só desta vez.”
Depois afastou-se e subiu as escadas.
Pelo menos ela tem a certeza que sabe o que aconteceu, Pensou.
Isso era mais do que Riley podia dizer de si própria.
O seu instinto ainda não lhe dizia nada.
CAPÍTULO QUATRO
Tudo acontecia novamente.
O monstro chamado Peterson tinha April presa algures.
Riley lutava e procurava na escuridão. Cada passo parecia lento e pesado, mas ela sabia que tinha que se despachar.
Com a sua shotgun pendurada no ombro, Riley tropeçou no escuro numa encosta lamacenta em direção ao rio. De repente, viu-os. Peterson estava de pé com a água pelos tornozelos. A pouca distância dele, April estava meia submersa na água, com as mãos e pés atados.
Riley pegou na shotgun, mas Peterson ergueu a pistola e apontou-a diretamente a April.
“Nem penses,” Gritou Peterson. “Um movimento e acabou.”
Riley estava paralisada pelo horror. Se ela sequer levantasse a shotgun, Peterson mataria April antes que ela conseguisse disparar.
Colocou a shotgun no chão.
O terror no rosto da filha iria assombrá-la para sempre…
Riley parou de correr e debruçou-se, arfando.
Era manhã cedo e ela tinha ido correr. Mas a horrível memória tinha-a perturbado de forma indizível.
Alguma vez esqueceria aquele momento horrível?
Alguma vez deixaria de se sentir culpada por colocar April sob tal perigo?
Não, Pensou. E é como deve ser. Nunca me devo esquecer.
Inspirou e expirou o ar frio até se sentir mais calma. Depois começou a caminhar ao longo de um trilho familiar. A luz pálida da manhã passava tenuemente nas árvores.
Este trilho do parque da cidade era próximo de casa e de fácil acesso. Riley corria ali com frequência de manhã. O esforço era geralmente benéfico para afastar fantasmas e demónios de casos antigos da sua mente. Mas hoje estava a ter o efeito contrário.
Tudo o que sucedera no dia anterior – a visita aos Pennington, a ida à garagem e a revolta de April em relação a Riley – tinha trazido uma enxurrada de memórias negativas.
E tudo por minha causa, Pensou Riley, acelerando o passo.
Mas depois lembrou-se do que tinha acontecido de seguida naquele rio.
A arma de Peterson encravara e Riley espetara uma faca nas suas costelas, obrigando-o a cair na água fria. Ferido, Peterson ainda conseguiu subjugar Riley.
Depois viu April, de pulsos e pés ainda amarrados, a erguer a shotgun que Riley deixara cair. Ouvira-a estalar na cabeça de Peterson.
Mas o monstro virou-se e insurgiu-se contra April. Atirou o seu rosto para a água.
A sua filha ia afogar-se.
Riley encontrou uma pedra afiada.
Atirou-se a Peterson, esmagando a pedra na sua cabeça.
Ele caiu e ela saltou para cima dele.
Riley esmagou a pedra no rosto de Peterson vezes sem conta.
O rio escureceu com o sangue.
Estimulada pela memória, Riley correu mais rapidamente.
Tinha orgulho na filha. April demonstrara coragem e desenvoltura naquele dia terrível. E também tinha sido corajosa noutras situações perigosas.
Mas agora April estava zangada com Riley.
E Riley não conseguia evitar pensar se April não teria razão.
*
Riley sentiu-se duplamente deslocada no funeral de Lois Pennington realizado naquela tarde.
Por um lado, não era habitual ir à igreja. O pai fora um ex-Marine duro que nunca acreditara em nada ou ninguém a não ser nele próprio. Ela vivera com uma tia e tio durante um período da sua infância e adolescência, e eles tentaram encaminhá-la para a igreja, mas Riley era demasiado rebelde.
Quanto a funerais, Riley simplesmente os detestava. Vira demasiado da realidade brutal da morte durante suas duas décadas enquanto agente, por isso, para ela, os funerais eram falsos. Faziam a morte parecer tão limpa e pacífica.
É tudo enganador, não conseguia parar de pensar. A moça tinha morrido de forma violenta, por suas próprias mãos ou pelas mãos de outra pessoa.
Mas April insistira em ir e Riley não a podia deixar enfrentar aquilo sozinha. O que parecia irónico porque, naquele momento, quem se sentia só era Riley. Estava sentada junto ao corredor na última fila do santuário cheio de gente. April estava mais à frente, sentada na fila logo atrás da família, bem próxima de Tiffany. Mas Riley estava contente por April estar perto da amiga e não se importava de estar sozinha.
Raios de sol ofuscavam as janelas manchadas e o caixão à frente estava coberto de flores e várias coroas de flores. A missa fora digna e o coro cantara bem.
O pregador agora divagava sobre fé e salvação, garantindo a todos que Lois agora se encontrava em um lugar melhor. Riley não estava atenta às suas palavras. Ela olhava à sua volta para descobrir sinais indicadores do motivo por que Lois Pennington tinha morrido.
No dia anterior, tinha notado como os pais de Lois se sentavam ligeiramente afastados no sofá, sem se tocarem. Não sabia muito bem como interpretar sua linguagem corporal. Mas agora Lester Pennington tinha o braço à volta do ombro de Eunice num caloroso gesto de conforto. Os dois pareciam dois pais perfeitamente normais a sofrerem um imenso desgosto.
Se havia algo de errado com os Pennington enquanto família, Riley não conseguia captar.
E estranhamente, isso fazia com que Riley se sentisse desconfortável.
Ela se considerava uma observadora atenta da natureza humana. Se Lois tivesse realmente se suicidado, sua vida familiar devia ser turbulenta. Mas nada parecia estar errado com eles – nada mais se notava para além da dor normal.
O pregador conseguiu terminar o seu sermão sem referir uma única vez a provável causa da morte de Lois.
Depois vieram uma série de testemunhos curtos e chorosos de amigos e familiares. Falaram de dor e de tempos mais felizes, por vezes relatando momentos de humor que provocaram risos tristes na congregação.
Mas nada sobre suicídio, continuou a pensar Riley.