"Você parece uma mulher sonhando com ondas e uísque", ele falou.
"É tão óbvio assim?" Keri perguntou.
"Sou um bom detetive. Meus poderes de observação são inigualáveis. Além disso, você já mencionou seus animados planos para hoje à noite duas vezes".
"O que posso dizer? Eu sou uma mulher com objetivos, Raymond".
Ele sorriu, seu olho bom traindo uma simpatia que sua postura física escondia. Keri era a única que tinha permissão de chamá-lo por seu verdadeiro nome. Ela gostava de misturá-lo um pouco com outros apelidos, menos elogiosos. Frequentemente, ele fazia o mesmo com ela.
"Ouça, Pequena Miss Sunshine, talvez fosse melhor você usar os últimos minutos de seu turno trocando informações com a CSU sobre o caso Sanders, ao invés de ficar sonhando em beber durante o dia".
"Beber durante o dia?" ela disse, fingindo estar ofendida. "Não se trata disso se eu começar a beber depois das cinco, Homem de Aço".
Ele ia replicar quando o telefone tocou. Keri atendeu antes que Ray pudesse dizer alguma coisa e estirou a língua para ele, em tom de brincadeira.
"Pessoas Desaparecidas da Pacific Division. Detetive Locke falando".
Ray também atendeu em sua linha, mas permaneceu em silêncio.
A mulher ao telefone parecia jovem, no final dos vinte ou no início dos trinta anos. Antes mesmo que ela dissesse por que estava ligando, Keri pôde notar a preocupação em sua voz.
"Meu nome é Mia Penn. Eu moro nas imediações da Dell Avenue, nos canais de Venice. Estou preocupada com minha filha, Ashley. Ela deveria ter chegado da escola às três e meia. Ela sabia que eu a levaria para uma consulta no dentista às 16h45. Ela me enviou uma mensagem de texto logo depois de sair da escola, às três, mas ainda não chegou e não está atendendo a nenhuma de minhas ligações ou mensagens. Minha filha não costuma fazer isso, nunca. É muito responsável".
"Srª Penn, Ashley geralmente volta de carro ou a pé para casa?" Keri perguntou.
"A pé. Ela ainda está na décima série... tem 15 anos. Ainda nem começou a fazer aulas de direção".
Kery olhou para Ray. Sabia o que ele ia dizer, e não podia realmente discutir a respeito. Mas algo na voz de Mia Penn mexeu com ela. Sentia que a mulher estava quase perdendo o controle. Queria pedir a ele para dispensar o protocolo, mas não conseguia achar uma justificativa plausível para isso.
"Srª Penn, aqui é o Detetive Ray Sands. Estava na linha. Quero que a senhora respire fundo e então me diga se a sua filha já chegou em casa tarde antes".
Mia Penn desatou a falar, ignorando a parte da respiração profunda.
"É claro", ela admitiu, tentando esconder a angústia em sua voz. "Como eu falei, ela tem 15 anos. Mas sempre me mandou uma mensagem ou ligou quando se atrasava por uma hora ou coisa assim. E nunca se tínhamos um compromisso".
Ray respondeu sem levantar os olhos para Keri, que, ele sabia, olhava-o com ar de reprovação.
"Srª Penn, oficialmente, sua filha é menor de idade e, portanto, as leis típicas sobre pessoas desaparecidas não se aplicam como para um adulto. Temos uma autoridade mais ampla para investigar. Mas, falando sinceramente com a senhora, uma adolescente que não responde às mensagens de sua mãe e que não chegou em casa menos de duas horas depois de largar da escola... isso não vai dar início ao tipo de resposta imediata que a senhora espera. Neste ponto, não há muito que podemos fazer. Numa situação assim, o melhor que a senhora poderia fazer era vir até a delegacia prestar uma queixa. Faça isso. Não há problema algum e poderia facilitar o processo se precisarmos acelerar as coisas mais tarde”.
Houve uma longa pausa antes que Mia Penn respondesse. A voz dela tinha um tom afiado que não se fazia notar antes.
"Por quanto tempo eu preciso esperar antes que você 'acelere', detetive?" ela perguntou. "Mais duas horas é suficiente? Tenho que esperar até escurecer? Até a manhã seguinte? Aposto que se eu fosse..."
Seja o que for que Mia Penn ia dizer, ela se deteve, como se soubesse que qualquer outra coisa que acrescentasse seria contra-produtivo. Ray ia responder, mas Keri levantou a mão e lhe deu seu olhar já patenteado de "deixe que eu cuido disso".
"Ouça, Srª Penn, aqui é a detetive Locke novamente. A senhora falou que mora nos Canais, não foi? Fica no meu caminho para casa. Diga-me seu email. Vou enviar para a senhora o formulário de pessoas desaparecidas. Pode começar a preenchê-lo e eu vou passar aí para ajudá-la a finalizá-lo e tornar mais rápida a sua inclusão no sistema. O que acha?"
"Agradeço muito, detetive Locke. Obrigada".
"Sem problema. E, ei, talvez Ashley chegue em casa quando eu aparecer aí e eu poderei dar a ela um sermão severo sobre manter a mãe mais bem informada... e de graça".
Keri pegou sua bolsa e suas chaves, preparando-se para ir à casa de Penn.
Ray não havia dito uma palavra desde que ela desligou o telefone. Ela sabia que ele estava fervilhando por dentro, mas se recusou a levantar os olhos. Se ele a olhasse nos olhos, então, seria ela quem iria receber um sermão, e não estava a fim mesmo.
Mas, aparentemente, Ray não precisava fazer contato visual para compartilhar o que queria dizer.
"Os Canais não ficam no caminho da sua casa".
"Eles ficam só um pouquinho fora do meu caminho", ela insistiu, ainda sem levantar os olhos. "E daí que terei que esperar até seis e meia para voltar para a marina e para a Olívia Palito e Associados? Não é grande coisa".
Ray deu um suspiro e se recostou em sua cadeira.
"Sim, é grande coisa. Keri, você trabalha como detetive aqui por quase um ano. Gosto de ter você como parceira. E você já fez um ótimo trabalho, mesmo antes de conseguir seu distintivo. O caso Gonzales, por exemplo. Acho que não poderia ter resolvido e tenho investigado esse tipo de caso por mais de uma década a mais do que você. Você tem um tipo de sexto sentido sobre essas coisas. Foi por isso que a usamos como recurso nos velhos tempos. E é por isso que você tem o potencial para ser uma detetive realmente notável".
"Obrigada", ela disse, apesar de saber que ele não tinha terminado.
"Mas você tem uma fraqueza principal e ela vai arruiná-la se não a controlar. Precisa deixar o sistema funcionar. Ele existe por uma razão. 75% do nosso trabalho vai se resolver por conta própria nas primeiras 24h, sem a nossa ajuda. Precisamos deixar isso acontecer e nos concentrar nos outros 25%. Se não fizermos isso, vamos terminar exaustos. Podemos nos tornar improdutivos, ou, pior — contra-produtivos. E, desse jeito, estaremos traindo as pessoas que realmente precisam de nós. Faz parte de nosso trabalho escolher nossas batalhas".
"Ray, eu não estou pedido um alerta na mídia nacional ou coisa do tipo. Estou apenas ajudando uma mãe preocupada a preencher a papelada. E, sinceramente, fica a apenas 15 minutos do meu caminho de casa".
"E..." ele falou, aguardando.
"E havia algo na voz dela. Está escondendo algo. Apenas quero falar com ela cara a cara. Pode não ser nada. E, se não for nada, vou embora".
Ray meneou a cabeça e tentou pela última vez.
"Quantas horas você desperdiçou com aquela criança de rua em Palms que você tinha certeza de que tinha desaparecido, mas que não tinha? Quinze?"
Keri deu de ombros.
"É melhor prevenir do que remediar", ela murmurou.
"É melhor estar empregada do que ser demitida por uso inapropriado dos recursos do departamento", ele contra-argumentou.
"Já passou das cinco", Keri falou.
"E daí?"
"E daí que estou fora do meu horário de serviço. E aquela mãe está esperando por mim".
"Até parece que você nunca trabalha fora do expediente. Ligue para ela, Keri. Diga-lhe para enviar os formulários por email quando tiver terminado. Diga para ela ligar se tiver alguma dúvida. Mas vá para casa".
Keri vinha sendo o mais paciente que podia, mas, no que lhe dizia respeito, a conversa terminava ali.
"Vejo você amanhã, Sr. Tudo-nos-conformes", ela disse, apertando o braço dele.
Enquanto ela se dirigia para o estacionamento em direção ao seu Toyota Prius prata de dez anos, ela tentou se lembrar do caminho mais rápido até os Canais de Venice. E já sentia uma urgência que não conseguia compreender.
Um sentimento desagradável.
CAPÍTULO DOIS
Segunda-feira
Final da tarde
Keri dirigiu o Prius pela hora do rush até a fronteira oeste de Venice, dirigindo mais rápido do que gostaria. Algo a impulsionava, um sentimento instintivo emergia, um de que ela não gostava.
Os Canais ficavam a apenas alguns blocos dos pontos turísticos mais visitados, como a Boardwalk e Muscle Beach, e levou 10 minutos dirigindo para cima e para baixo da Pacific Avenue antes que ela finalmente encontrasse uma vaga para estacionar. Ela estacionou o carro e deixou seu celular dirigi-la pelo resto do caminho a pé.
Os Canais de Venice não são apenas o nome de um bairro. Eles consistem num conjunto de canais de verdade, construídos pelo homem no início do século 20, inspirados nos canais originais da famosa cidade italiana. Eles se estendiam por cerca de dez quarteirões logo ao sul da Venice Boulevard. Algumas das casas que se alinhavam junto à superfície da água eram simples, mas a maioria era extravagante, no sentido praieiro. Os terrenos eram geralmente pequenos, mas algumas das casas valiam alguns milhões de dólares.
A casa na qual Keri chegou estava entre as mais impressionantes. Tinha três andares, e apenas a cobertura era visível, por causa da alta parede de estuque que a protegia. Ela circulou a casa partindo dos fundos, que ficava de frente para o canal, até o portão principal. Ao fazer isso, notou várias câmeras de segurança nas paredes da mansão e da casa em si. Várias delas pareciam estar monitorando seus movimentos.
Por que uma mãe de vinte e poucos anos com uma filha adolescente vive aqui? E por que uma segurança tão grande?
Ela alcançou o portão de ferro forjado da frente e se surpreendeu ao encontrá-lo aberto. Entrou e já ia bater na porta, quando ela se abriu de dentro da casa.
Uma mulher se adiantou para encontrá-la, usando jeans desfiados e uma regata branca, com cabelos castanhos longos e volumosos e pés descalços. Como Keri suspeitou ao ouvi-la ao telefone, ela não podia ter mais de 30 anos. Mais ou menos da altura de Keri e facilmente uns nove quilos mais magra, ela era bronzeada e estava em forma. E era linda, apesar da expressão angustiada em seu rosto.
O primeiro pensamento de Keri foi: esposa troféu.
"Mia Penn?" Keri perguntou.
"Sim. Por favor, entre, detetive Locke. Eu já preenchi os formulários que você enviou".
Dentro, a casa se abriu num vestíbulo imponente, com duas escadas de mármore combinando que levavam ao andar de cima. Havia espaço suficiente ali para jogar uma partida de basquete. O interior era imaculado, com obras de arte cobrindo cada parede e esculturas adornando mesas de madeira entalhadas que pareciam ser obras de arte também.
O lugar poderia aparecer na revista Casas que lhe Fazem Questionar sua Autoestima. Keri reconheceu um quadro em destaque como um Delano, que, por si só, valia mais que a patética casa-barco de 20 anos de idade que ela chamava de lar.
Mia Penn a guiou até uma das salas mais simples e ofereceu-lhe um lugar para sentar e uma garrafa de água. No canto da sala, um homem musculoso vestindo calças e blazer estava casualmente encostado na parede. Ele não disse nada, mas seus olhos não se desviavam de Keri. Ela notou uma pequena elevação no quadril direito dele, sob o blazer.
Arma. Deve ser um segurança.
Assim que Keri se sentou, sua anfitriã não perdeu tempo.
"Ashley ainda não respondeu a minhas chamadas ou mensagens. Ela não tuítou desde que largou da escola. Nenhum post novo no Facebook. Nada no Instagram". Ela suspirou e acrescentou: "Obrigada por vir. Nem posso explicar o quanto isso é importante para mim".
Keri assentiu lentamente, estudando Mia Penn, tentando ter uma ideia de quem ela era. Assim como ao telefone, quase não conseguia disfarçar o pânico que sentia.
Ela parece realmente temer que algo tenha acontecido com sua filha. Mas está escondendo algo.
"Você é mais jovem do que eu imaginava", Keri falou, finalmente.
"Tenho 30 anos. Tive Ashley aos 15".
"Uau".
"Sim, muita gente tem essa reação. Sinto que, por termos idades tão próximas, temos uma conexão. Juro que, às vezes, eu sei o que ela está sentindo, mas antes de vê-la. Eu sei que parece ridículo, mas temos esse vínculo. E sei que não é uma evidência, mas posso sentir que algo está errado".
"Ainda é cedo para entrar em pânico", Keri disse.
Elas passaram aos fatos.
Mia tinha visto Ashley pela última vez naquela manhã. Estava tudo bem. Ela comeu iogurte com granola e morangos fatiados no café. Foi para a escola de bom humor.
A melhor amiga de Ashley era Thelma Gray. Mia ligou para ela quando a filha não apareceu após a escola. De acordo com Thelma, Ashley estava na aula de geometria do terceiro período, como era esperado, e tudo parecia normal. A última vez que ela viu Ashley foi no corredor, por volta das 14h. Ela não tinha ideia de por que a amiga ainda não tinha chegado em casa.
Mia também falou com o namorado de Ashley, um garoto com pinta de atleta chamado Denton Rivers. Ele disse que havia visto Ashley na escola de manhã, e só. Ele escreveu algumas mensagens para ela algumas vezes depois da escola, mas ela nunca respondeu.
Ashley não tomava nenhuma medicação; não tinha problemas de saúde. Mia falou que havia averiguado o quarto da filha há algumas horas, e que estava tudo normal.
Keri registrou tudo apressadamente num caderninho, fazendo anotações específicas de nomes que ela contactaria mais tarde.
"Meu marido deve voltar do escritório a qualquer minuto. Sei que também vai querer falar com você".
Keri levantou os olhos do seu caderno. Algo na voz de Mia havia mudado. Parecia mais cautelosa.
Seja lá o que for que ela está escondendo, aposto que tem relação com isto".
"E como se chama o seu marido?" ela perguntou, tentando parecer casual.
"O nome dele é Stafford".
"Espere", Keri disse. "Seu marido é Stafford Penn, o senador americano Stafford Penn?"
"Sim".
"Essa informação é bem importante, Srª Penn. Por que não a mencionou antes?"
"Stafford me pediu para não dizer", ela se desculpou.
"Por quê?"
"Ele disse que queria falar sobre isso com você quando chegasse".
"Quando mesmo ele vai chegar?"
"Daqui a menos de dez minutos, com certeza".
Keri a encarou, tentando decidir se forçava um pouco as coisas. Por fim, ela preferiu se conter por ora.
"Você tem uma foto de Ashley?"
Mia Penn deu a ela seu celular. O protetor de tela era a foto de uma adolescente em um vestido de verão. Ela parecia a irmã mais nova de Mia. A não por Ashley ter os cabelos loiros, era difícil diferenciar quem era quem. A garota era um pouco mais alta, com uma estrutura mais atlética e um bronzeado mais intenso. O vestido não escondia suas pernas musculosas e ombros fortes. Keri suspeitou que ela surfava.
"Seria possível que ela apenas tenha se esquecido da consulta e esteja pegando ondas lá fora?" Keri perguntou.
Mia sorriu pela primeira vez desde que Keri a conheceu.
"Estou impressionada, detetive. Você teve esse palpite com base apenas na foto? Não, Ashley gosta de surfar de manhã, quando as ondas são melhores e há menos bagunceiros. Mas conferi a garagem. A prancha dela está lá".
"Você poderia também me enviar esta foto, assim como alguns closes de sua filha com e sem maquiagem?"
Enquanto Mia fazia isso, Keri fez outra pergunta.
"Qual a escola dela?"
"É a West Venice High".
Keri não pôde esconder sua surpresa. Ela conhecia bem o lugar. Era uma grande escola pública de ensino médio, um caldeirão de milhares de jovens, com tudo o que isso envolvia. Ela havia prendido vários alunos da West Venice.