Satisfeito, correu para as escadas. O som da sua própria respiração retumbava-lhe nos ouvidos.
Ali estava vulnerável. As escadas eram tão estreitas que se alguém decidisse atirar sobre ele, seria difícil resistir. Mas ninguém o fez.
Na parte superior da casa, o ar já era respirável. À esquerda avistava a janela e parede destruídas onde o atirador se instalara. Num relance, viu as pernas do homem no chão. As botas apontavam em direções divergentes. O resto do corpo eclipsara-se.
Luke virou à direita. De forma instintiva, correu para o compartimento situado na extremidade da entrada. Largou a Uzi no corredor. Retirou a shotgun do ombro e largou-a também. Retirou a Glock do coldre.
Virou à esquerda na direção do quarto.
Becca e Gunner estavam amarrados em duas cadeiras desdobráveis com os braços atrás das costas. Tinham os cabelos desgrenhados como se alguém lhos tivessem divertidamente afagado. E de facto, ali estava um homem atrás deles. Deixou cair dois capuzes negros no chão e colocou o cano da arma encostado à nuca de Becca. Estava agachado numa posição muito baixa utilizando Becca à sua frente como escudo humano.
Os olhos de Becca estavam muito abertos e os de Gunner fechados. Chorava de forma incontrolável e todo o corpo estremecia com silenciosos soluços. Tinha molhado as calças.
Valeria a pena?
Vê-los daquela forma, indefesos, aterrorizados, valera a pena? Luke ajudara a travar um golpe de estado na noite anterior. Salvara a nova Presidente de morte quase certa, mas tinha valido a pena?
“Luke?” Articulou Becca como se não o reconhecesse.
Claro que não o reconhecia. Retirou o capacete.
“Luke,” Repetiu. Arquejou, talvez aliviada. Luke não conseguira decifrar. Era normal as pessoas emitirem ruídos em momentos extremos e não tinham necessariamente que ter um significado.
Luke ergueu a arma, apontando-a diretamente para o espaço entre as cabeças de Becca e Gunner. O homem sabia o que estava a fazer. Não havia nada que Luke pudesse atingir. Mas mesmo assim, Luke deixou a arma apontada àquele local. Observou pacientemente. O homem não seria sempre eficaz. Ninguém o era de forma permanente.
Naquele momento, Luke não sentia nada a não ser uma… Calma… De morte.
Não sentiu qualquer alívio a apoderar-se do seu corpo. Isto ainda não tinha terminado.
“Luke Stone?” Perguntou o homem. Luke assentiu. “Fantástico. Tem estado em toda a parte nestes últimos dias. É mesmo o Luke?”
Luke conseguira visualizar o rosto do homem antes de se agachar atrás de Becca. Tinha uma cicatriz vincada na bochecha esquerda. Cabelo à escovinha. As caraterísticas bem distintivas de alguém que passara toda a vida no exército.
“Quem quer saber?” Desafiou Luke.
“Chamam-me Brown.”
Um nome que não era um nome. O nome de um fantasma. “Bem, Brown, como queres fazer isto?”
Luke conseguia ouvir a polícia a invadir a casa logo abaixo deles.
“Que opções temos?” Redarguiu Brown.
Luke não se mexia, a arma à espera do momento certo para disparar. “Parece-me que temos duas opções. Podes morrer neste preciso momento ou, se tiveres sorte, na prisão daqui a muitos anos.”
“Ou podia estoirar os adoráveis miolos da tua mulher para cima de ti.”
Luke não respondeu. Limitava-se a apontar a arma. O braço não sentia cansaço. Nunca se cansaria. Mas os polícias iriam irromper pelas escadas acima a qualquer momento e isso ia alterar as coisas.
“E tu estarás morto um segundo depois.”
“Verdade,” Concedeu Brown. “Ou podia fazer isto.”
A mão livre colocou uma granada no colo de Becca.
Quando Brown se afastou, Luke largou a arma e mergulhou. Numa sequência de movimentos, agarrou na granada, atirou-a para a parede mais distante da divisão, derrubou as duas cadeiras e atirou Becca e Gunner para o chão.
Becca gritou.
Luke juntou-os com brusquidão, não era momento para delicadezas. Juntou-os mais e mais, posicionou-se em cima deles, cobriu-os com o seu corpo e com a sua proteção. Tentou torná-los invisíveis.
Durante um momento, nada aconteceu. Talvez fosse um ardil. A granada seria uma réplica e agora o homem chamado Brown tinha a vantagem do lado dele, matando-os a todos.
BOOOOOOOM!
E foi então que a explosão ocorreu, ensurdecendo quem se encontrava naquele compartimento. Luke juntou ainda mais a família. O chão trepidou. Pedaços de metal caíram sobre ele. Baixou ainda mais a cabeça. A pele desprotegida do seu pescoço ficara esfacelada. Continuou a cobri-los e a segurá-los.
A sua família tremia debaixo dele, estarrecida com o choque e o medo, mas viva.
Agora chegara o momento de matar aquele sacana. A Glock de Luke estava no chão ao seu lado. Pegou nela e levantou-se. Virou-se.
Um enorme buraco irregular tinha sido aberto no fundo do compartimento. Para lá dele, Luke conseguia ver a luz do dia e o céu azul. Conseguia ver a água verde escura da baía. E também conseguia ver que o homem chamado Brown tinha desaparecido.
Luke aproximou-se do buraco, utilizando os escombros da parede para se proteger. As bordas eram uma mistura de retalhos de madeira, placas de reboco partidas e isolamento de fibra de vidro destruído. Luke esperava ver um corpo estendido no chão, talvez desfeito em vários pedaços sangrentos. Mas não. Não havia qualquer corpo.
Por um momento, Luke pensou ter visto um chapinhar. Um homem poderia ter mergulhado na baía e desaparecido. Luke piscou os olhos e olhou novamente. Não conseguia ter a certeza.
De qualquer das formas, não havia sinal do homem chamado Brown.
CAPÍTULO TRÊS
21:03
Centro Médico da Marinha de Bethesda – Bethesda, Maryland
A luz do portátil cintilava na semi-escuridão do quarto privado do hospital. Luke estava sentado numa desconfortável cadeira de braços, a olhar para o monitor com um par de fones que se estendiam do computador até aos seus ouvidos.
Estava quase sem fôlego de gratidão e alívio. Doía-lhe o peito graças à dificuldade em respirar que experimentara nas últimas quatro ou cinco horas. Apetecera-lhe chorar, mas ainda não chegara a esse ponto. Talvez mais tarde.
O quarto tinha duas camas. Luke puxara uns cordelinhos e Becca e Gunner dormiam profundamente naquelas camas. Estavam sedados, mas não importava. Nenhum dos dois tinha dormido desde o momento em que haviam sido raptados.
Tinham passado dezoito horas de puro terror. Agora estavam a dormir. E assim ficariam durante muito tempo.
Nenhum se magoara. É verdade que ficariam com marcas psicológicas, mas fisicamente estavam bem. Os maus da fita não tinham conseguido levar a sua avante. Talvez ali estivesse estado a mão de Don Morris a protegê-los.
Pensou um pouco em Don. Agora que tudo tinha acabado, fazia sentido pensar nele. Don tinha sido o maior mentor de Luke. Desde que Luke se juntara à Força Delta aos vinte e sete anos até àquela manhã, vinte anos mais tarde, Don tinha sido uma presença constante na vida de Luke. Quando o Don criou a Special Response Team do FBI, reservara logo um lugar para Luke. Mais do que isso – recrutara Luke, convençara-o, conquistara-o e roubara-o aos Delta.
Mas Don mudara a dada altura e Luke não se apercebera. Don estava entre os conspiradores que tentaram derrubar o governo. Talvez um dia Luke compreendesse as motivações de Don, mas não hoje.
No monitor à sua frente, passavam imagens em direto da sala de imprensa repleta de gente a partir do que agora denominavam de “a Nova Casa Branca”. A sala tinha quase cem lugares sentados. Tinha uma inclinação gradual, como uma espécie de cinema. Todos os lugares estavam ocupados. Todo o espaço ao longo da parede do fundo estava ocupado. Uma multidão de pessoas estava nas laterais do palco.
Imagens da própria casa iam surgindo a espaços no ecrã. Era a bela mansão dos anos 50 do século XIX em estilo Queen Anne, torreada e com espigões, situada nos terrenos do Observatório Naval em Washington, D.C.. E de facto, era maioritariamente branca.
Luke sabia algumas coisas a seu respeito. Durante décadas havia sido a residência oficial do Vice-Presidente dos Estados Unidos. Agora, e no futuro próximo, seria a casa e gabinete da Presidente.
No ecrã via-se novamente a sala de imprensa quando a Presidente subiu ao palanque: Susan Hopkins, a antiga Vice-Presidente que tomara posse nessa mesma manhã. Era a primeira vez que se dirigia ao povo Americano como Presidente. Vestia um fato azul-escuro e o cabelo louro num penteado bob. O fato parecia algo volumoso o que significava que usava material à prova de bala debaixo dele.
Os olhos de Susan Hopkins apresentavam um misto de austeridade e suavidade. O mais provável era os assessores de imprensa a terem instruído no sentido de aparentar raiva, coragem e esperança, tudo em simultâneo. Um caracterizador de topo tinha conseguido esconder as queimaduras do seu rosto. A não ser que se soubesse onde estavam, não se conseguiria vê-las. Tal como tinha acontecido durante toda a sua vida, Susan era a mulher mais bela da sala.
O seu currículo era impressionante. Já tinha sido uma supermodelo adolescente, jovem esposa de um bilionário do setor tecnológico, mãe, Senadora pela Califórnia, Vice-Presidente e agora, de forma inesperada, Presidente. O anterior Presidente, Thomas Hayes, morrera num terrível incêndio subterrâneo e a própria Susan tivera muita sorte em sobreviver.
Luke salvara a sua vida duas vezes no dia anterior.
Retirou o computador do modo silêncio.
Susan estava rodeada de painéis de vidro à prova de bala. Dez agentes dos Serviços Secretos encontravam-se no palco com ela. A multidão de jornalistas na sala, ovacionava-a de pé. Os locutores da TV falavam em tom baixo. A câmara moveu-se, descobrindo o marido de Susan, Pierre e as suas duas filhas.
De volta à Presidente: erguera as mãos pedindo silêncio. Apesar disso, lançou um sorriso rasgado à plateia. E a multidão irrompeu novamente em aplausos. Aquela era a Susan Hopkins que conheciam: a rainha do entusiasmo nos talk shows diurnos, das cerimónias de inauguração e dos comícios políticos. Agora, as suas pequenas mãos convertiam-se em punhos que ela levantava acima da cabeça, quase como um árbitro a indicar um touchdown. A multidão manifestava-se, interminavelmente ruidosa.
A câmara deslocou-se. Rígidos jornalistas de Washington, D.C. e de outros pontos do país, jornalistas que integravam uma das mais desiludidas classes profissionais, perfilavam-se com lágrimas nos olhos. Alguns choravam abertamente. Luke vislumbrou Ed Newsam envergando um fato de listas escuro, apoiado às muletas. Luke também tinha sido convidado, mas preferira permanecer no hospital. Aliás, nem colocara a hipótese de estar noutro local.
Susan aproximou-se do microfone. A plateia silenciou-se gradualmente, o suficiente para que todos a ouvissem. Colocou as mãos com firmeza no palanque.
“Ainda aqui estamos,” Afirmou com a voz a tremer.
A multidão explodiu de júbilo.
“E sabem que mais? Não vamos a lado nenhum!”
Um som atroador penetrou nos fones de Luke, obrigando-o a diminuir o volume.
“Eu quero…” Disse Susan, e depois parou novamente. Aguardou. A ovação não dava sinais de terminar. Aguardou mais um pouco. Afastou-se do microfone, sorriu e disse algo ao agente muito alto dos Serviços Secretos que se encontrava a seu lado. Luke conhecia-o. Chamava-se Charles Berg. Também ele tinha salvo a vida de Susan no dia anterior. Ao longo de dezoito horas, a vida daquela mulher tinha estado constantemente em risco.
Quando os entusiásticos aplausos da multidão começaram a diminuir, Susan regressou ao palanque.
“Antes de falarmos, queria que me acompanhassem numa coisa,” Pediu. “Acompanham-me? Quero cantar ‘Deus Abençoe a América’. Sempre foi uma das minhas músicas preferidas.” Disse com um fio de voz. “E quero cantá-la esta noite. Cantam-na comigo?”
E a multidão assentiu num rugido, em uníssono.
E então, ela cantou. Sozinha, na sua voz trémula e sem treino, cantou. Não havia qualquer celebridade a cantar com ela. Não havia músicos de classe mundial a acompanhá-la. Ela cantou, sozinha, numa sala repleta de pessoas e com milhões a verem-na por todo o mundo.
“’Deus Abençoe a América,”’ Começou. Parecia uma menina a cantar. “’Terra que eu amo.”’
Era quase como ver alguém a caminhar num arame colocado entre dois edifícios. Era um ato de fé. Luke sentiu um nó na garganta.
O público não a deixou ali sozinha. De imediato, começaram a inundar a emotiva cena com vozes fortes a unirem-se à sua. E ela conduziu-os.
No exterior do quarto sem luz, algures ao fundo do corredor, no silêncio de um hospital adormecido, quem estava de serviço começou também a cantar.
Na cama ao lado de Luke, Becca mexeu-se. Abriu os olhos e respirou com dificuldade. A cabeça movimentou-se para a esquerda e para a direita. Parecia pronta para saltar da cama. Viu Luke a seu lado, mas parecia não o reconhecer.
Luke tirou os fones dos ouvidos. “Becca,” Murmurou.
“Luke?”
“Sim.”
“Podes abraçar-me?”
“Sim.”
Fechou a tampa do portátil. Deslizou para a cama ao lado. O corpo de Becca estava quente. Luke olhou para o seu rosto tão belo como o de qualquer supermodelo. Ela encostou-se firmemente ao corpo de Luke e ele tomou-a nos seus braços fortes. Abraçou-a com tanta força que quase parecia que se queria fundir nela.
Isto era bem melhor do que ver a Presidente.
Ao fundod o corredor e por toda a parte no país, em bares, restaurantes, casas, carros, o povo cantava.
CAPÍTULO QUATRO
7 de Junho
20:51
Laboratório Nacional de Galveston, campus do Departamento Médico da Universidade do Texas – Galveston, Texas
“A trabalhar até tarde outra vez, Aabha?” Soou uma voz vinda do Céu.
A mulher exótica e de cabelo negro tinha uma beleza quase etérea. E na verdade, o seu nome em Hindi significava belo.
Sobressaltou-se com a voz e o corpo estremeceu involuntariamente. Levantou-se envergando um fato de proteção hermético branco, nas instalações de nível 4 de biossegurança do Laboratório Nacional de Galveston. O fato que a protegia fazia-a parecer um astronauta na lua. Nunca gostara de usar aquele fato. Sentia-se presa dentro dele. Mas o trabalho assim o exigia.
O fato estava ligado a um tubo amarelo que descia do teto. O tubo bombeava continuamente ar puro do exterior das instalações para o interior do fato de proteção. Mesmo que o fato se danificasse, a pressão positiva do tubo garantia que o ar do laboratório não penetrava no seu interior.
Os laboratórios BSL-4 eram os laboratórios com mais elevados níveis de segurança do mundo. Neles, os cientistas estudavam organismos mortais e altamente infeciosos que constituíam elevada ameaça para a saúde e segurança públicas. Naquele momento, na sua mão envolta numa luva azul, Aabha segurava um tubo selado com o mais perigoso vírus conhecido pelo homem.
“Sabes como sou,” Respondeu. O fato tinha um microfone incorporado que a fazia ouvir-se pelo guarda que a observava pelo circuito fechado de televisão. “Uma autêntica notívaga.”
“Eu sei. Já te vi por cá bem mais tarde.”
Aabha imaginou o homem a olhar por ela. Chamava-se Tom. Tinha peso a mais, meia-idade, divorciado. Só ela e ele, sozinhos dentro daquele enorme edifício vazio à noite, e ele pouco mais tinha que fazer do que observá-la. Era assustador pensar demasiado nisso.
Acabara de retirar o tubo da câmara frigorífica. Movimentando-se cuidadosamente, aproximou-se da cabina de biossegurança onde, em circunstâncias normais, ela abriria o tubo e analisaria o conteúdo.