Ceres ouviu o que ele estava a dizer, mas, ainda assim, ela queria ajudar. Parecia que Thanos estava um passo à frente dela.
“Nós temos de ajudar”, disse Thanos. “Lamento.”
O pai dela estendeu a mão para agarrá-lo, mas Thanos foi muito rápido. Ele mergulhou na água, nadando para o navio, aparentemente ignorando a ameaça de qualquer predador que estivesse na água. Ceres teve um momento para considerar o perigo disso... e, a seguir, atirou-se atrás dele.
Era difícil nadar agarrando a grande espada que tinha roubado, mas naquele momento ela precisava de qualquer arma que conseguisse. Ela mergulhou no frio das ondas, à espera que os tubarões já estivessem saciados da batalha e que ela não morresse de todas as porcarias que tantos navios atiravam ao mar. As mãos de Ceres agarraram as cordas da galera atracada e ela começou a escalar.
Era difícil. O lado do navio era liso, e as cordas teriam sido difíceis de escalar, mesmo que Ceres não estivesse exausta por dias de tormento nas mãos de Stephania. De alguma forma, ela conseguiu subir-se para o convés, atirando a grande espada para a sua frente, como um mergulhador poderia ter atirado uma rede de amêijoas.
Ela chegou a tempo de ver um marinheiro apressar-se na sua direção.
Ceres agarrou a sua espada roubada com as duas mãos, avançando e recuando com ela. Ela fez um arco com a espada, arrancando a cabeça do marinheiro dos seus ombros, e, a seguir, procurou a ameaça seguinte. Thanos já estava a lutar com um dos marinheiros que tinha estado a atacar a mulher do Povo dos Ossos, pelo que Ceres correu em sua ajuda. Ela golpeou o marinheiro nas costas, e Thanos atirou o marinheiro moribundo para cima do marinheiro seguinte que se dirigia para eles.
“Liberta-a”, disse Ceres. “Eu mantenho-os afastados”.
Ela deu balanço à lâmina em arcos, mantendo os marinheiros afastados enquanto Thanos trabalhava para libertar Jeva. De perto, ela ainda tinha um aspeto mais estranho do que parecia ao longe. A sua pele macia e escura tinha remoinhos e padrões azuis trabalhados, rastejando sobre o crânio raspado, como manchas de fumo. Fragmentos de osso decoravam a sua roupa de seda, enquanto os seus olhos brilhavam em desafio à sua difícil situação.
Ceres não tinha tempo de ver Thanos a libertá-la, porque precisava de se concentrar em manter os marinheiros afastados. Um dirigiu-lhe golpes violentos com um machado, balançando-o com o braço erguido. Ceres entrou no espaço criado pelo seu balanço, golpeando enquanto se movia atrás dele. Depois balançou a espada num círculo para os forçar a recuarem. Ela golpeou a perna de um homem, depois deu um pontapé para cima, apanhando-o no maxilar.
“Eu tenho-a”, disse Thanos, e quando Ceres olhou para trás, ele tinha efetivamente libertado a mulher Povo dos Ossos... que passou por Ceres num salto para apanhar uma faca de um homem que estava caído.
Ela dirigiu-se para a multidão de marinheiros como um remoinho, golpeando e matando. Ceres olhou para Thanos e, depois, foi com ela, tentando acompanhar o avanço da mulher que eles supostamente deveriam estar a salvar. Ela viu Thanos esquivar-se de um golpe de espada e depois contra-atacar, mas Ceres teve de aparar, naquele momento, um golpe que foi dirigido a si.
Os três lutaram juntos, trocando de lugares como se fossem participantes em alguma dança formal onde nunca parecia haver falta de parceiros. A diferença era que esses parceiros estavam armados e um passo em falso significaria a morte.
Eles lutavam arduamente. Ceres gritava em desafio enquanto eles a atacavam. Ela golpeava, movimentava-se e golpeava novamente, vendo Thanos lutar com a força quadrada de um nobre, a mulher do Povo dos Ossos ao lado dele atacar violentamente numa confusão de agressão viciosa.
De seguida, os lordes de combate estavam ali, e Ceres sabia que estava na hora de ir.
“Pela lateral!”, gritou ela, correndo para o trilho.
Ela mergulhou e sentiu outra vez o frio da água quando a atingiu. Ela nadou na direção do barco e, depois, içou-se pela lateral. O seu pai puxou-a para bordo, e depois ela ajudou os outros, um a um.
“O que é que estavas a pensar?”, perguntou o pai dela quando eles chegaram ao convés.
“Eu estava a pensar que não podia ficar a aguardar”, respondeu Thanos.
Ceres queria argumentar, mas tal fazia parte da forma de ser de Thanos. E era também por isso que ela o amava.
“Tolice”, estava a dizer a mulher do Povo dos Ossos com um sorriso. “Maravilha tolice. Obrigada.”
Ceres olhou ao redor para os barcos mais próximos deles. Naquele momento, todos estavam revoltados, e muitos dos marinheiros a bordo estavam a apressar-se por armas. Uma flecha atingiu a água perto deles, depois outra.
“Remar!”, gritou ela para os lordes de combate. Mas para onde é que eles podiam remar? Ela já conseguia ver os outros navios a movimentarem-se para intersetá-los. Em breve, não haveria saída. Era o tipo de situação em que antes ela poderia ter usado os seus poderes, mas agora ela não os tinha.
Por favor, Mãe, implorou ela no silêncio da sua mente, já me ajudaste antes. Ajuda-me agora.
Ela sentiu a presença da sua mãe algures no limite do seu ser, efêmera e tranquilizadora. Ela podia sentir a atenção da sua mãe, a olhar através de si, a tentar descobrir o que lhe tinha acontecido.
“O que é que eles te fizeram?”, sussurrou a voz da sua mãe. “Isto é trabalho do feiticeiro.”
“Por favor”, disse Ceres. “Não preciso dos meus poderes para sempre, mas preciso de ajuda agora.”
Na pausa que se seguiu, uma flecha atingiu o convés entre os pés de Ceres. Estava claramente demasiado perto.
“Não posso desfazer o que foi feito”, disse a mãe dela. “Mas posso emprestar-te outro dom, desta vez. Só desta vez. Acho que o teu corpo não aguentaria mais.”
Ceres não se importava, desde que eles escapassem. Os barcos já se estavam a aproximar. Eles precisavam disto.
“Toca na água, Ceres, e, perdoa-me, porque isto vai doer.”
Ceres não a questionou. Em vez disso, ela colocou a mão nas ondas, sentindo a humidade fluir ao redor da sua pele. Ela preparou-se...
... e, ainda assim, teve de lutar para não gritar quando algo fluiu através de si, brilhando pela água e depois pelo ar. Parecia que alguém tinha desenhado um véu de gaze no mundo.
Através dele, Ceres via os arqueiros e guerreiros a olharem em choque. Ela ouvia-os a gritarem de surpresa, mas os sons pareciam silenciados.
“Eles queixam-se que não nos conseguem ver”, disse Jeva. “Eles dizem que é magia negra.” Ela olhou para Ceres com um ar de admiração. “Parece que tu és tudo o que Thanos disse que tu serias.”
Ceres não tinha a certeza disso. Aguentar aquilo doía mais do que ela poderia acreditar. Ela não tinha certeza de quanto tempo mais conseguiria continuar.
“Remem”, disse ela. “Remem antes que esmoreça!”
CAPÍTULO TRÊS
No templo de telhado alto do castelo, Irrien observava impassível enquanto os sacerdotes preparavam Stephania para o sacrifício. Ele permanecia implacável enquanto eles andavam de um lado para o outro, amarrando-a no altar, segurando-a enquanto ela gritava e lutava.
Habitualmente, Irrien tinha pouco tempo para aquelas coisas. Os sacerdotes eram um monte de tolos obcecados por sangue que pareciam pensar que apaziguar uma morte poderia afastá-la. Como se algum homem pudesse impedir a morte, exceto pela força do seu braço. Implorar não funcionava, não para os deuses, e não, como o breve chefe de Delos estava a descobrir, para ele.
“Por favor, Irrien, faço qualquer coisa que tu queiras! Queres que me ajoelhe diante de ti? Por favor!”
Irrien ficou como uma estátua, ignorando-a como ignorava a dor da sua ferida, enquanto ao redor dele, nobres e guerreiros, permaneciam a observar. Pelo menos, havia algum valor em deixá-los ver aquilo, assim como havia valor em apaziguar os sacerdotes. O favor deles era apenas outra fonte de poder a ser tomada, e Irrien não era tão tolo ao ponto de ignorar aquilo.
“Não me desejas?”, implorou Stephania. “Eu pensei que me querias para teu brinquedo.”
Irrien não era tão tolo ao ponto de ignorar os encantos de Stephania também. Isso era parte do problema. Quando a mão dela tinha tocado no seu braço, ele tinha sentido algo para além dos habituais primeiros sinais de desejo que ele sentia com belas escravas. Ele não iria permitir aquilo. Não poderia permitir aquilo. Ninguém teria poder sobre ele, mesmo do género que vinha de dentro de si.
Ele olhou para a multidão. Havia ali lindas mulheres mais do que suficientes. As anteriores aias de Stephania ajoelhadas nas suas correntes. Algumas choravam ao ver o que estava a acontecer à sua ex-governante. Ele iria distrair-se com elas não tardava muito. Por enquanto, ele precisava de se livrar da ameaça que Stephania representava com a habilidade dela em fazê-lo sentir algo.
O mais superior dos sacerdotes aproximou-se, com os fios de ouro e prata na sua barba a tilintar enquanto ele se movia.
“Está tudo pronto, meu lorde”, disse ele. “Vamos cortar o bebé da barriga da sua mãe, e depois sacrificamo-lo no altar da maneira apropriada.”
“E os teus deuses acharão isso agradável?”, perguntou Irrien. Se o sacerdote reparou na pequena nota de escárnio ali, não se atreveu a mostrar.
“Muito agradável, Primeiro Pedregulho. Muito agradável.
Irrien assentiu.
“Então, será feito da maneira que sugeres. Mas serei eu a matar a criança.”
“Tu, Primeiro Pedregulho?”, perguntou o sacerdote. Ele pareceu surpreendido. “Mas porquê?”
Porque era a sua vitória, e não a vitória do sacerdote. Porque tinha sido Irrien a lutar pela cidade, enquanto aqueles sacerdotes provavelmente tinham estado em segurança nos navios que os transportavam. Porque tinha sido ele que tinha ficado ferido por causa daquilo. Porque Irrien assumia as mortes que eram dele, em vez de deixá-las para homens menores. Porém, ele não explicou nada disso. Ele não lhes devia tais explicações.
“Porque eu escolho fazê-lo”, disse ele. “Tens alguma coisa contra?”
“Não, Primeiro Pedregulho, nada contra”.
Irrien apreciou a nota de medo ali, não por causa própria, mas porque era uma lembrança do seu poder. Tudo aquilo era. Era uma declaração da sua vitória tanto quanto era gratidão para com qualquer deus que estivesse a assistir. Era uma forma de reivindicar aquele lugar, ao mesmo tempo que se livrava de uma criança que poderia tentar reclamar o seu trono quando tivesse idade suficiente.
Porque era um lembrete do seu poder, ele levantou-se e observou a multidão enquanto os sacerdotes começavam a sua carnificina. Eles levantaram-se e ajoelharam-se em fileiras, os guerreiros, os escravos, os comerciantes, e aqueles que reivindicavam sangue nobre. Ele observava o seu medo, o seu choro, a sua repulsa.
Atrás dele, os sacerdotes entoavam. Falar em línguas antigas significava terem sido dados pelos próprios deuses. Irrien olhou para trás para ver o mais superior dos sacerdotes a segurar uma espada sobre a barriga exposta de Stephania, pronto para cortar, enquanto ela lutava para fugir.
Irrien voltou sua atenção para aqueles que estavam a assistir. Aquilo era sobre eles, não sobre Stephania. Ele observou o horror deles quando a mendicância de Stephania se transformou em gritos atrás dele. Ele observou as reações deles, vendo quem estava impressionado, quem estava assustado, quem olhava para ele com um ódio silencioso e quem parecia estar a apreciar o espetáculo. Ele viu uma das aias que ali estava desmaiar ao ver o que estava a ocorrer atrás dele e resolveu mandar que a castigassem. Outra chorava tanto que outra teve de segurá-la.
Irrien descobriu que observar aqueles que o serviam dizia-lhe mais sobre eles do que qualquer declaração de lealdade. Silenciosamente, ele demarcou aqueles entre os escravos que ainda tinham de ser totalmente destruídos, aqueles entre os nobres que olhavam para ele com muita inveja. Um homem sábio não baixava a guarda, mesmo quando ganhava.
Os gritos de Stephania tornaram-se mais agudos por momentos, elevando-se a um crescendo que parecia perfeitamente cronometrado para coincidir com o canto dos sacerdotes. A seguir, os gritos deram lugar a gemidos, caindo. Irrien duvidava que ela sobrevivesse àquilo. Naquele preciso momento, ele não se importava. Ela estava a cumprir o seu propósito de mostrar ao mundo que ele mandava ali. Qualquer coisa além disso era desnecessária. Quase deselegante.
Algures ali, gritos novos juntaram-se aos das mais belas nobres de Delos, com os gritos atraentes a entrelaçarem-se com os dela. Irrien recuou em direção ao altar, abrindo os braços, atraindo a atenção daqueles que assistiam.
“Viemos aqui, e o Império estava fraco, portanto, conquistámo-lo. Eu conquistei-o. O lugar dos fracos é servir ou morrer, e eu decido qual.”
Ele virou-se para o altar onde Stephania estava estendida, com o vestido cortado, coberta agora numa confusão de sangue e membrana fetal tanto quanto em seda ou veludo. Ela ainda estava a respirar, mas a sua respiração estava esfarrapada, e uma coisa fraca como ela não iria sobreviver à ferida.
Irrien chamou a atenção dos sacerdotes e, em seguida, abanou a cabeça à forma prostrada de Stephania.
“Deitem isso fora.”
Eles correram para obedecer, levando-a para longe, enquanto um dos sacerdotes lhe entregou a criança como se lhe estivesse a apresentar o maior dos dons. Irrien olhou para ele. Era estranho que uma coisa tão pequena e frágil pudesse representar uma ameaça para alguém como ele, mas Irrien não era um homem de assumir riscos tolos. Um dia, o rapaz teria crescido e transformando-se num homem, e Irrien já tinha visto o que acontecia quando um homem sentia que não tinha o que lhe pertencia. Ele tinha tido de matar mais do que uns poucos na sua época.
Ele colocou a criança no altar, voltando-se para o público, enquanto desembainhou uma faca.
“Vejam, todos vocês”, ordenou ele. “Vejam e lembrem-se do que acontece aqui. Os outros Pedregulhos não estão aqui para assumir esta vitória. Eu estou.”
Voltou-se para o altar, e, instantaneamente percebeu que algo estava errado.
Estava lá uma figura, um homem de aparência jovem com pele osso-branco, cabelo claro e olhos de um âmbar profundo que lembravam a Irrien um gato. Ele usava mantos, mas eram pálidos, onde os dos sacerdotes eram escuros. Ele percorreu um dedo através do sangue no altar, sem aparente repugnância, simplesmente com interesse.
“Ah, Lady Stephania”, disse ele, numa voz que era suave e agradável, e quase certamente uma mentira. “Ofereci-lhe a hipótese de ser minha aluna antes. Ela deveria ter aceitado a minha oferta.”
“Quem és tu?”, perguntou Irrien. Ele mudou a forma como estava a agarrar a faca, como se primeiro estivesse preparado para espetá-la e depois preparado para a luta. “Porque é que te atreves a interromper a minha vitória?”
O outro homem estendeu as mãos. “Eu não queria interromper, Primeiro Pedregulho, mas estavas prestes a destruir algo que me pertence.”
“Algo...” Irrien sentiu um lampejo de surpresa quando percebeu o que aquele estranho queria dizer. “Não, tu não és o pai da criança. Ele é um príncipe deste lugar.”
“Eu nunca disse que era”, disse o outro homem. “Mas prometeram-me a criança como pagamento, e eu estou aqui para recolher esse pagamento.”
Irrien conseguia sentir a sua raiva a crescer e agarrou com força a faca que segurava. Ele virou-se para ordenar que aquele tolo fosse capturado, e foi só quando o fez que ele percebeu que os outros ali não estavam a mover-se naquele momento. Eles estavam extasiados.
“Suponho que deveria felicitar-te, Primeiro Pedregulho”, disse o estranho. “Eu acho que a maioria dos homens que afirmam ser poderosos são na verdade pouco determinados, mas tu nem sequer reparaste no meu... pequeno esforço.”