Apenas os Dignos - Морган Райс 2 стр.


O cavaleiro rebolou por cima dela, imobilizando-a. Ela olhou para ele, desesperada para ver o seu rosto. Porém, estava tapado, com a viseira branca para baixo. Apenas via a aparecerem por detrás das ranhuras do seu elmo uns olhos ameaçadores. Ela viu novamente aquela bandeira no cavalo dele e, desta vez, ela olhou bem para a sua insígnia: duas cobras, envolvidas à volta de uma lua, um punhal no meio delas, envolto num círculo de ouro.

Rea agitava-se, batendo-lhe na armadura. Mas era inútil. Eram umas mãos frágeis e pequenas a baterem num fato de metal. Era como se ela estivesse a bater numa rocha.

"Quem és tu?", perguntou ela. "O que queres de mim?"

Não houve nenhuma resposta.

Em vez disso, ele agarrou-a com a sua manopla e, quase sem ela dar por isso, ele virou-a, com a cara voltada para o chão, puxando o seu vestido.

Rea gritou, percebendo o que estava prestes a acontecer. Ela tinha dezassete anos. Ela estava a guardar-se para o homem perfeito. Ela não queria que aquilo acontecesse daquela maneira.

"Não!", gritou. "Por favor. Tudo menos isto. Mata-me primeiro!"

Mas o cavaleiro não queria ouvir e ela sabia que não havia como pará-lo.

Rea fechou os olhos com força, tentando afastar a situação, tentando transportar-se para outro lugar, para outro momento, para qualquer lugar menos para ali. O pesadelo dela tinha voltado, aquele do qual havia estado desperta, aquele que tinha tido durante muitas luas. Ela percebeu com temor que era aquilo que ela tinha andado a ver. Esta mesma cena. Esta árvore, estas ervas, este planalto. Esta tempestade.

De alguma forma, ela havia previsto aquilo.

Rea fechou os olhos com mais força e tentou imaginar que aquilo não estava a acontecer. Ela tentava perceber se era pior no sonho ou na vida real.

Rapidamente terminou.

Ele parou de se mexer e deitou-se por cima dela, ela entorpecida demais para se mover.

Ela ouviu o som do metal a levantar-se, sentindo o peso dele, finalmente, a sair de cima de si. Ela preparou-se, esperando que ele a matasse naquele momento. Ela antecipava o golpe da sua espada. Seria um alívio muito bem-vindo.

"Vá", disse ela. "Mata-me."

No entanto, para sua surpresa não ouviu nenhum som de uma espada, mas sim o som suave de uma corrente delicada. Ela sentiu algo frio e leve a ser-lhe colocado na palma da mão. Ela olhou, confusa.

Ela pestanejou à chuva e ficou surpreendida ao ver que ele lhe tinha colocado na mão um colar de ouro, com um pingente na sua extremidade, duas cobras, à volta de uma lua, com um punhal entre elas.

Finalmente, ele falou as suas primeiras palavras.

"Quando ele nascer", ouviu-se uma voz profunda e misteriosa, uma voz de autoridade, "dá-lhe isto. E manda-o para mim."

Ela ouviu o cavaleiro montar o seu cavalo, apercebendo-se vagamente do seu som a afastar-se.

Os olhos de Rea ficaram pesados. Ela estava demasiado exausta para se mexer ali deitada à chuva. Sentindo-se destroçada, ela sentiu um doce sono a chegar-lhe e não lhe resistiu. Talvez agora, pelo menos, os pesadelos parassem.

Antes de deixar o sono aproximar-se, ela olhou fixamente para o colar, o emblema. Apertou-o, sentindo-o na mão, o ouro tão espesso, grosso o suficiente para alimentar toda a sua aldeia durante uma vida.

Porque é que ele o tinha dado a ela? Porque é que ele não a tinha matado?

A ele, ele tinha dito. Não a ela. Ele sabia que ela ficaria grávida. E ele sabia que seria um rapaz.

Como?

De repente, antes de um doce sono se apoderar dela, veio-lhe tudo à memória. A última peça do seu sonho.

Um rapaz. Ela tinha dado à luz a um menino. Um nascimento vindo da fúria. Da violência.

Um rapaz destinado a ser rei.

CAPÍTULO DOIS

Três Luas Mais tarde

Rea ficou sozinha na clareira da floresta, atordoada, perdida no seu próprio mundo. Ela não ouvia o riacho a gotejar sob os seus pés, não ouvia o chilrear dos pássaros na densa floresta ao seu redor, não reparava na luz do sol que brilhava através dos ramos, ou no grupo de veados que a observava de perto. O mundo inteiro tinha-se dissipado e ela olhava apenas para uma coisa: as veias da folha de Ukanda que ela segurava entre os seus dedos trêmulos. Ela tirou as palmas das suas mãos da ampla folha verde e, lentamente, para seu horror, a cor das veias das folhas mudaram de verde para branco.

Vê-las mudar era como uma faca no seu coração.

As folhas de Ukanda não mudavam de cor, a não ser que a pessoa que lhes tocasse estivesse grávida.

O mundo de Rea vacilou. Ela tinha perdido toda a noção de tempo e espaço enquanto ali tinha estado. O seu coração latejava nos seus ouvidos, as suas mãos tremiam e o seu pensamento voltava àquela naquela noite fatídica há três luas atrás, quando a sua aldeia tinha sido saqueada, muitos dos seus mortos por contar. Quando ele a tinha levado. Ela estendeu a mão e passou-a sobre a barriga, sentindo uma pequena protuberância, sentindo uma outra onda de náusea e, finalmente, ela entendeu o porquê. Estendeu a mão e tocou o colar de ouro que ela tinha andado a esconder à volta do pescoço, bem por dentro da roupa, é claro, para que os outros não o vissem. Ela questionava-se, pela milionésima vez, quem seria aquele cavaleiro.

Por muito que ela as tentasse bloquear, as palavras finais dele não paravam de soar na sua cabeça.

Manda-o para mim.

Subitamente Rea ouviu um ruído por trás de si e virou-se, assustada, ao ver os olhos redondos de Prudência, sua vizinha, a olhar para ela. Uma menina de catorze anos de idade, que perdeu a sua família no ataque, uma intrometida sempre muito ansiosa por bisbilhotar qualquer pessoa. Prudência era a última pessoa que Rea queria que soubesse acerca do que se passava consigo. Rea viu horrorizada os olhos de Prudência a desviaram o olhar da sua mão para a folha em transformação, arregalando-se ao se aperceber.

Com um olhar de desaprovação, Prudência deixou cair a sua cesta de lençóis, virou-se e correu. Rea sabia que ela ter saído dali a correr apenas poderia significar uma coisa: ela ia informar os aldeões.

Rea ficou apavorada e sentiu a primeira onda de medo. Os aldeões iriam exigir que ela matasse o seu bebé, é claro. Eles não queriam nenhuma recordação do ataque dos nobres. Mas porque é que isso a assustava? Será que ela queria realmente manter aquela criança, o subproduto daquele monstro?

O medo de Rea surpreendia-a e, ao pensar nisso, ela percebeu que era perigoso manter o seu bebé seguro. Isso desorientava-a. Intelectualmente, ela não queria tê-lo; fazê-lo seria uma traição à sua aldeia e a ela mesma. Isso só encorajaria os nobres que a tinham invadido. E seria tão fácil perder o bebé; ela poderia simplesmente mastigar a raiz Yukaba, e no seu próximo banho, a criança morreria.

No entanto, visceralmente, ela sentia a criança dentro dela e o seu corpo dizia-lhe algo que a sua mente não dizia: ela queria ficar com ele. Protegê-lo. Afinal, era uma criança.

Rea era uma filha única que nunca tinha conhecido os seus pais, que havia sofrido no mundo sem ninguém para amar e ninguém para amá-la. Sempre tinha desesperadamente querido alguém para amar e alguém para amá-la também. Ela estava farta de estar sozinha, de estar em quarentena na secção mais pobre da aldeia, de esfregar o chão dos outros, de fazer o trabalho árduo de manhã à noite, sem qualquer saída. Ela sabia que nunca iria encontrar um homem, dado o seu estado. Pelo menos ninguém que ela não desprezasse. E, provavelmente, nunca iria ter um filho.

Rea sentiu uma súbita onda de vontade. Podia ser a sua única hipótese, ela percebeu. E agora que ela estava grávida, ela percebeu que não sabia o quanto desejava aquela criança. Ela desejava-a mais do que qualquer coisa.

Rea começou a caminhar de volta para a sua aldeia, apreensiva, apanhada num remoinho de emoções misturadas, mal preparada para enfrentar a desaprovação que, ela sabia, estaria à sua espera. Os aldeões insistiriam para que nenhum filho dos saqueadores da sua cidade, dos homens que lhes haviam tirado tudo, sobrevivesse. Rea dificilmente poderia culpá-los; engravidar as mulheres era uma tática comum dos saqueadores para dominar e controlar as aldeias em todo o reino. Às vezes eles eram mesmo enviados para isso. E ter um filho só alimentava o seu ciclo de violência.

Ainda assim, nada disso poderia mudar a forma como ela se sentia. Uma vida vivia dentro dela. Podia senti-la a cada passo que dava. Ela sentia-se mais forte por aquela vida. Ela podia senti-la a cada batimento cardíaco, pulsando através do seu próprio.

Rea caminhou pelas ruas do centro da aldeia, de volta para a sua cabana de uma assoalhada, sentindo o seu mundo virado do avesso, querendo saber o que pensar. Grávida. Ela não sabia como estar grávida. Ela não sabia como dar à luz uma criança. Ou como criar uma. Ela mal conseguia alimentar-se a ela própria. Como é que ela poderia sustentá-la?

No entanto, de alguma forma, ela sentiu uma nova força a erguer-se dentro dela. Ela sentia-a a pulsar nas suas veias, uma força que ela só tomara vagamente consciência nestas últimas três luas, mas que agora tinha ficado perfeitamente nítida. Era uma força para além dela. A força do futuro, da esperança. Da possibilidade. De uma vida que ela nunca conseguiria escolher o destino.

Era uma força que exigia que ela fosse maior do que jamais conseguiria ser.

Ao caminhar lentamente pelas ruas de terra, ela começou a ficar vagamente consciente do que a rodeava e dos olhos dos aldeões a olhar para ela. Ela virou-se e, em ambos os lados da rua, viu os olhos curiosos e de desaprovação de mulheres novas e velhas, de homens velhos e rapazes, de sobreviventes solitários, de homens mutilados que traziam as cicatrizes daquela noite. Todos transportavam nos seus rostos grande sofrimento. E todos eles olhavam para ela, para a sua barriga, como se ela fosse de alguma forma culpada.

Entre eles, ela via mulheres da sua idade, de caras assombradas, olhando para ela sem compaixão. Muitas delas, Rea sabia, tinham também sido engravidadas e já tinham tomado a raiz. Ela conseguia ver a tristeza no seu olhar e conseguia sentir que elas queriam que ela a compartilhasse.

Rea sentiu a multidão a engrossar à sua volta e quando olhou para cima ficou surpreendida ao ver uma parede de pessoas a bloquearem-lhe o caminho. A vila inteira parecia ter saído à rua, homens e mulheres, jovens e velhos. Ela via a agonia nos seus rostos, uma agonia que ela tinha partilhado. Ela parou e olhou para eles. Ela sabia o que eles queriam. Eles queriam matar o seu filho.

Ela sentiu uma repentina onda de desafio – e resolveu naquele momento que nunca o faria.

"Rea", ouviu-se uma voz grossa.

Severn, um homem de meia-idade com cabelo escuro e barba, uma cicatriz na bochecha feita naquela noite, estava ao centro e olhou para ela, cima abaixo, como se ela fosse um pedaço de gado. Passou-lhe pela cabeça dela que ele não era muito melhor do que os nobres. Eles eram todos iguais: todos achavam que tinham o direito de controlar o seu corpo.

"Tu vais tomar a raiz", ele ordenou sombriamente. "Vais tomar a raiz e amanhã tudo isto vai ficar no teu passado."

Ao lado de Severn, uma mulher deu um passo adiante. Luca. Ela também tinha sido atacado naquela noite e tinha tomado a raiz na semana anterior. Rea tinha-a ouvido a gemer durante toda a noite, gritando de dor pelo seu filho perdido.

Luca deu-lhe um saco, com o pó amarelo a ver-se lá dentro. Rea recuou. Ela sentiu a aldeia inteira a olhar para ela, esperando que o aceitasse e levasse.

"Luca irá acompanhar-te ao rio. Ela vai ficar contigo durante a noite.", acrescentou Severn.

Rea olhava para ele, sentindo uma energia estranha a crescer dentro dela ao olhar para todos eles friamente.

Ela não disse nada.

Os rostos deles endureceram-se.

"Não nos desafies, miúda", disse outro homem, aproximando-se, segurando a sua foice com força até os seus dedos ficaram brancos. "Não desonres a memória dos homens e mulheres que perdemos naquela noite, dando vida aos seus filhos. Faz o que esperam de ti. Faz o que tens a fazer."

Rea respirou fundo e ficou surpreendida com a força da sua própria voz ao responder:

"Eu não o farei."

A sua voz soava-lhe estranha, mais profunda e madura do que nunca. Era como se ela se tivesse tornado numa mulher do dia para a noite.

Rea observou os rostos deles a enraivecerem-se, como uma nuvem de tempestade a passar num dia ensolarado. Um homem, Kavo, franziu a testa e deu um passo adiante, com um ar autoritário. Ela olhou para baixo e viu o chicote na sua mão.

"Há uma maneira fácil de fazer isto", disse ele, com uma voz dura como o aço. "E uma maneira difícil."

Rea sentiu o seu coração a bater com mais força e olhou para ele bem nos olhos. Ela lembrou-se do que o pai lhe havia dito uma vez, quando ela era uma menina: nunca recues. Perante ninguém. Luta pelo que queres, mesmo que as hipóteses estejam contra ti. Especialmente se as hipóteses estiverem contra ti. Olha sempre para o valentão maior. Ataca primeiro. Mesmo que isso signifique a tua vida.

Rea explodiu em ação. Sem pensar, ela estendeu a mão, agarrou num bastão da mão de um dos homens, aproximou-se e, com toda sua força, golpeou Kavo no seu plexo solar.

Kavo arfou ao cair de joelhos e Rea, não lhe dando outra hipótese, golpeou-o na cara. O seu nariz partiu-se e ele largou o chicote e caiu no chão, segurando o nariz e gemendo na lama.

Rea, ainda segurando firmemente o bastão, olhou para cima e viu o grupo de rostos horrorizados e em choque a olhar para ela. Todos eles pareciam um pouco menos certos.

"É o meu filho", ela cuspiu. "Eu vou tê-lo. Se vierem atrás de mim, da próxima vez não vai ser um bastão na vossa barriga, mas uma espada."

Com aquilo, ela segurou com mais força o bastão, virou-se e, lentamente, afastou-se, acotovelando a multidão para passar. Nenhum deles, ela sabia, se atreveria a segui-la. Não agora, pelo menos.

Ela afastou-se, com as mãos a tremer, com o coração a bater com força, sabendo que seriam uns longos seis meses até que o seu bebé nascesse.

E sabendo que da próxima vez que eles viessem atrás dela, viriam para matá-la.

CAPÍTULO TRÊS

Seis Luas Mais tarde

Rea estava encostada ao monte de peles junto da sua crepitante pequena fogueira, total e completamente sozinha, a gemer e a gritar em agonia quando as suas dores de parto chegavam. Lá fora, o vento do inverno uivava e os ferozes vendavais faziam com que as persianas batessem contra as paredes da casa e a neve se desintegrasse em fluxos por cima da cabana. A tempestade combinava com a sua disposição.

O rosto de Rea brilhava com suor. Ela estava ao lado da pequena fogueira, mas não conseguia aquecer, apesar das chamas furiosas, apesar de o bebé chutar e girar na sua barriga como se estivesse a tentar sair. Ela estava molhada e com frio, tremendo toda, tendo a certeza de que iria morrer naquela noite. Outra dor de parto. Ao sentir-se naquele estado, ela desejava apenas que o saqueador a tivesse matado naquele momento; teria sido mais misericordioso. Aquela longa e lenta tortura, aquela noite de pura agonia, era mil vezes pior do que qualquer coisa que ele jamais lhe pudesse ter feito.

De repente, ainda mais alto do que os seus gritos, por cima dos vendavais ouviu-se outro som – talvez o único som que ainda era capaz de lhe provocar uma sacudidela de medo pela sua espinha acima.

Era o som de uma multidão. Uma multidão enfurecida de aldeões que ela sabia que vinham para matar o seu filho.

Rea convocou todas as sua últimas forças, forças que nem ela sabia que lhe ainda lhe restavam e, agitando-se, conseguiu, de alguma forma, levantar-se do chão. A gemer e a gritar, ela caiu de joelhos, cambaleando. Agarrou-se a uma estaca de madeira na parede e, com toda a sua força, com um grande grito, levantou-se.

Ela não conseguia dizer se lhe doía mais estar deitada ou em pé. Mas ela não tinha tempo para refletir sobre isso. O barulho da multidão estava cada vez mais alto, mais perto. Ela sabia que eles iriam chegar em breve. A sua morte não iria incomodá-la. Mas a morte do seu bebé – isto era outra questão. Ela tinha que colocar aquela criança em segurança, custasse o que custasse. Era a coisa mais estranha, mas ela sentia-se mais ligada à vida do bebé do que à sua própria vida.

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