Ela começou a fazer anotações mentais para seu artigo, lembrando-se do ângulo cínico que Elliot queria que ela tomasse. Em vez de ver a beleza da vista litorânea, ela focou nas nuvens cinzentas. Em vez de ver a vasta paisagem sobre o oceano como milagroso, ela decidiu lançar seu olhar para a solidão das montanhas escarpadas distantes. Embora fosse deslumbrantemente bonito por um lado, Keira achou que não seria um grande desafio desmascarar o romance da Irlanda. Ela apenas precisava saber para onde olhar e como distorcer as coisas.
Ela passou por várias cidades pequenas com muros de pedra. Uma se chamava Killinaboy e ela riu em voz alta, rapidamente enviando uma foto da placa da cidade para Zach, esperando que ele fosse gostar.
Ela estava tão distraída com a placa engraçada da cidade, que quase nem notou o próximo obstáculo na estrada—um rebanho de ovelhas! Ela pisou nos freios e conseguiu parar a tempo. Demorou um longo tempo até que seu terror diminuísse. Ela poderia ter massacrado uma família inteira de ovelhas!
Tirando um momento para acalmar seu batimento cardíaco, Keira pegou o celular e tirou uma foto dos traseiros do grupo de ovelhas, enviando-a para Zach com a legenda: o tráfego aqui é um pesadelo.
É claro que ela não recebeu resposta. Frustrada com a total falta de interesse dele, ela enviou as mesmas fotos para Nina e Bryn. Ambas responderam quase que imediatamente com emojis dando risada e Keira acenou a cabeça, satisfeita em saber que pelo menos alguém em sua vida achou suas escapadelas interessantes.
Keira religou o carro e vagarosamente ultrapassou o comboio de ovelhas. As ovelhas a observaram passar com expressões sábias, e ela quase se deparou se desculpando em voz alta. O céu estava começando a escurecer, fazendo com que a estrada parecesse ainda mais precária. Não ajudava que as únicas construções que ela via na beira da estrada eram de igrejas, com estátuas solenes da Virgem Maria.
Finalmente, Keira chegou a Lisdoonvarna e ficou agradavelmente surpresa com o que viu. Pelo menos parecia um lugar onde as pessoas viviam! Havia ruas com mais de uma casa, o que dava a impressão de uma cidade… quase. Todos os edifícios, casas e lojas eram muito pequenos e pitorescos, muitos a poucos passos de distância da estrada, e pintados em cores brilhantes do arco-íris. Keira estava feliz por finalmente estar em um lugar que parecia uma comunidade, e não apenas habitações individuais ligadas por estradas.
Ela desacelerou o carro, seguindo as placas de rua até que encontrasse o endereço que estava procurando, o St. Paddy’s Inn. A pousada ficava bem na esquina de duas ruas, um edifício de tijolos vermelhos escuros de três andares. Do lado de fora, parecia bastante irlandês para Keira.
Ela estacionou na pequena vaga e desceu do carro, pegando suas malas no porta-malas. Ela estava exausta e pronta para entrar e descansar.
Mas à medida que se aproximava, percebeu que descanso não era algo que estava prestes a conseguir. Porque, mesmo daqui, ela conseguia escutar o som de conversas animadas e debates barulhentos. Ela também conseguia escutar o som de música ao vivo, de violinos, pianos e acordeões.
Um sino sobre a porta tocou quando ela entrou, e ela logo viu um bar pequeno e escuro, com papel de parede carmesim velho e várias mesas redondas de madeira. O lugar estava abarrotado de pessoas com cerveja na mão. Eles olharam para ela como se pudessem dizer imediatamente que ela não era da área, que não era apenas uma turista, mas uma americana.
Keira sentiu-se um pouco sufocada pelo choque cultural.
“Como posso te ajudar?” uma voz masculina disse com um forte sotaque que Keira mal conseguia entender.
Ela olhou para o bar e viu um senhor de pé atrás do balcão. Ele tinha um rosto enrugado e um tufo de cabelo grisalho brotando no centro de uma cabeça calva.
“Meu nome é Keira Swanson,” Keira disse, aproximando-se dele. “Da revista Viatorum.”
“Não consigo escutar! Fale alto!”
Keira aumentou a voz, falando mais alto que a música tradicional ao vivo, e repetiu seu nome. “Tenho um quarto reservado aqui,” ela adicionou quando o homem apenas olhou para ela com um olhar vazio. “Sou uma escritora da América.”
Pelo menos o homem parecia entender quem ela era e o porquê estava lá.
“Claro!” ele exclamou, um sorriso espalhando-se pelo seu rosto. “Do jornal com o nome chique em latim.”
Ele tinha uma aura acolhedora, bem de avô, e Keira sentiu-se relaxada novamente.
“É esse mesmo,” ela confirmou.
“Sou Orin,” ele disse. “Sou o proprietário do St. Paddy. Moro aqui também. E isto é para você.” De repente, uma caneca de Guinness foi colocada descuidadamente no balcão em frente de Keira. “Uma recepção de boas-vindas tradicional de St. Paddy.”
Keira foi pega de surpresa. “Não sou muito de beber,” ela riu.
Orin olhou para ela. “Você é enquanto estiver no Condado de Clare, minha moça! Você está aqui para relaxar, assim como o resto dos locais. E, de qualquer forma, temos que brindar sua viagem segura! Graças à Virgem Maria.” Ele fez o sinal da cruz em seu peito.
Keira ficou com um pouco de vergonha quando aceitou o Guinness, e tomou um gole do líquido cremoso e forte. Ela nunca tinha provado Guinness e o sabor não era particularmente agradável para ela. Após apenas um gole, ela estava segura de que não conseguiria terminar a caneca toda.
“Todo mundo,” Orin berrou para os clientes do bar, “esta é uma repórter americana!”
Keira se encolheu quando o bar inteiro virou e começou a aplaudir e gritar como se ela fosse algum tipo de celebridade.
“Estamos tão animados por você estar aqui!” disse uma mulher de cabelos crespos, inclinando-se um pouco muito perto e sorrindo um pouco demais para o conforto de Keira. Então, em uma voz mais baixa ela acrescentou, “Talvez você queira limpar seu bigode de Guinness.”
Sentindo suas bochechas queimarem de vergonha, Keira rapidamente limpou a cerveja de seu lábio superior. Um segundo depois, outra cliente do bar forçou a passagem por ela, batendo os cotovelos com outros no caminho—ninguém parecia se importar. A bebida dela derramou um pouco enquanto ela tropeçava. “Mal posso esperar para ler seu artigo!”
“Oh, obrigada,” disse Keira, encolhendo os ombros. Não tinha passado por sua cabeça que as pessoas iriam querer ler o que ela escreveria sobre eles. Isso pode tornar o ângulo cético um pouco mais difícil para ela.
“Então, o que a fez querer se tornar uma repórter?” o homem ao lado dela disse.
“Sou apenas uma redatora,” Keira disse enrubescida, “não uma repórter.”
“Só uma redatora?” o homem exclamou, falando alto e procurando a atenção de outros ao seu redor. “Vocês escutaram isso? Ela disse que é apenas uma redatora. Bem, mal posso segurar uma caneta, então você é um gênio em minha opinião.”
Todos riram. Keira nervosamente bebeu pequenos goles de seu Guinness. A hospitalidade irlandesa era muito receptiva, mas também era um choque cultural, e ela se viu acanhada, pensando na miríade de maneiras que poderia criticar este lugar em seu artigo.
“Vou levá-la ao seu quarto,” Orin finalmente disse, após ela ter conseguido beber quase metade da caneca de Guinness.
Ela o seguiu por uma escada barulhenta e estreita, ao longo de um corredor com um carpete surrado com um forte cheiro de poeira. Keira andou silenciosamente, assimilando tudo, construindo frases em sua mente enquanto observava a decoração antiquada. As paredes eram decoradas com fotografias emolduradas e desbotadas de times locais de futebol do passado e Keira sorriu quando percebeu que a maioria dos jogadores compartilhavam o mesmo sobrenome, O’Sullivan. Ela tirou uma foto discreta do time de futebol preto e branco e enviou para Zach com a legenda: O Sr. O’Sullivan deve ter sido um reprodutor prolífico.
“Aqui estamos,” disse Orin, abrindo a porta e mostrando dentro.
O quarto era horrível. Embora grande, com uma cama de casal e uma janela enorme, era decorado horrendamente. O papel de parede tinha uma cor tipo pêssego, manchado em alguns lugares como se fossem anos de mãos sujas. Havia uma colcha fina sobre a cama, a qual era remendada, mas não do tipo encontrado em uma casa de campo encantadora, e sim do tipo encontrado em uma loja de usados.
“Este é o quarto com a escrivaninha,” disse Orin, sorrindo com orgulho, apontando uma escrivaninha de madeira sob a janela. “Para sua escrita.”
Keira corou. Ela estava horrorizada com o pensamento de ficar no quarto encardido durante um mês inteiro, mas conseguiu arrancar um “Obrigada”. E ela que pensava que conseguiria ficar em uma favela durante um mês!
“Você precisa de um tempo para se acomodar antes de conhecer Shane?” perguntou Orin.
Keira franziu a testa, confusa. “Quem é Shane?”
“Shane Lawder. Seu guia turístico. Para o festival,” explicou Orin.
“Claro,” Keira disse, lembrando das anotações de Heather, em que dizia que haveria um guia turístico. “Sim, por favor, gostaria de conhecer Shane.” Ela não tinha desejo algum de continuar no quarto, então largou sua mala na cama e desceu a escada barulhenta.
“Shane!” Orin gritou enquanto voltava para sua posição atrás do balcão.
Para a surpresa de Keira, foi um músico de violino que respondeu. Ele largou seu instrumento—embora o grupo de músicos com quem ele estava tocando continuou como se nada tivesse acontecido—e veio até o bar.
Debaixo da barba irregular, Keira podia ver que ele tinha um queixo esculpido. Na verdade, se não fosse o cabelo, o qual precisava desesperadamente de um corte, e roupas desmazeladas, Shane seria bem bonito. Keira se sentiu culpada por pensar isso, especialmente porque as coisas com Zach estavam tão delicadas no momento, mas ela se lembrou do lema de Bryn: Não há nada errado em olhar.
“Você não se parece muito com um Joshua,” Shane disse enquanto apertava a mão dela.
“Oh, ninguém lhe contou?” Keira disse. “Houve um imprevisto, então vim no lugar dele. Desculpe.”
Shane deu-lhe um olhar atrevido. “Porque você esta se desculpando? Prefiro mil vezes passar trinta dias com uma moça bonita como você. Sem querer ofender o tal do Joshua, tenho certeza que ele é atraente o bastante, mas não parece ser o meu tipo. Sabe, por ser homem e tudo mais.”
Keira engoliu seco. Ela não esperava que um irlandês fosse tão direto. Mas lembrou-se de Zach e repetiu o mantra em sua mente que estava apenas olhando.
Enquanto Shane colocava um banco do lado dela, Orin colocou um Guinness na frente de cada um. Keira lamentou silenciosamente. Ela não conseguia lidar com tanto álcool!
Shane deu um grande gole em sua bebida e, então, esparramou alguns documentos em cima da bancada do bar.
“O Festival do Amor dura trinta dias,” ele explicou. “A maioria das atividades não começa até o período da noite, então preparei um itinerário de lugares que podemos visitar enquanto você estiver aqui, para que tenha uma melhor noção do país como um todo. Começaremos com Burren para os cenários serranos, depois as falésias de Moher para ver o oceano e, então, vamos para o próximo condado, Kerry, para a linda mansão antiga em Killarney, e depois adiante para Dingle.”
“Achei que você seria meu guia somente no festival,” Keira disse. “Não no país inteiro.”
“Você vai enlouquecer se não sair um pouco de Lisdoonvarna durante o dia,” Shaine explicou. “A imensa quantidade de grupo de pessoas indo e vindo, é um pouco demais.”
Keira riu em silêncio para ela mesma. Ela seriamente duvidava que Lisdoonvarna fosse tão agitado durante o festival como era a cidade de Nova York em um dia normal.
“Tem muita bebida,” continuou Shane. “Algumas das festas se estendem até a manhã do dia seguinte. Eu digo algumas, mas na verdade é a maioria.”
Keira pensou na despedida de solteiro barulhenta no voo e se perguntou se iria conseguir dormir durante o próximo mês.
“Isso parece ótimo,” ela disse, olhando para o itinerário. “Mas precisarei de algum tempo todos os dias para escrever. Não dá para ser só diversão e jogos.”
Shane sorriu maliciosamente para ela. “Você acabou de chegar e já está pensando em trabalho?”
“Sou obrigada,” explicou Keira. “Isso é muito importante para mim. Não quero estragar tudo.”
“E não estragar tudo equivale a não soltar o seu cabelo?”
Keira não estava no clima de ser desafiada sobre suas opções de vida. Ela teve mais do que o suficiente disso de Zach e sua mãe.
“Apenas significa reservar um tempo por dia para escrever,” ela contestou, soando um pouco irritada.
A expressão de Shane continuou com um tipo entretido de sorriso malicioso. Ele bebeu de uma só vez de sua caneca. “Você é um daqueles tipos sérios, não é?” ele disse espirituosamente. “Só trabalho e nenhuma diversão.”
Keira lhe lançou um olhar indiferente. “Não sei como você pode presumir que sabe algo sobre mim,” ela disse. “Você me conhece por cinco minutos.”
Shane continuou sorrindo. Ele não respondeu, como se o argumento já estivesse se resolvido.
Keira ficou nervosa. Ele era bonito, verdade, mas se continuasse assim iria deixa-la irritada. Ela não sabia se conseguiria lidar com provocações e bebida durante trinta dias, e não ter espaço para escrever.
Talvez essa tarefa fosse mais difícil do que ela esperava.
*
Keira finalmente conseguiu saiu do bar à meia-noite. Ela perdeu a conta do número de Guinnesses que Orin e Shane beberam, mas para a sorte dela eles tinham parado de persuadi-la a beber com eles. Mesmo assim, sua cabeça estava rodando quando subiu as escadas para o seu quarto.
Ela fechou a porta, mas a batida da música e a animação no andar de baixo não parou. Keira sentia-se preocupada, tensa. Ela verificou o celular, mas constatou que não havia nenhuma mensagem de Zach. Ele definitivamente já teria tido tempo de ler as mensagens. O que significava que ele estava lhe dando o tratamento silencioso. Que maduro, Keira pensou.
Pelo menos ela tinha recebido respostas de Nina e Bryn, junto com uma infinidade de perguntas. Ela enviou uma mensagem para Nina—que iria editar o artigo—para dizer que seu itinerário estava lotado e para ela não esperar qualquer trabalho por um tempo. Para Bryn, ela enviou uma mensagem fornecendo uma breve descrição dos traços físicos de Shane e alguns emojis de chama.
Todavia, ele é um saco. Um desses caras arrogantes que acha cativante zoar com a sua cara.
A resposta de Bryn chegou rapidamente. É cativante.
Keira riu e guardou o celular. A música no andar de baixo com certeza iria mantê-la acordada por algumas horas, então era melhor ficar um tempo no laptop. Ela o tirou da mala e começou a escrever um e-mail para Elliot com algumas de suas ideias iniciais para o artigo. Graças a todos os Guinnesses, ela foi capaz de adotar um tom ainda mais crítico do que tinha antecipado.
Se você já se perguntou qual o cheiro de décadas de pisoteio de Guinness estagnado em um carpete, então não precisa procurar além do St. Paddy’s Inn em Lisdoonvarna, Condado de Clare. Na forma de uma americana exótica, minha chegada aqui provocou uma onda de hospitalidade irlandesa sufocante. Digo sufocante, porque recusar as ofertas de quantidades abundantes de álcool simplesmente não era uma opção, daí o cheiro de Guinness estagnado já mencionado que impregna cada centímetro dessa espelunca escura e sombria. Na verdade, o lugar está tão saturado de Guinness, que os carpetes, cortinas e papeis de parede são pegajosos ao toque. Vamos apenas dizer que não me surpreenderia se a água do meu banho matinal (na suíte antiquada e apertada) fosse preta e espumosa.