Daniel acendeu a lareira e o suave brilho alaranjado das chamas se espalhou pelo foyer enquanto a família decorava a árvore. Um a um, Chantelle colocou cuidadosamente os enfeites que escolheu na árvore, com o tipo de precisão e cuidado que Emily aprendeu a reconhecer na menina. Era como se saboreasse cada momento, cuidadosamente guardando um novo conjunto de lembranças para substituir as terríveis de seus primeiros anos.
Finalmente, chegou a hora de colocar o anjo no topo. Chantelle passou um longo tempo escolhendo qual enfeite ficaria na posição principal e terminou escolhendo um anjo de tecido costurado à mão; as outras opções eram um pássaro de peito vermelho, uma estrela e um boneco de neve fofinho.
“Pronta?” Daniel perguntou a Chantelle, enquanto esperava de pé ao lado da escada. “Vou levantar você para que possa chegar ao topo”.
“Posso colocar o anjo no topo?” Chantelle perguntou, de olhos arregalados.
Emily riu. “É claro! A mais nova sempre pode fazer isso”.
Ela observou Chantelle subir nas costas de Daniel, segurando firme o anjo nas mãos, para não deixá-lo cair. Então, lentamente, um passo de cada vez, Daniel subiu a escada e a levou até o topo. Juntos, se esticaram e Chantelle colocou o enfeite no alto da árvore.
No momento em que o anjo apareceu sobre a árvore, Emily teve um súbito flashback. Veio tão rapidamente que ela começou a respirar rápido, em pânico com a abrupta mudança em sua pousada luminosa e aconchegante, que voltou a ser a pousada fria e escura de trinta anos atrás.
Emily estava olhando para cima, para Charlotte, enquanto ela colocava na árvore o anjo que passaram o dia fazendo. Seu pai estava segurando Charlotte no ar, que, nesse ponto, era apenas uma criança muito pequena e gorducha, e ele vacilava um pouco por causa das várias doses de xerez que havia bebido naquele dia. Emily se lembrou de um súbito e imenso medo. Medo de seu pai bêbado deixar Charlotte cair na lareira dura. Emily tinha cinco anos e era a primeira vez que realmente compreendeu o conceito de morte.
Voltou para o momento presente, surpresa ao ver a própria mão pressionando a parede, enquanto se segurava para não cair. Estava hiperventilando e Daniel já estava ao seu lado, com uma mão nas suas costas.
“Emily?” perguntou, preocupado. “O que houve? Outra lembrança?”
Ela assentiu, sem conseguir falar. A lembrança tinha sido tão vívida e aterrorizante, apesar dela saber que nada de ruim tinha acontecido à irmã naquela noite de inverno. Gostava da maioria de suas lembranças, mas aquela parecia sinistra, monstruosa, como um sinal das coisas sombrias que estavam por vir.
Daniel continuou a passar a mão nas costas de Emily enquanto ela fazia um grande esforço para diminuir o ritmo da sua respiração, que voltava ao normal. Chantelle levantou os olhos para ela, preocupada, e foi o rosto da menina que finalmente tirou Emily das garras de suas lembranças.
“Desculpe, está tudo bem”, ela disse, sentindo-se um pouco envergonhada por ter preocupado todo mundo.
Levantou os olhos para o anjo, para o vestido coberto de lantejoulas que usava. Ela e Charlotte haviam passado horas colando todas aquelas lantejoulas, uma a uma, no tecido. Agora, com a luz que vinha da sala de estar, elas brilhavam como um arco-íris. Emily teve a impressão de que estavam cintilando para ela. Não pela primeira vez, sentiu a presença de Charlotte, comunicando-lhe amor, paz e perdão. Emily tentou se agarrar a este sentimento, em busca de conforto.
“Deveríamos ir para a praça principal”, Emily disse, por fim. “Não queremos perder o momento em que a árvore será acesa”.
“Tem certeza que você está bem?” Daniel perguntou, parecendo preocupado.
Emily sorriu. “Estou. Juro”.
Mas Daniel não ficou convencido. Podia ver que ele a observava pelo canto do olho o tempo todo enquanto colocavam seus casacos de frio. Mas ele não fez mais perguntas, e então a família entrou no carro e se dirigiu à cidade.
CAPÍTULO QUATRO
Apesar do clima frio, Sunset Harbor em peso se reuniu na praça da cidade para assistir ao acendimento das luzes de Natal. Até Colin Magnum, o homem que alugou o chalé durante o mês, estava lá, aproveitando a festa. Karen, do mercadinho, distribuiu rolinhos de canela fresquinhos, e Cynthia Jones andava entre a multidão com garrafas de chocolate quente. Emily pegou o rolinho e o chocolate agradecida, sentindo o calor aquecer seu estômago enquanto os comia, e observava Chantelle brincar feliz com seus amigos.
No meio do povo, Emily distinguiu Trevor Mann. Antes, apenas vê-lo a deixaria morrendo de medo; tornaram-se inimigos no momento em que Trevor adotou como missão de vida expulsar Emily da pousada. Mas tudo começou a mudar nas últimas semanas, depois que ele descobriu que tinha um tumor cerebral impossível de operar. Longe de ser o inimigo de Emily, Trevor agora era seu aliado mais próximo. Havia pago todos os impostos atrasados dela – centenas de milhares de dólares – e agora a recebia na casa dele regularmente para tomar um café e comer um pedaço de bolo. Emily sofria ao vê-lo sofrer. Cada vez que o via, parecia mais frágil, mais oprimido pelas garras da doença.
Aproximou-se dele. Quando Trevor a viu, seu rosto se iluminou.
“Como você está?” Emily perguntou, abraçando-o. Ele parecia mais magro, e ela pôde sentir os ossos dele durante o abraço.
“Bem, dentro das circunstâncias”, Trevor replicou, baixando o olhar.
Emily ficava chocada ao vê-lo daquela forma, frágil e derrotado.
“Precisa de ajuda com alguma coisa?” ela perguntou, suavemente e num tom de voz baixo, para não constranger aquele homem orgulhoso.
Trevor balançou a cabeça, como Emily esperava. Não era sua natureza aceitar ajuda. Mas não estava na natureza dela aceitar um não como resposta.
“Chantelle tem feito decorações com flocos de neve de papel”, ela disse. “São pedacinhos de papel com glitter, mas ela está muito orgulhosa e quer que todos os vizinhos tenham uma. Tudo bem se eu passar para deixar uma amanhã?”
Era uma desculpa esfarrapada, mas Trevor mordeu a isca.
“Bem, acho que poderíamos também tomar um chá com bolo”, ele disse. “Já que você vai passar lá em casa mesmo”.
Emily sorriu. Havia algumas brechas na armadura de Trevor, e ela decidiu visitar o vizinho assim que surgisse uma oportunidade.
“Esperava vê-la qui”, Trevor disse, pegando a mão dela. Ele estava muito frio, Emily notou, e sua pele estava um tanto pegajosa. Havia um pouco de suor sobre a sobrancelha dele. “Tenho algo para você”, continuou.
“O que é?” Emily perguntou, enquanto ele tirava um pedaço de papel do bolso.
“Plantas”, Trevor disse. “De sua casa. Eu estava no meu sótão, tentando organizar tudo para... bem, você sabe”. Sua voz ficou mais baixa. “Não sei como foram parar nas minhas coisas, mas pode ser que você as queira. Foram desenhadas por seu pai e um advogado, e sei o quanto você deseja coisas que foram do seu pai”.
“Sim”, Emily balbuciou, pegando o papel das mãos dele.
Ela baixou os olhos para as linhas desbotadas no papel. Eram plantas arquitetônicas. Ficou surpresa ao perceber que eram da propriedade inteira, incluindo a piscina no anexo, aquela em Que Charlotte se afogou. Emily sentiu um nó na garganta. Dobrou o papel rapidamente e o colocou na bolsa.
“Obrigada, Trevor”, ela disse. “Vou olhar com mais calma depois”.
Eles se separaram e Emily voltou para junto de Daniel e Chantelle.
“O que Trevor queria?” Daniel perguntou.
“Nada”, Emily disse, balançando a cabeça. Ainda não estava pronta para falar sobre aquilo; estava emocionada demais com a experiência. O papel parecia atraí-la de dentro da bolsa. Poderia ser mais uma peça do quebra-cabeça que explicava o desaparecimento do seu pai?
Nesse momento, a contagem regressiva para o acendimento das luzes começou. A mente de Emily foi tomada por lembranças de estar ali quando criança, depois, como pré-adolescente, e depois como uma adolescente. Parecia passar por todos esses momentos esquecidos, ano após ano. Alguns incluíam Charlotte, viva e sorridente, mas muitos outros não; muitos eram apenas ela e seu pai, afundando cada vez mais na depressão e no alheamento.
Então, luzes brancas explodiram da árvore e todo mundo começou a vibrar e a aplaudir. Emily foi puxada de volta ao momento presente, com o coração acelerado.
“Você está bem?” Daniel perguntou, preocupado. “Você tem tidos muitos flashbacks”.
Emily assentiu para tranquilizá-lo, mas estava tremendo. Sua mente estava frenética. Todas aquelas lembranças ressurgindo de repente e ela se perguntava se tinham sido acionadas pela descoberta de que seu pai estava realmente vivo. Era como se agora pudesse voltar ao passado e lembrar do pai, porque não seria tomada pela dor ao fazer isso. Talvez, se Emily fosse paciente o bastante, descobriria uma lembrança que a ajudaria em sua busca, algo que lhe diria exatamente onde ele estava se escondendo.
*
Exaustos depois da divertida noite em família, Emily e Daniel puseram Chantelle na cama assim que chegaram em casa. A menina pediu que eles contassem uma história e Emily aceitou. Mas assim que a história acabou, Chantelle parecia pensativa.
“O que foi?” Emily perguntou.
“Estava pensando na minha mãe”, a menina explicou.
“Ah”. Emily sentiu um nó no estômago ao pensar em Sheila, lá no Tennessee. “O que tem ela, querida?”
Chantelle a olhou com seus olhos azuis arregalados. “Você vai me proteger dela?”
O coração de Emily apertou. “É claro”.
“Prometa”, Chantelle disse com uma voz desesperada, suplicante. “Prometa que ela não vai voltar”.
Emily a abraçou forte. Não podia prometer, porque não sabia como o processo da guarda legal iria transcorrer.
“Farei tudo o que puder”, Emily disse, esperando que suas palavras bastassem para acalmar a criança aterrorizada.
Chantelle se reclinou, com a cabeça sobre o travesseiro, os cabelos loiros espalhados, e pareceu relaxar. Alguns momentos depois, ela adormeceu.
O fato de Chantelle perguntar pela mãe despertou algo em Emily. Ela e Patricia haviam conversado há pouco tempo, quando Emily tentou, sem sucesso, fazer a mãe vir para o Dia de Ação de Graças na pousada. Sua mãe se recusou a visitar a casa em Sunset Harbor; via a casa como uma propriedade de Roy e como um lugar do qual fora banida. Ainda assim, Emily pensou, Patricia ainda fazia parte da sua vida. Era hora de pegar o touro pelos chifres e contar a ela sobre seu casamento.
Emily se levantou da cama de Chantelle, enrolou-se num xale e foi até o terraço. Sentou na cadeira de balanço, cruzou as pernas e olhou para o céu, para as estrelas cintilantes e para a lua. Algo no brilho delas lhe deu coragem. Pesquisou entre os contatos em seu celular e ligou para a mãe.
Como sempre, Patricia atendeu a ligação com um brusco “Sim?”
“Mãe”, Emily disse, respirando fundo, tentando manter sua coragem. “Tenho algo para te dizer”.
Não havia por que fingir uma conversa educada. Nenhuma das duas queria isso. Era melhor ir direto ao assunto.
“Ah, é?” Patricia disse, indiferente.
Emily havia dado algumas notícias inesperadas para a mãe ao longo do último ano, após deixar tudo em Nova York, terminar o relacionamento de sete anos com Ben, fugir para Sunset Harbor, abrir uma pousada, e se apaixonar por Daniel tão loucamente que havia concordado em criar a filha dele. Sua mãe havia, surpreendentemente, desaprovado cada uma das escolhas da filha. As chances dela aceitar o noivado eram quase nulas.
“Daniel me pediu em casamento”, Emily finalmente conseguiu dizer. “E eu concordei”.
Houve uma pausa, uma que Emily havia previsto. Sua mãe usava o silêncio como uma arma, sempre dando a Emily tempo suficiente para se preocupar com os pensamentos que passavam pela sua mente.
“E há quanto tempo você namora esse homem?” Patricia perguntou por fim.
“Há quase um ano”, Emily replicou.
“Um ano. E vocês têm mais ou menos uns cinquenta para passarem juntos”.
Emily suspirou fundo. “Pensei que ficaria feliz por eu finalmente me casar. Você sempre adorou passar na minha cara que, na minha idade, já tinha se casado há muito tempo”. Ao ouvir o tom da própria voz, Emily estremeceu. Por que sua mãe sempre provocava a criança briguenta nela? Por que se importava tanto com sua aprovação, se Patricia mesmo parecia se importar tão pouco com a filha?
“Imagino que ele precisa de uma mãe para essa filha dele”, Patricia disse.
Emily falou entredentes. “O nome dela é Chantelle. E não foi por isso que ele fez o pedido. Fez o pedido porque me ama. E eu aceitei porque o amo. Queremos ficar juntos pra sempre, então, é melhor se acostumar com isso”.
“Veremos”, Patricia replicou, entediada.
“Eu só queria que ficasse feliz por mim”, Emily disse, com a voz começando a oscilar. “Você será a mãe da noiva, afinal. As pessoas esperam vê-la orgulhosa de mim e ser gentil com todos”.
“Quem disse que eu vou?” Patricia disparou de volta.
As palavras atingiram Emily como um tapa. “Como assim? É claro que você virá, mãe, é meu casamento!”
“Não sou obrigada”, Patricia replicou. “Vou confirmar presença ou não depois que receber meu convite do casamento... quando o receber”.
“Mãe...” Emily balbuciou.
Não podia acreditar no que estava ouvindo. Sua mãe realmente não viria? O que as pessoas iriam pensar? Provavelmente, que Emily era uma órfã, sem pai, sem mãe. E sem irmã. De várias formas, ela era uma órfã. Estava sozinha no mundo.
“Tudo bem”, Emily disse, subitamente alterada. “Faça o que quiser. Como sempre”. Então, terminou a ligação sem se despedir.
Emily não queria chorar. Na verdade, se recusou a chorar. Não por causa da mãe, não valia a pena. Mas pelo pai, que era um assunto completamente diferente. Sentia falta dele desesperadamente, e agora que estava convencida de que ainda era vivo, queria vê-lo acima de tudo. Mas não sabia como entrar em contato. A mulher com quem ele estava traindo sua mãe morrera há vários anos, e, de todo modo, ela estava tão perplexa quanto todo mundo sobre o desaparecimento de Roy. Emily só sabia que, apesar de sofrer se sua mãe não vier ao casamento, não ter seu pai presente seria devastador. Naquele momento, Emily fortaleceu ainda mais sua decisão de encontrá-lo. Alguém, em algum lugar, deve saber de alguma coisa.
Voltou para a pousada. O dia havia sido longo, e ela subiu as escadas até o quarto. Mas quando chegou, viu que Daniel não estava lá. Seu pânico momentâneo foi aplacado quando ele entrou no quarto, com o celular na mão.
“Onde estava?” Emily perguntou.
“Acabei de ligar pra minha mãe”, Daniel replicou. “Para contar a ela sobre o casamento”.
Emily quase riu com a surpresa. Que os dois tivessem ligado para suas mães simultaneamente daquele jeito era mais do que uma coincidência; era claramente um sinal de sua conexão um com o outro.
“E como foi?” Emily perguntou, apesar de notar pela expressão de Daniel que a resposta não seria boa.
“O que você acha?” Daniel disse, levantando uma sobrancelha. “Ela usou Chantelle novamente, dizendo que só viria para o casamento se prometêssemos deixá-la passar um tempo regularmente com a neta. Queria que percebesse que força destrutiva ela pode ser e compreendesse por que não quero que tenha contato com minha filha. Não enquanto ainda estiver bebendo tanto. Chantelle precisa estar junto de adultos sóbrios depois do que viveu com sua própria mãe”. Ele desabou na borda da cama. “Mas ela não consegue entender. Não entende. 'Todo mundo bebe', é o que ela sempre diz. 'Não sou pior do que ninguém'. Talvez não, mas não é do que Chantelle precisa. Se se importasse com a neta o tanto que diz se importar, deixaria de beber para o bem dela”.