A Lista Dos Perfis Psicológicos - Franco Susana 3 стр.


No palco, aquelas três pessoas apresentavam e dançavam sucessivamente, fazendo trocas constantes de roupa e de entoações.

De início custou-me um pouco perceber qual era a peça, mas logo dei-me conta de que estava diante de uma das obras mais representadas da história. Uma obra classificada como a mais dramática e a mais complexa. Repleta de amor, ódio, vingança e desejo, mas que era rapidamente conhecida pela famosa frase “Ser ou não ser! Eis a questão”.

Hamlet, uma das obras trágicas mais conhecidas de William Shakespeare, mas adaptada a um pequeno povo criado em palco, em vez de refletir a nobreza dinamarquesa das suas personagens originais.

O enredo não se distanciava muito dos dramas atuais, embora os bailarinos quisessem manter aquele traje medieval e linguagem aprimorada e pouco direta da obra original.

Além disso, como os atores-bailarinos eram poucos, eles próprios representavam várias personagens, sendo que a única coisa que os distinguia uns dos outros era a indumentária que usavam. Assim, e para que fosse evidente a troca, os dois rapazes, além de fazerem as personagens masculinas, também faziam as personagens femininas.

Em apenas meia hora tinham terminado e eu fiquei perplexo com aquilo. Não era que me lembrasse da obra por inteiro, mas sabia que tinha três ou quatro atos, cada um mais extenso do que o outro em termos de tempo, mas isto, tinha sido como um “Hamlet expresso”.

Quando os três bailarinos ficaram de pé no palco, com os braços para cima após dobrarem o corpo numa vénia, baixarem a cabeça quase até aos joelhos e deterem-se a olhar para mim, tive que aplaudir.

― O que achou? ― Perguntou o ator-bailarino que tinha feito de bilheteiro.

― Pareceu-me bem ― eu disse, tentando recuperar da impressão que me causara.

― A sério que gostou? ― Perguntou nervosa a atriz.

― Bom, na sua essência pareceu-me bem, embora tenha faltado o mais importante ― referi sem querer desanimá-los.

― O mais importante? ― Perguntou um terceiro.

― Sim, toda a introspeção dos personagens, principalmente do príncipe Hamlet. Faltou mais um pouco de autodiálogo.

― Eu sabia! ― Falou o primeiro ator.

― Tem calma! ― Disse o terceiro.

― Como acha que poderíamos melhorar? ― Perguntou a atriz.

― Não sei, não é como se fosse um entendido no assunto, nem nada disso.

― Era isso que queríamos, daí o convite ― indicou a mulher.

― Não estou a perceber! ― Respondi, confuso com aquela afirmação.

― Deixámos um convite no parque para que, quem quisesse, pudesse assistir de forma anónima à nossa “ante-estreia”, para assim ficarmos a conhecer de antemão a impressão que a nossa obra causa no espetador. ― Esclareceu o primeiro ator.

― Bem, talvez eu não seja tão imparcial como desejariam, sou psiquiatra e devido à minha profissão, tenho o costume de analisar tudo aquilo que oiço e vejo. É um hábito profissional! ― Esclareci com um certo tom de resignação.

― Então! Gostou? ― Insistiu a mulher que estava vestida com um meias de rede e um tutu, ambos negros.

― Sim, achei interessante a abordagem que fizeram, mas pareceu-me demasiado curto, e faltaram algumas cenas importantes da obra.

― É essa a ideia ― afirmou o terceiro ator com um tom desafiante. ― Se queria ver uma obra clássica, enganou-se na sala. Nós somos ousados, inovadores, e não queremos repetir o mesmo que os outros.

― Apesar disso, creio que um pouco mais de introspeção seria bom para o público refletir sobre a natureza humana, tal como pretendia Shakespeare ― voltei a indicar.

― Reflexão? Não é isso que procuramos, queremos emocionar, impressionar, fazer perder o fôlego… que quando sair daqui, se lembre do que viveu como uma experiência única. Não queremos cá reflexões! ― Insistiu o terceiro ator com um tom aborrecido.

― Bem, apenas estou a dizer o que penso, creio que é um clássico e há que respeitar algumas coisas da obra original.

― Agradecemos o seu tempo ― afirmou a mulher enquanto descia os três degraus do palco. ― Já agora, isto é seu? ― Disse, entregando-me a caixa que me tinha conduzido até esta experiência tão imprevisível. ― Sim, é seu. ― Afirmou. ― Embora esperássemos que viesse acompanhado.

― Acompanhado? ― Perguntei surpreendido.

― Sim, mas suponho que não tinha ninguém com quem vir ― afirmou com um tom sarcástico o terceiro bailarino ao descer do palco.

― A verdade é que, se soubesse ao que vinha, poderia ter convidado alguém, mas como não dizia nada…

― Como nada? ― Perguntou o primeiro ator, que fizera de bilheteiro. ― Está escrito o lugar, a hora e até que era um espetáculo de balé.

― Sim, é verdade, mas não me imaginei num sítio como este, vi no jornal que anunciavam uma companhia de balé que atuaria hoje, e pensei que eram vocês.

― Antes fosse! ― Disse a mulher. ― Nem sequer somos uma companhia, apenas um grupo de amigos que resolveu oferecer um pouco de arte ao povo, mas isso sim, preferimos que seja de qualidade e que transmita emoção ao espetador.

― Ouviu bem? Emoção! E não diálogo! ― Afirmou o terceiro bailarino, enquanto se sentava do meu lado.

― Bom, parabéns, continuem assim. ― Eu disse, tentando acabar com aquela situação desconfortável, pois era a primeira vez que ia a uma dessas representações alternativas, ou lá como se chamava.

Raramente ia a lugares artísticos, mas quando o fazia, procurava sempre que fossem obras de companhias internacionais.

― Espere! ― Disse a jovem, segurando-me pelo braço do casaco. ― O que é isto?

― O quê? ― Perguntei surpreso.

― Este anel e este bilhete? O que quer isto dizer? ― Perguntou desconfiada enquanto o retirava da caixa.

― Não faço a mínima ideia, veio com a caixa ― afirmei sem saber o motivo da sua desconfiança.

― Deixámos a caixa no parque para que quem quisesse nos pudesse vir ver e assim ficarmos a saber a sua opinião, mas não colocamos isto lá ― referiu o primeiro ator.

― Pois posso garantir-lhes que isso já estava aí dentro quando recebi a caixa ― insisti.

― Tome! ― Disse a rapariga, entregando-me ambos os objetos.

― E o que quer que faça com isto? ― Perguntei contrariado ao ver que não lhes pertencia.

― Não sei, mas não é daqui. Agradecemos a sua visita e a sua opinião acerca da nossa representação ― afirmou a rapariga enquanto me indicava o palco com um gesto de mão.

― Acompanhe-me à saída ― falou o terceiro bailarino, enquanto caminhava diante de mim.

Segui-o até à saída, atravessando o caminho estreito e após cruzar a porta, voltei-me e a única coisa que recebi daquele homem foi:

― Mais diálogo? O que é que você sabe de balé?

Após dizer isto fechou a porta e deixei-me ficar ali por uns segundos a observá-la antes de me voltar e olhar à minha volta.

A rua estava quase toda às escuras, à exceção de alguns estabelecimentos de bebidas e de jogos, desses que ficam abertos vinte e quatro horas.

Olhei para ambos os lados e não vi um único carro. Olhei para o relógio e fiquei admirado ao ver que já tinha passado mais de uma hora desde que saíra do meu escritório.

“E onde é que encontro um táxi a estas horas?” Disse para mim próprio enquanto começava a caminhar rua acima, à espera de que passasse algum.

Como o ar começava a ficar mais fresco, subi a gola do casaco e meti as mãos nos bolsos, quando me apercebi de que trazia aquele anel. Retirei-o, e com dificuldade, reparei que tinha algo gravado. Algo de que não me tinha apercebido antes, mas que também não conseguia ver bem com aquela luz fraca.

Voltei a guardá-lo no bolso e com a mão, toquei no bilhete e apercebi-me de que continha um certo relevo numa das suas pontas. Retirei-o e pus-me a observá-lo, mas não vi nada.

“Pode ser que dê para ver melhor debaixo da luz”, disse para mim, enquanto o levantava na direção de um candeeiro, que a vários metros de altura, fazia os possíveis por manter a rua iluminada.

― Nada, assim também não dá para ver. ― Afirmei após tentar observá-lo de vários ângulos.

Estava entretido naquilo quando a rua se começou a iluminar e reparei que um carro se aproximava. Guardei depressa o pedaço de papel e fui tentar pará-lo.

― Táxi! Táxi!… ― Gritei, enquanto abanava as mãos no ar para que me visse.

― Precisa de um táxi, senhor? ― Perguntou o condutor, parando do meu lado.

― Sim, obrigado ― afirmei aliviado enquanto entrava para a parte traseira do carro.

― Para onde quer ir?

― Para o Hotel Plaza.

― Teve sorte de eu passar por aqui, não é uma zona muito recomendável.

― Pois, estou a ver que não ― eu disse, vendo que se tratava de um bairro negligente.

― Está cá de visita? ― Perguntou o taxista.

― O quê? ― Devolvi, enquanto observava o bairro que atravessávamos.

― É a sua primeira vez cá na cidade? ― Insistiu.

― Não, eu moro cá.

― Onde? No hotel? ― Perguntou o taxista num tom de brincadeira.

― Sim, isso mesmo. ― Afirmei decisivo.

― Desculpe, mas não estou a perceber ― disse o homem surpreendido.

― Há anos que vivo lá, e dessa forma posso concentrar-me no meu trabalho sem a necessidade de me distrair com coisas desnecessárias como as lidas domésticas.

― Que trabalho pode ser assim tão absorvente? ― Perguntou o taxista curioso.

― Sou psiquiatra ― respondi, enquanto baixava a gola do casaco.

― Psi… quê? Dos loucos? ― Perguntou, soltando uma gargalhada.

― Aquele que trata da saúde mental dos cidadãos desta cidade ― salientei sem me deixar afetar por aquele comentário jocoso, que nem sequer era dos mais ofensivos que já tinha suportado.

― Bem, não interessa, e isso dá-lhe para viver num hotel? Você deve ganhar bem ― ele disse, enquanto fazia um gesto com os dedos indicador e polegar, indicando dinheiro.

― Nem por isso, mas como não tenho outros gastos, posso-me dar a esse luxo.

― Ah! Sim, estou a ver! ― Afirmou o taxista, mostrando um sorriso brincalhão.

― Se você fizesse contas do que gasta com o aluguer ou hipoteca, mais os gastos de luz, água, seguros e comida, provavelmente optaria por uma solução como a minha ― afirmei, fazendo-o ver as vantagens daquilo.

― Se dissesse à minha mulher que íamos viver para um hotel, a primeira coisa que ela me perguntaria era se tinha ganhado a lotaria ― o homem brincou.

― E a segunda? ― Perguntei, seguindo a sua piada.

― O que faria com a minha sogra. ― Respondeu às gargalhadas.

― Tem uma família grande? ― Perguntei intrigado.

― Grande? Se contar com a minha mulher, a minha sogra, os tios e os primos, sim. Quando nos reunimos todos, somos dez. E vem outro a caminho. E você, não é casado? ― Perguntou divertido.

― Não. Quer dizer, já fui, mas ela abandonou-me.

― Ah, lamento ― afirmou o taxista, mudando de tom.

― Não lamente, ela fugiu com outro enquanto eu estava num congresso.

― Está a falar a sério?

E começamos os dois a rir daquela situação tão absurda. Até que se seguiu um momento de silêncio, quase tão desconfortável como o que senti quando voltei para casa naquele dia e encontrei o bilhete de despedida da minha mulher, a dizer: “Espero que consigas tudo o que queres, eu também vou tentar, por isso vou-me embora”.

Eu andava sempre com o bilhete na carteira, para todo o lado que ia, mas ainda não tinha chegado a mostrá-lo a ninguém, talvez por vergonha ou por medo de partilhar os meus sentimentos. Era óbvio que ela não era feliz comigo e que queria “explorar novos horizontes”.

Assim, quando cheguei a casa, e após dar-me conta da situação, peguei na mala que trazia comigo do congresso e fui para o Hotel Plaza, onde me deixei ficar até hoje.

Não me via a viver naquela casa sem ela. Tanto silêncio, tanta solidão, naquela casa que tínhamos comprado com tanta expectativa. Onde íamos ter os nossos filhos, vê-los crescer, e que seria a nossa morada até os últimos anos das nossas vidas. E com apenas dois anos de casamento, tudo acabou desta forma. Sem um único telefonema ou uma explicação, apenas com um bilhete de despedida.

É verdade que os últimos meses tinham sido bastante agitados para mim, centrados num novo projeto – ser um dos cofundadores de uma associação internacional de psiquiatras, onde pretendíamos oferecer uma nova perspetiva às pessoas alheias à nossa ciência; publicar uma revista trimestral; arranjar financiamento para projetos de investigação; atender os meus pacientes… – e com tudo isso, acabei por me descuidar daquilo que mais queria, mas para o qual não tinha recebido nenhum sinal.

Sempre que voltava para casa, ela parecia feliz e satisfeita. Falava-me sobre o seu trabalho como professora, das dificuldades que por vezes tinha, ou de como alguma das crianças lhe tirava do sério.

Lembro-me até de que já tínhamos feito planos para nas próximas férias passarmos umas semanas numa dessas ilhas tropicais, cheias de cocos e praias de areia branca, onde o mar se confunde com o céu, e onde pudéssemos estar os dois juntos, a partilhar daquele pedacinho de céu cá na Terra. E de repente, de um dia para o outro, restou apenas um bilhete.

― Chegámos! ― Disse o taxista ao parar em frente à entrada principal do hotel.

― Obrigado! ― Respondi, pagando-lhe pela corrida e saindo do carro.

― Boa noite! ― Saudou o porteiro do hotel.

― Boa noite! ― Respondi enquanto subia novamente a gola do casaco e entrava no hotel com alguma pressa, uma vez que o tempo tinha começado a arrefecer.

Depois de subir as escadas, cruzei a porta giratória e dirigi-me à receção.

― Boa noite, quarto 311. Tem correspondência para mim? ― Perguntei enquanto esperava que me dessem a chave do quarto.

― Não doutor, mas aqui tem os jornais de hoje, tal como pediu.

― Muito obrigada! Boa noite ― respondi enquanto recolhia os jornais internacionais aos quais gostava de dar uma vista de olhos antes de me deitar.

― Qual é o andar? ― Perguntou o rapaz do elevador.

― O terceiro. ― Afirmei, sabendo que ele já sabia a resposta, pois todas as noites fazia-me a mesma pergunta.

― Teve um bom dia? ― Voltou a perguntar o rapaz.

― Bom, foi uma tarde um pouco invulgar!

― Por causa do tempo?

― Sim, também ― respondi com um sorriso forçado.

― Já chegámos! Tenha uma boa noite.

― Muito obrigado, vou tentar ― falei, saindo do elevador e dirigindo-me ao meu quarto.

Ao fundo do corredor, havia uma pequena suite, que disponha de um pequeno escritório e de um quarto. Não era muito grande, mas era o melhor que tinha conseguido negociar com o diretor do hotel, já que não era habitual terem clientes alojados no mesmo quarto durante anos.

Mal abri a porta da suite, percebi que alguma coisa não estava bem. Um cheiro forte a charuto inundava a sala, algo que era óbvio que não era meu, pois eu não fumava, e muito menos recebia convidados no meu quarto, pelo que não pude evitar soltar um:

― Quem está aí?

Tentei ligar o interruptor, mas os candeeiros não acendiam, embora tivesse pressionado repetidamente a chave da luz.

― Não se preocupe doutor, está tudo bem. ― Disse uma voz vinda da minha poltrona.

Tinha passado tanto tempo naquela sala que era capaz de reconhecer cada canto e sabia bem que, no lugar de onde me falava, havia uma poltrona debaixo de um candeeiro de pé, lugar onde costumava sentar-me a ler os jornais antes de dormir.

― Quem é você? ― Perguntei, dando um passo atrás e dirigindo-me até à saída para abrir a porta e poder, pelo menos, iluminar o quarto.

Estava prestes a fazê-lo, já com a mão na maçaneta, quando notei que alguém a prendia, impedindo-me de puxar a maçaneta.

― Acalme-se, por favor! Se lhe quisesse fazer mal, não estaríamos aqui a falar.

De repente, fez-se luz atrás de mim. O homem que falava comigo, tinha acendido o candeeiro e com isso, notei como outro, encasacado e com luvas, prendia-me a mão com as suas duas mãos.

Soltei-me e voltei-me para protestar por aquela invasão de privacidade, pois, embora assim não fosse, considerava aquele espaço a minha casa.

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