“Eu não entendo você, Jessie”, ela disse enquanto vestia o casaco. “Você é aceita em um prestigiado programa do FBI na Quantico para promissores especialistas em perfis criminais e você parece pouco empolgada com isso. Eu acho que você deveria agarrar essa chance de mudar um pouco de ares. Além disso, são apenas dez semanas. Não é como se você tivesse que se mudar para lá.”
“Você está certa”, concordou Jessie enquanto tomava a última das suas três xícaras de café. “É que há muita coisa acontecendo agora. Não tenho certeza se é a hora certa. O divórcio de Kyle ainda não está totalmente resolvido. Ainda tenho que fechar a venda da casa em Westport Beach. Não estou a cem por cento fisicamente. E acordo gritando na maioria das noites. Não sei se já estou preparada para os rigores do programa de treinamento de análise de comportamento do FBI.”
“Bem, é melhor você decidir rapidamente”, disse Lacy enquanto se dirigia para a porta da frente. “Você não tem que dar uma resposta a eles até o final da semana?”
“Tenho.”
“Bem, depois me diga o que você decidir. Além disso, você poderia abrir a janela do seu quarto antes de sair? Sem ofensa, mas lá dentro está com um cheiro que parece de uma academia.”
Ela se foi antes que Jessie pudesse responder, embora não tivesse certeza do que dizer sobre isso. Lacy era uma grande amiga com quem sempre podia contar para dar sua opinião sincera. Mas tato não era o forte dela.
Jessie se levantou e foi para seu quarto para se trocar. Ela teve um vislumbre de si mesma de corpo inteiro no espelho na parte de trás da porta e não se reconheceu imediatamente. Na superfície, ela ainda parecia a mesma, com seus cabelos castanhos na altura dos ombros, seus olhos verdes, seu metro e setenta e sete de altura.
Mas seus olhos estavam avermelhados de cansaço e seu cabelo estava mal cuidado e oleoso, tanto que ela decidiu amarrá-lo num rabo de cavalo e usar um boné. E sentia-se permanentemente corcunda, resultado da preocupação constante de que seu abdômen pudesse pulsar inesperadamente de dor.
Eu voltarei a ser quem eu era? Será que aquela pessoa ainda existe?
Ela se livrou daquele pensamento, deixando a autopiedade para lá, pelo menos por um tempo. Ela estava ocupada demais para aquilo agora.
Era hora de se preparar para a sessão de fisioterapia, para o encontro com a corretora de imóveis, a consulta com a psiquiatra e depois uma com a ginecologista. Seria um dia inteiro fingindo ser um ser humano funcional.
*
A corretora de imóveis, uma pequena e agitada muçulmana usando um terninho, chamada Bridget, estava mostrando-lhe o terceiro apartamento da manhã quando Jessie começou a ter vontade de pular de uma sacada.
Tudo estava bem no começo. Ela estava ainda um pouco excitada com a sua última sessão de fisioterapia, que terminou com a notícia de que ela estava ‘razoavelmente equipada para as tarefas da vida diária’. Bridget mantivera as coisas em movimento enquanto elas visitavam os dois primeiros apartamentos, concentrando-se nos detalhes da unidade, nos preços e nas amenidades. Foi só quando chegaram à terceira opção, a única pela qual Jessie tinha algum interesse até agora, que as questões pessoais começaram.
“Tem certeza de que só está interessada em apartamento de um quarto?”, Bridget perguntou. “Vejo que você gosta desse aqui. Mas há um de dois quartos com praticamente a mesma planta no andar de cima. São apenas trinta mil dólares a mais e teria maior valor de revenda. Além disso, você nunca sabe qual será a sua situação daqui a alguns anos.”
“É verdade”, reconheceu Jessie, mentalmente constatando que há apenas dois meses ela estava casada, grávida e morava em uma mansão em Orange County. Agora ela estava separada de um assassino confesso, havia perdido o bebê, e estava morando com uma amiga da faculdade. “Mas eu fico bem com um de apenas um quarto.”
“Claro”, Bridget disse em um tom que demonstrava que ela não estava prestes a deixar o assunto para lá. “Você se importa se eu perguntar quais são as suas circunstâncias? Pode ser melhor para me ajudar a direcionar suas preferências. Eu não posso deixar de notar que a pele do seu dedo está mais clara onde um anel de casamento pode ter estado recentemente. Eu poderia mudar as opções de localização se eu soubesse que você está querendo superar e seguir em frente radicalmente ou... se manter escondida.”
“Estamos na área certa”, disse Jessie, engrossando a voz involuntariamente. “Eu apenas quero ver opções de um quarto por aqui. Essa é a única informação que você precisa agora, Bridget.”
“Claro. Desculpe”, disse Bridget, humildemente.
“Eu preciso ir ao banheiro por um momento”, disse Jessie, a tensão em sua garganta agora se expandindo para o peito. Ela não tinha certeza do que estava acontecendo. “Pode ser?”
“Claro. Não tem problema”, disse Bridget. “Você se lembra onde é, no final do corredor?”
Jessie assentiu e caminhou para lá o mais rápido que pôde sem efetivamente correr. Quando ela entrou e trancou a porta, temeu que fosse desmaiar. Parecia um ataque de pânico chegando.
O que diabos está acontecendo comigo?
Ela jogou água fria no rosto, depois pousou as palmas das mãos no balcão enquanto dizia a si mesma para respirar lenta e profundamente.
Imagens brotavam em sua cabeça sem continuidade ou sentido: ela aconchegando-se no sofá com Kyle, tremendo em uma cabana isolada nas montanhas Ozark, olhando para a ultra-sonografia de sua criança concebida e nunca nascida, lendo uma história na hora de dormir numa cadeira de balanço com seu pai adotivo, vendo como o marido despejava um corpo de um iate nas águas da costa, o som de seu pai sussurrando 'Joaninha' em seu ouvido.
O porquê de as perguntas inofensivas de Bridget sobre suas circunstâncias e sobre ‘se manter escondida’ a haviam afetado assim, Jessie não sabia. Mas tinham afetado e agora ela estava suando frio, tremendo involuntariamente, olhando no espelho uma pessoa que ela mal reconhecia.
Era uma coisa boa que a próxima parada fosse para ver sua terapeuta. O pensamento acalmou Jessie ligeiramente e ela respirou fundo mais algumas vezes antes de sair do banheiro e seguir pelo corredor até a porta da frente.
“Eu entro em contato”, ela gritou para Bridget enquanto fechava a porta atrás dela. Mas ela não tinha certeza se entraria mesmo. Agora ela não tinha certeza de nada.
CAPÍTULO TRÊS
O escritório da Dra. Janice Lemmon ficava a poucos quarteirões do prédio que Jessie havia acabado de visitar e ela estava contente pela oportunidade de caminhar e limpar a cabeça. Enquanto descia a Figueroa, ela quase agradecia ao vento forte e cortante que fazia seus olhos lacrimejarem e secarem imediatamente. O frio que a envolvia expulsava logo todos os pensamentos de sua cabeça, menos o que dizia ‘ande rápido’.
Ela fechou o casaco até o pescoço e abaixou a cabeça enquanto passava por um café, depois por uma lanchonete tão lotada que havia gente quase saindo pelas janelas. Era meados de dezembro em Los Angeles e as empresas locais estavam fazendo o melhor para que suas lojas parecessem festivas em uma cidade onde a neve era quase um conceito abstrato.
Mas nos túneis de vento criados pelos arranha-céus do centro, o frio estava sempre presente. Eram quase 11h da manhã, mas o céu estava todo cinza e a temperatura estava na casa dos dez graus. Esta noite ainda cairia para perto de cinco. Para Los Angeles, isso era assustador. Jessie, contudo, já havia enfrentado um clima muito mais gelado.
Quando criança no Missouri rural, antes de tudo desmoronar, ela brincava no minúsculo jardim à frente do trailer de sua mãe, que ficava estacionado no campo para caravanas, com os dedos e o rosto meio dormentes, formando bonecos de neve inexpressivos, mas felizes, enquanto a mãe observava, protetora, da janela. Jessie lembrava de se perguntar por que sua mãe nunca tirava os olhos dela. Olhando para trás agora, o motivo era claro.
Alguns anos depois, nos subúrbios de Las Cruces, Novo México, onde morou com sua família adotiva depois de entrar no programa de Proteção às Testemunhas, ela esquiava nas pequenas encostas de montanhas próximas com seu segundo pai, um agente do FBI. que agia sempre com muito profissionalismo e calma, não importava a situação. Ele estava sempre lá para ajudá-la quando ela caía. E ela geralmente podia contar com um chocolate quente quando saíam das colinas inóspitas e varridas pelo vento e voltavam para a cabana.
Aquelas lembranças frias a aqueceram enquanto ela contornava o último quarteirão até o consultório da Dra. Lemmon. Ela meticulosamente escolhia não pensar nas lembranças menos agradáveis que inevitavelmente se entrelaçavam com as boas.
Ela deu entrada na recepção e tirou as várias camadas de roupas enquanto esperava para ser chamada ao consultório da médica. Não demorou muito. Às 11h, a terapeuta abriu a porta e deu-lhe as boas vindas.
A Dra. Janice Lemmon estava na casa dos sessenta anos, mas não parecia. Estava em ótima forma e seus olhos, atrás de óculos grossos, eram perspicazes e focados. Seus cachos loiros encaracolados saltavam quando ela andava e sua intensidade não passava despercebida.
Elas se sentaram em cadeiras de pelúcia em frente uma da outra. A Dra. Lemmon deu-lhe alguns momentos para se acomodar antes de começar a falar.
“Como você está?”, ela perguntou daquele jeito indeterminado que sempre fazia Jessie ponderar genuinamente a questão mais a sério do que na sua vida diária.
“Eu já estive melhor”, ela admitiu.
“Por que?”
Jessie contou sobre seu ataque de pânico no apartamento e os flashbacks subsequentes.
“Eu não sei qual foi o estopim disso”, disse ela em conclusão.
“Eu acho que você sabe”, Dra. Lemmon cutucou.
“Pode me dar uma dica?”, Jessie respondeu.
“Bem, eu estou imaginando se você perdeu a calma na presença de um estranho, porque sentir que não tem outro lugar para liberar sua ansiedade. Deixe-me perguntar uma coisa: você tem algum evento ou decisão estressante para os próximos dias?”
“Você está se referindo a alguma coisa que não seja à consulta de ginecologia e obstetrícia que vou ter em duas horas, para ver se estou recuperada do aborto, à finalização do divórcio com o homem que tentou me matar, à venda da casa que compartilhamos, ao processamento do fato de que meu pai assassino em série está me procurando, à decisão se vou ou não à Virginia por dois meses e meio para que os instrutores do FBI riam de mim, e também ao fato de ter que sair do apartamento da minha amiga para que ela possa ter uma noite de sono decente? Além dessas coisas, eu diria que estou tranquila.”
“Isso parece muita coisa”, Dra. Lemmon respondeu, ignorando o sarcasmo de Jessie. “Por que não começamos com as preocupações imediatas e trabalhamos a partir daí, ok?”
“Você é a chefe”, Jessie murmurou.
“Na verdade, não sou. Mas me fale sobre o seu próximo compromisso. Por que isso te preocupa?”
“Não é bem que eu esteja preocupada”, disse Jessie. “A médica já me disse que parece que eu não tenho nenhum dano permanente e serei capaz de conceber novamente no futuro. A questão é que a consulta vai me lembrar o que perdi e como perdi.”
“Você está falando sobre como seu marido te drogou para que ele pudesse incriminar você pelo assassinato de Natalia Urgova? E como a droga que ele usou para isso induziu seu aborto espontâneo?”
“Sim”, disse Jessie secamente. “É disso que estou falando.”
“Bem, eu ficaria surpresa se alguém lá trouxesse esse assunto à tona”, disse Dra. Lemmon, com um sorriso gentil desenhado em seus lábios.
“Então você está dizendo que estou criando estresse para mim mesma sobre uma situação que não precisa ser estressante?”
“Eu estou dizendo que se você lidar com as essas emoções com antecedência, elas podem não ser grande coisa quando você estiver realmente lá na consulta.”
“É mais fácil falar do que fazer”, disse Jessie.
“Tudo é mais fácil falar do que fazer”, respondeu a Dra. Lemmon. “Vamos deixar isso de lado por enquanto e seguir em frente para o seu divórcio pendente. Como estão as coisas nesse assunto?”
“A casa está dada em garantia. Então, espero que isso seja concluído sem complicações. Meu advogado diz que meu pedido de divórcio rápido foi aprovado e que deve ser concluído antes do fim do ano. Há um bônus nessa situação - porque a Califórnia é um estado de propriedade da comunidade, eu recebo metade dos bens do meu cônjuge assassino. Ele também ganha metade dos meus, apesar de ser julgado por nove grandes crimes no início do ano que vem. Mas considerando que eu era apenas uma estudante até algumas semanas atrás, isso não significa muito.”
“Ok, como você se sente sobre tudo isso?”
“Eu me sinto bem com o dinheiro. Eu diria que eu mais do que o mereci. Você sabia que eu usei o seguro de saúde do trabalho dele para pagar a lesão que ele mesmo me provocou ao me perfurar com o atiçador da lareira? Há algo de poético nisso. Por outro lado, ficarei feliz quando tudo isso acabar. Eu realmente só quero seguir em frente e tentar esquecer que passei quase uma década da minha vida com um sociopata e nunca percebi isso.”
“Você acha que deveria ter percebido?”, Dra. Lemmon perguntou.
“Estou tentando me tornar uma profissional especialista em perfil criminal, Doutora. Quão boa posso ser quando não percebi o comportamento criminoso do meu próprio marido?”
“Nós já conversamos sobre isso, Jessie. Geralmente, é difícil até mesmo para os melhores profissionais desta área, identificar o comportamento ilícito naqueles próximos a eles. Frequentemente, a distância profissional é necessária para ver o que realmente está acontecendo.”
“Imagino que você esteja falando de sua experiência pessoal?”, Jessie perguntou.
Dra. Janice Lemmon, além de terapeuta comportamental, era uma consultora criminal altamente conceituada, que costumava trabalhar em tempo integral para o Departamento da Polícia de Los Angeles. Ela ainda prestava tais serviços de vez em quando.
Dra. Lemmon usou sua influência considerável para conseguir a permissão para Jessie visitar o hospital estadual em Norwalk, para que ela pudesse entrevistar o assassino em série Bolton Crutchfield como parte de seu trabalho de pós-graduação. E Jessie suspeitava que a médica também tinha sido parte integrante de sua aceitação no famoso programa da Academia Nacional do FBI, que normalmente levava apenas pesquisadores locais experientes, e não recém-formados com quase nenhuma prática nas costas.
“Estou”, disse a Dra. Lemmon. “Mas podemos deixar isso para outra hora. Gostaria de discutir como você se sente tendo sido enganada pelo seu marido?”
“Eu não diria que fui totalmente enganada. Afinal de contas, por minha causa, ele está na prisão e três pessoas que, de outra forma, estariam mortas, inclusive eu, estão andando por aí. Não recebo nenhum crédito por isso? Afinal de contas, eu finalmente descobri isso. Eu acho que os policiais jamais teriam descoberto.”
“Esse é um ponto justo. Graças ao seu sarcasmo, eu imagino que você prefere seguir em frente. Vamos discutir sobre seu pai?”
“Mesmo?”, Jessie perguntou, incrédula. “Temos que falar disso agora? Não podemos apenas falar sobre os problemas do meu apartamento?”
“Eu penso que eles estão relacionados. Afinal de contas, a razão pela qual sua colega de quarto não consegue dormir não é porque você tem pesadelos indutores de gritos?”
“Você não joga limpo, Doutora.”
“Só estou trabalhando com as coisas que você me diz, Jessie. Se você não quisesse que eu soubesse, você não teria mencionado isso. Posso presumir que os sonhos estão relacionados com o assassinato de sua mãe pelas mãos de seu pai?”