Todos os quais, Bryce tinha certeza, eram idiotas.
— Lorde Shelligton — disse a Senhorita Harlow, levantando-se. Bryce firmou a sua posição na frente dela. Apesar dos tritões não terem o costume de afogar amantes, como as sereias – parte do incômodo era deixar a mulher viver para lidar com os filhos –, caso um tritão estivesse de olho na Senhorita Harlow, não teria como isso terminar bem para ela. Esses seres não cultivavam relacionamentos duradouros, apenas queriam parceiras para procriarem.
Raios, nem o pai deles era de manter a mesma amante por muito tempo, e a lenda dizia que Tritão tinha produzido três mil filhos e três mil filhas para povoar o reino oceânico de Poseidon. Esse número deveria ser um exagero, mas, por outro lado, também não chegava a parecer impossível para um deus com a idade de Tritão.
Shelligton o lançou um olhar de cima abaixo, contaminado por hostilidade. Bryce deu o troco na mesma moeda. Atrás dele, a Senhorita Harlow apoiou a palma da mão em seu braço, e os músculos do homem contraíram em resposta ao toque. Bryce não tinha estado esperando nada nisso. Ninguém o tocava sem que ele os tivesse tocado primeiro. Geralmente, a atitude ousada dela o teria irritado, mas não odiou a sensação de contato com a jovem.
— Preciso voltar antes que Jonathan venha me procurar de novo. — Ela olhou de um homem ao outro ao passar por Bryce. — Foi um prazer conhecê-lo, Lorde Winterthorne. — A Senhorita Harlow assentiu ao tritão que fingia ser duque. Isso explicava por que Bryce nunca tinha ouvido falar nele. — Vossa Graça.
Quando ela se apressou ao sair da estufa, Bryce sentiu a ausência dela no mesmo instante. Mas, primeiro, teria que colocar o tritão na linha.
— Sim, Vossa Graça — zombou. — Ela está fora de cogitação para você.
Shelligton bufou, indignado.
— Nenhuma mulher está fora de cogitação para mim,
— Essa está.
O tritão se aproximou, parecendo um duque até o último fio de cabelo, em seu casaco e calça cinza-escuros. O peitilho branco e limpo exibia um broche de safira preso bem no centro. Bryce o odiou instintivamente. Aquelas roupas perfeitas e aquele cabelo preto azulado… tentando beijar mulheres jovens e inocentes, sem vergonha alguma, na frente de seus irmãos… Falando nisso, provavelmente deveria estar interessado em procriar com ela. A pobre garota estaria arruinada e presa a uma criança, que seria abduzida em uma noite qualquer caso fosse do sexo masculino. Por qual razão Ione havia sequer convidado os tritões para o casamento? Estaria o Capitão Harlow ciente do perigo que aquela criatura era para a irmã? Pelo menos, Jonathan estava ciente da situação, apesar de Bryce não saber, naquele momento, se o irmão realmente compreendia a proporção da ameaça.
— Isso me soa como uma aposta, e eu nunca recuso uma aposta. — Shelligton tamborilou os dedos na coxa. — Você acha que eu não vou conseguir conquistar a garota, mas eu acho que consigo.
Uma irritação ainda mais intensa percorreu seu corpo.
— Não vou apostar nada. Estou mandando você deixar a mulher em paz. Se quiser chamar isso de algo, chame de ameaça. Ou de aviso.
O tritão estalou a língua.
— Coitadinho do semideus, deve estar morrendo de raiva por eu a ter descoberto antes de você. Claro, se tivesse chegado na hora, poderia ter tido alguma chance. Ou não, já que você não passa de um mero conde.
— Um conde legítimo, pelo menos. — Por que ele sequer estava dando corda para aquela discussão? Não era como se Bryce estivesse tentando ter uma chance com ninguém. — Você entendeu tudo errado. Só quero salvá-la da ruína que seria se envolver com um homem como você. Um duque falso.
Shellington deu um peteleco em um grão de poeira que havia aterrissado em seu braço.
— Sou tão real quanto desejo ser. De qualquer maneira, primeiro, tenho que me estabelecer em Londres antes de persegui-la de verdade, o que realmente pretendo fazer. Admito, no começo, foi apenas pelo entretenimento, mas ao notar quão na defensiva você está, quero ver o seu rosto quando ela me escolher. Mulher alguma rejeita um tritão.
Bryce cerrou os dentes para se impedir de responder, pois sabia que isso apenas pioraria tudo.
— Não me importo com quem ela escolher ficar no fim, mas será com um homem que realmente se importa com a reputação dela. — Pareceu estar se importando demais para que as palavras soassem verdadeiras. Teria o tritão visto algo a mais do que Bryce tinha notado em seu encontro com a mortal?
— Daqui a um ano, no começo da Temporada, nossa aposta começa.
Bryce já estava cansado daquela tolice.
— A Temporada começa depois do Natal. Você quis dizer, então, no começo da Curta Temporada?
— Alguém realmente a chama assim? — O tritão nem sequer piscou. — Você topa ou não?
— Não vou apostar nada com você. — Muito poderia acontecer em um ano. Poderia, por exemplo, garantir que a senhorita Harlow estivesse casada antes de a aposta começar. Ele tinha diversos conhecidos que seriam um bom partido, mas, quando os considerou um a um, dispensou-os de imediato com base em uma ou outra desculpa.
— Porque você sabe que vai perder — provocou Shelligton.
— Porque eu não quero nada de você quando eu ganhar. — Ao dizer isso, seu poder reverberou, ganhando vida dentro de si, enquanto a irritação atingia seu pico, e Bryce cerrou os punhos. Pelo cantinho do olho, botões irromperam em flores maduras nos vasos da direita.
Shellington olhou para as flores, com uma expressão entediada no rosto.
— Que fofo. Você tem um dom tão delicado… Ah, deixe-me te lembrar que consigo satisfazer uma mulher simplesmente cantando para ela.
— Seria uma pena reduzi-lo a um soprano, então. — Não havia como saber se o comentário sobre a cantoria era verdadeiro ou não. As sereias eram um tipo completamente diferente de ser, apesar das lendas que, em algum momento, as misturavam com os tritões.
O tritão riu e se virou, mas parou ao alcançar a porta.
— Um ano. Um de nós conquistará o coração da linda Senhorita Harlow e o direito de se gabar a todos que foi melhor do que o outro.
Bryce revirou os olhos. Talvez, se entrasse no jogo, Shelligton finalmente iria embora e lhe daria um momento de paz.
— E o perdedor?
— O que acha de deixarmos as coisas interessantes? — A voz dele assumiu um tom perverso. — O perdedor abre mão da imortalidade.
Aquilo tudo era ridículo, mas quando viu a porta ser fechada com força assim que o tritão se foi, ele ser permitiu ter um momento para considerar o que havia acontecido. Muito realmente poderia acontecer em um ano, lembrou-se. Seria melhor se a Senhorita Harlow estivesse casada antes do início da próxima Temporada – para o bem de todos os envolvidos.
Capítulo 2
22 de outubro de 1818
Wendelin estava parada na frente da casa londrina do Conde de Winterthorne, embasbacada com todas as flores logo dentro dos portões na rua. O conde vivia no subúrbio de Londres, não muito longe da casa do pai dela. Entretanto, nunca tinha notado aquela propriedade, pois se tivesse, teria com certeza passado horas admirando os lindos jardins. Infelizmente, ela nunca se aventurou a ir tão longe em suas caminhadas.
A voz da mãe, vinda da carruagem logo atrás, lembrou-a do porquê estava ali, e seu nervosismo subiu-lhe a garganta como um cardume de peixinhos. De fato, havia ficado surpresa e um tantinho animada quando recebeu o convite para o baile e descobriu, com ainda mais euforia, quem seria o anfitrião. A mãe tinha ficado mais do que alegre, pois o baile dos Winterthorne era reservado apenas para o alto escalão da sociedade. Apesar do pai dela ser um visconde, ninguém de sua família jamais havia recebido um convite para aquele evento.
Teria ela causado uma boa impressão no Lorde Winterthorne quando o conheceu ano passado? Os dois não tiveram chance de conversar depois daquele encontro secreto na estufa, e ela mal podia esperar pra contar ao homem que as rosas plantadas por ela, no verão passado, tinham sobrevivido sem quaisquer dificuldades. Na verdade, o jardineiro havia conseguido plantar diversas flores por toda a propriedade, e todas cresceram onde, antigamente, nem sequer teriam nascido. Ele estava certo quanto a não desistir. Obviamente, pelas flores ao redor da casa dele, o conde tinha talento quando se tratava de saber como e quando plantar qualquer coisa. Seria entediante da parte dela perguntar ao lorde sobre suas habilidades de jardinagem, ou ele gostaria do assunto? A moça não sabia quantos cavalheiros se importavam com plantas, então não teve certeza de quais seriam os limites envolta da questão.
— Bem — disse a mãe, animada, enquanto o pai de Wendelin ajudava a esposa a descer da carruagem, assim como tinha feito com a filha minutos antes. — Aqui estamos, então. Certifique-se de conseguir pelo menos uma ou duas danças com o conde. Acho que não vai ser difícil, levando em consideração que ele a convidou pessoalmente. — Georgina Harlow, Viscondessa de Summerfield, estava ansiosa para acompanhar a única filha e para arrastar o visconde consigo. Estava claro que esperava que o Conde de Winterthorne fosse pedir a mão da filha naquela mesma noite, e queria que o pai estivesse presente para que a permissão pudesse ser obtida.
Wendelin escondeu a vontade de revirar os olhos. O conde, com certeza, tinha sido gentil, nada mais. Ela era uma nova amiga que ele havia conhecido no casamento do irmão dela. Se os papéis estivessem invertidos, ela também haveria considerado enviar um convite a ele. Isso não indicava o interesse do homem. Se realmente estivesse interessado dela, não a teria visitado em algum momento ao longo do ano passado?
Mas, de vez em quando, ela imaginava… caso não tivessem sido descobertos pelo Lorde Shelligton, ele a teria tentado beijar? Wendelin sacudiu a ideia para longe. Com certeza, a mãe estar dando uma de cupido havia começado a afetar os seus pensamentos, e não lhe faria bem algum desejar algo que apenas terminaria em decepção. A moça queria um amor apaixonante como o que seu irmão James tinha com a esposa, cujo namoro tumultuado havia sido cheio de aventura e resgates arriscados no mar – mas, talvez, sem a parte de quase se afogar e de levar um tiro. Não queria ser cortejada de maneira educada, adequada ou discreta como o irmão Michael tinha feito com a esposa. Não que a esposa dele fosse inadequada ou algo do tipo.
Wendelin queria sua própria aventura. Ou, pelo menos… algo emocionante e inesperado. Ousado e escandaloso. A mãe ficaria horrorizada se pudesse ouvir os pensamentos da filha. Por sorte, quando entraram na casa, deixou as ideias de lado.
O interior da casa era tão abundante em vegetação quanto o lado de fora. Flores e plantas novinhas em folha adornavam todas as alcovas. Era tudo tão lindo, que ela se pegou deslizando os dedos sobre as pétalas delicadas de um lírio no salão de baile, assimilando os arredores.
— Wendelin — sibilou a mãe. — Por que você está perdendo tempo aí no canto? Vá encontrar o conde e assegurar uma dança.
— Tá bem, estou indo. — A mãe deveria realmente estar querendo colocar a filha para fora de casa o quanto antes. Wendelin não se via como um grande incômodo, mas todas as debutantes se tornavam mulheres mais cedo do que tarde. Claro, esta seria a sua primeira Temporada. Seu baile de apresentação tinha ocorrido na primavera, mas ela não havia comparecido a muitos eventos recentemente.
Nem o Lorde Winterthorne ou o Lorde Shelligton tinham comparecido.
Ela suspeitava que, talvez, houvesse imaginado algum interesse dos dois antes do convite para o baile de Winterthorne chegar. Talvez, ele estivesse ocupado com outras coisas ou ainda sequer estivesse na cidade. Suspirando, Wendelin afastou os devaneios da mente. Não ajudaria em nada cultivar tamanha fascinação por um cavalheiro como o Lorde Winterthorne. Afinal de contas, ele era conhecido por ser frio e arrogante. O que um homem desses poderia oferecer a ela, exceto sua boa aparência e um título?
Ele não foi frio comigo nem me oprimiu. E, quando falou sobre flores, seus olhos se iluminaram com tanta admiração…
— Eu realmente preciso parar de sonhar acordada com essas bobagens fantasiosas.
— É mesmo? — Um timbre masculino a fez congelar no lugar. — E o que uma lady tão bonita quanto você considera fantasia?
Wendelin se virou, colocando a mão sobre o coração.
— Lorde Shelligton… Desculpa, Vossa Graça, mas você me assustou. Não percebi que eu tinha falado aquilo em voz alta. — Ele a devia achar muito esquisita. A moça piscou quando o viu, pois sua linda feição nunca falhava em pegá-la desprevenida em um primeiro momento. O cabelo dele era tão preto que, sob algumas luzes, parecia azul-escuro. Mas, claro, era impossível que alguém tivesse o cabelo dessa cor. Ela vestia preto por completo, exceto pelo peitilho de um tom suave de verde-mar, que combinava com os seus olhos de cor nada comum.
Lorde Shelligton fez desfeita às palavras dela.
— Nunca se desculpe por sonhar acordada. Até mesmo as coisas mais impossíveis podem se realizar.
Mas que coisa peculiar de ser dita. Ainda assim, seria bom se lembrar de que, logo, estaria casada. Ainda nesta Temporada, se dependesse da mãe. E era melhor abandonar os sonhos ao assumir as responsabilidades de esposa. Infelizmente, isso…
— Você está mais radiante do que nunca, Senhorita Harlow. — O duque sorriu para ela, exibindo uma covinha na bochecha esquerda. — Me daria a honra de sua primeira dança?
Adrenalina a percorreu. A mãe ficaria muito satisfeita quando soubesse que a primeira dança da filha naquela noite seria com um duque. Mas… Wendelin não conseguiu impedir os olhos de passearem por todas as pessoas no salão, esperando encontrar o anfitrião esquivo. No entanto, foi uma tentativa que não deu em nada, pois o Lorde Winterthorne não estava em lugar algum.
— Claro, Vossa Graça. Seria um prazer. — Lorde Shelligton a levou para a pista quando a quadrilha começou. Honestamente, ela ficou aliviada por não ser uma valsa tão cedo na noite. Sempre virara uma poça de nervos nas valsas. E, bem… havia algo em Lorde Shelligton que a mantinha alerta. Ah, claro, ele era bonito e gentil. Mas havia algo, logo abaixo da superfície de cada toque, em cada encontro de olhares. Um arrepio que indicava algo perigoso, proibido. Quase como se os instintos dela a avisassem para não ficar sozinha com ele.
Havia experienciado a mesma coisa no casamento do irmão, mas, com tantas pessoas ao redor, não sentiu medo naquela data, assim como não sentiu hoje. Riu de si mesma quando trocou de parceiro na dança, afastando-se, por enquanto, do duque. Era apenas o nervosismo e o medo que toda jovem sentia perante a possibilidade de um escândalo, de ser arruinada por um libertino. Nada mais.
Sim, nada mais. Pare de ser tola.
Quando a dança acabou, suas bochechas doíam de tanto sorrir. Gostava muito de dançar. Era uma das poucas vezes que podia colocar a sua energia em jogo sem levar uma bronca. Se dependesse da vontade da alta sociedade, todas as ladies estariam debruçadas em cantos, bordando pela eternidade. Ora! Wendelin desejava a liberdade do interior, o vento no cabelo, a grama sob as solas descalças. Um jardim rodeando-a. Era isso o que ela queria. Por mais que amasse dançar, preferiria estar longe da cidade, se pudesse. Mas que cavalheiro lhe permitiria tal coisa, ainda mais se acabasse casada com alguém como o Duque de Shelligton?