ARTHUR C. CLARKE
As canções da Terra distante
Título original: THE SONGS OF DISTANT EARTH
Tradução de Jorge Luiz Calife
Revisado e formatado por SusanaCap
Nota do Autor
Este romance baseia-se numa idéia que desenvolvi há quase trinta anos num conto do mesmo nome (agora incluído na coletânea O outro lado do céu). Entretanto, a presente versão foi direta — e negativamente — inspirada pelo recente surto de space-operas nas telas de televisão e do cinema. (Pergunta: qual é o oposto de inspiração — expiração?) Por favor, não me interpretem mal: apreciei enormemente o melhor da série Jornada nas estrelas e dos épicos de Spielberg/Lucas, para mencionar apenas os exemplos mais famosos do gênero. Entretanto, estes são trabalhos de fantasia, não de ficção científica no sentido estrito do termo. Atualmente, é quase certo que no universo real nunca venhamos a ultrapassar a velocidade da luz. Assim, mesmo os sistemas estelares mais próximos estarão sempre a décadas ou séculos de distância. Nenhuma Dobra Fator Seis poderá levar-nos de um episódio a outro a tempo do capítulo da próxima semana. O grande Produtor no céu não estruturou a sua programação desse modo. Na última década aconteceu também uma mudança significativa e um tanto surpreendente na atitude dos cientistas com relação ao problema da Inteligência Extraterrestre. O assunto só se tornou sério (exceto entre personagens duvidosos como autores de ficção científica) a partir da década de 60: a publicação de A vida inteligente no universo de Shklovskiy e Sagan (1966) foi um marco. Mas agora houve um recuo: o fracasso da tentativa de encontrar algum vestígio de vida neste Sistema Solar, ou de captar os sinais de rádio interestelares que nossas grandes antenas deveriam detectar facilmente, levou alguns cientistas a argumentarem que „talvez estejamos sozinhos no Universo…” O Dr. Frank Tipler, o mais conhecido defensor desse ponto de vista, irritou (propositadamente, sem dúvida) os saganitas, dando a um de seus trabalhos o título provocador de „Não existem extraterrestres inteligentes”. Carl Sagan e outros (e eu concordo com eles) argumentam, por seu lado, que ainda é muito cedo para se chegar a conclusões tão amplas. Enquanto isso a controvérsia se intensifica, costuma-se dizer que qualquer uma das respostas será espantosa. A questão só pode ser decidida com provas concretas e não pela lógica, por mais plausível que seja. Eu preferiria ver esse debate tolerantemente esquecido por uma década ou duas, enquanto os radioastrônomos, como garimpeiros bateando na beira de um riacho, peneiram com calma as torrentes de ruído que se derramam do céu. Este romance é, entre outras coisas, minha tentativa de criar uma obra de ficção inteiramente realista sobre o tema interestelar. Exatamente como em Prelúdio para o espaço (1951), eu usava a tecnologia conhecida ou previsível para descrever a primeira viagem da humanidade além da Terra. Não há nada neste livro que desafie ou negue os princípios conhecidos, a única extrapolação realmente extravagante é a „propulsão quântica” e mesmo esta tem uma origem bastante respeitável (ver „Agradecimentos”). Se ela se revelar uma idéia impraticável, existem várias alternativas possíveis. E se nós, os primitivos do século XX podemos imaginar isso, então a ciência do futuro descobrirá, sem dúvida, alguma coisa muito melhor.
Arthur C. Clarke Colombo, Sri Lanka, de julho de 1985
I — THALASSA
1. A PRAIA EM TARNA
Antes mesmo que o barco passasse entre os recifes, Mirissa podia ver que Brant estava furioso. A postura tensa de seu corpo na roda do leme e o simples fato de não ter deixado a passagem final nas mãos capazes de Kumar mostravam que alguma coisa o havia perturbado.
Ela deixou a sombra das palmeiras e caminhou lentamente descendo a praia, a areia molhada puxando-lhe os pés. Quando chegou à beira da água, Kumar já dobrava a vela. Seu irmão caçula, agora quase tão alto quanto ela e com uma sólida musculatura, acenou alegremente. Muitas vezes ela já desejara que Brant compartilhasse a natureza amável de Kumar, que nenhuma crise parecia capaz de perturbar.
Brant não esperou que o barco atingisse a areia e saltou para a água, que lhe atingiu a cintura, e veio espadanando furioso em direção a ela. Carregava uma massa retorcida de metal, enfeitada com fios partidos que exibiu para sua inspeção.
— Olhe — gritou ele.
— Voltaram a fazê-lo! — Com a mão livre apontou na direção norte do horizonte.
— Desta vez não vou permitir que escapem impunes! E a prefeita pode dizer o que bem quiser! Mirissa ficou de lado enquanto o pequeno catamarã, qual fera marinha primitiva fazendo sua primeira incursão em terra firme, subia lentamente para a praia, movendo-se sobre seus cilindros externos de rolamento. Assim que deixaram a linha da água, Kumar desligou o motor e saltou para juntar-se ao comandante, que ainda estava furioso.
— Eu já disse a Brant que deve ter sido um acidente — disse ele.
— Talvez uma âncora de arrastão. Afinal, por que os motoristas fariam uma coisa assim, deliberadamente? — Eu lhe digo por quê — retrucou Brant.
— Porque eles são muito preguiçosos para desenvolverem a tecnologia sozinhos. Porque eles têm medo de que nós apanhemos peixe demais. Porque… Ele percebeu o sorriso do outro e lançou a cama-de-gato de arames partidos girando em sua direção. Kumar a apanhou sem dificuldade.
— De qualquer modo, ainda que seja um acidente, eles não deviam estar ancorando aqui. Está área está assinalada claramente no mapa: AFASTE-SE — PROJETO DE PESQUISA. Por isso vou fazer um protesto. Brant já havia recuperado seu bom humor, mesmo suas iras mais violentas não duravam mais do que alguns minutos. Para mantê-lo no estado de espírito adequado, Mirissa começou a passar os dedos pelas suas costas, falando com ele em sua voz mais tranqüilizadora: — Pegou algum peixe bom? — É claro que não — respondeu Kumar.
— Ele só está interessado em apanhar estatísticas de quilogramas por quilowatts, esse tipo de coisa. Felizmente eu levei minha vara. Assim teremos atum no jantar. Ele estendeu o braço para dentro do barco e puxou para fora
quase um metro de força e beleza hidrodinâmica, um peixe cujas cores se apagavam rapidamente, os olhos já vidrados pela morte.
— Não se pega um destes com freqüência — disse orgulhoso.
Eles ainda estavam admirando o peixe quando a História retornou a Thalassa, e o mundo simples, tranqüilo, que tinham conhecido durante suas vidas ainda jovens terminou abruptamente. O sinal de sua passagem escreveu-se no céu, como se uma gigantesca mão tivesse passado um pedaço de giz sobre a cúpula azul do firmamento. Mesmo enquanto observavam, o brilhante rastro de vapor começou a se esfiapar nas bordas, quebrando-se em fiapos de nuvens, até dar a impressão de que uma ponte de neve tinha sido lançada de um horizonte ao outro. E um trovão distante rolou pela orla do espaço. Um som que Thalassa não ouvia há setecentos anos, mas que qualquer criança poderia reconhecer imediatamente. A despeito do calor daquela tarde Mirissa tremeu e sua mão procurou a de Brant. Embora seus dedos se fechassem em torno dela, ele parecia nem reparar: tinha os olhos ainda voltados para o céu fendido. Até mesmo Kumar parecia intimidado, embora fosse o primeiro a falar.
— Uma das colônias deve ter nos descoberto. Brant sacudiu a cabeça de um lado para outro, sem muita convicção.
— Por que se importariam? Eles devem ter os velhos mapas, sabem que Thalassa é quase toda um oceano. Não faria sentido nenhum vir aqui.
— Curiosidade científica? — sugeriu Mirissa.
— Para ver o que aconteceu conosco? Eu sempre disse que devíamos consertar aquele sistema de comunicação… Era uma antiga controvérsia, sempre retomada a intervalos de algumas décadas. Um dia, acreditava a maioria das pessoas, Thalassa realmente reconstruiria o grande prato da Ilha Ocidental, destruído quando Krakan entrara em erupção há quatrocentos anos. Enquanto isso, havia muita coisa mais importante ou simplesmente mais divertida.
— A construção de uma nave estelar é um projeto enorme — disse Brant, reflexivo.
— Não acredito que nenhuma colônia o fizesse a menos que fosse obrigada. Como a Terra… Sua voz ficou em silêncio. Depois de tantos séculos ainda era um nome difícil de pronunciar. E como se fossem apenas uma pessoa, voltaram-se para o leste,
onde a rápida noite equatorial avançava através do mar. Algumas das estrelas mais brilhantes já emergiam, e acabando de se elevar acima das palmeiras encontrava-se o grupo pequeno e inconfundível do Triângulo. Suas três estrelas eram quase da mesma magnitude mas uma intrusa muito mais brilhante tinha reluzido por algumas semanas próxima à ponta sul da constelação. Sua carcaça encolhida era ainda visível num telescópio de médio alcance. Mas nenhum instrumento poderia mostrar as cinzas orbitantes que um dia foram o planeta Terra.
2. O PEQUENO NEUTRO
Mais de mil anos depois, um grande historiador chamara o período de 1901 a 2000 de „o século em que tudo aconteceu”. E acrescentou que as pessoas da época teriam concordado, mas por motivos totalmente errados.
Elas teriam indicado, freqüentemente com justificado orgulho, as conquistas científicas da época como sendo as do ar, da liberação de energia atômica, da descoberta dos princípios básicos da vida, da revolução da eletrônica e das comunicações, do princípio da inteligência artificial e, o mais espetacular de tudo, da exploração do sistema solar e do primeiro pouso na Lua. Mas, como o historiador mostrou, com precisão, nem uma pessoa em mil teria ouvido falar numa descoberta cuja importância transcenderia a todos esses acontecimentos, ameaçando torná-los inteiramente irrelevantes.
Parecia tão inofensivo e tão distante das questões humanas quanto a primeira chapa fotográfica enevoada que, do laboratório de Becquerel, levou, em apenas cinqüenta anos, à bola de fogo sobre Hiroxima. De fato, tratava-se de um subproduto da mesma pesquisa, iniciado com idêntica inocência.
A natureza é um guarda-livros muito minucioso e sempre equilibra os seus livros. Por isso os físicos ficaram extremamente intrigados quando descobriram certas reações nucleares nas quais, depois que todos os fragmentos eram somados, alguma coisa parecia estar faltando do outro lado da equação.
Como o guarda-livros que repõe rapidamente o dinheiro desviado, para se manter um passo adiante dos auditores, os físicos se viram forçados a inventar uma nova partícula. Para justificar a discrepância encontrada ela teria que ser uma partícula muito peculiar, sem massa ou carga elétrica, e tão fantasticamente penetrante que passaria, sem nenhum inconveniente perceptível, através de uma muralha de chumbo com bilhões de quilômetros de espessura.
A este fantasma foi dado o nome de „neutrino”, formado pela palavra nêutron e mais bambino. Parecia não existir qualquer esperança de algum dia se detectar entidade tão impalpável, mas em 1956, através de feitos heróicos de instrumentação, os físicos captaram os primeiros espécimes. Isso constituiu também um triunfo para os teóricos, que agora viam suas equações, tão inverossímeis, verificadas.
A maior parte do mundo nem soube, nem se importou, todavia, a contagem regressiva para o dia do juízo final tinha começado.
3. O CONSELHO DA VILA
A rede local de comunicações de Tarna nunca operava com mais do que 95 % do seu potencial, mas, por outro lado, nunca acontecia menos de 85 % dela funcionarem ao mesmo tempo, em qualquer ocasião. Como a maior parte do equipamento em Thalassa, fora projetada por gênios há muito mortos, de modo que colapsos catastróficos fossem virtualmente impossíveis. Mesmo que muitos componentes falhassem, o sistema ainda assim continuaria a funcionar razoavelmente bem, até que alguém se irritasse o suficiente para fazer os consertos.
Os engenheiros chamavam isso de „degradação graciosa”, uma expressão que, segundo alguns céticos, descrevia de modo bastante preciso o estilo de vida lassiano.
De acordo com o computador central, a rede oscilava agora em torno dos seus 90 % de funcionabilidade e a prefeita Waldron teria ficado satisfeita com muito menos. A maior parte do vilarejo lhe havia telefonado durante a última meia hora e pelo menos cinqüenta adultos e crianças se aglomeravam na sala do conselho, número muito superior ao que ela fora planejada para alojar em pé, para não falar de assentos. O quorum para uma assembléia normal era de doze pessoas, e às vezes eram necessárias medidas draconianas para reunir até mesmo esse número de corpos aquecidos num único lugar. Os outros 548 habitantes de Tarna preferiam observar e votar, quando se sentiam suficientemente interessados, a partir do conforto de suas próprias casas.
Tinha havido também dois telefonemas do governador da província, um do gabinete do presidente e outro do serviço noticioso da Ilha do Norte, todos fazendo o mesmo pedido totalmente desnecessário. Cada um tinha recebido a mesma resposta curta: é claro que nós avisaremos, se acontecer alguma coisa, e obrigado pelo seu interesse.
A prefeita Waldron não gostava da agitação e sua carreira política, moderadamente bem-sucedida, fora baseada na capacidade de evitar isso. Algumas vezes, é claro, isso era impossível. Seu veto dificilmente teria desviado o furacão do ano 09, que até agora fora o acontecimento
mais notável do século.
— Todo mundo quieto! — gritou ela. — Reena, deixe essas conchas aí. Alguém teve um bocado de trabalho para arrumá-las! É hora de vocês irem para a cama, de qualquer maneira! Billy, saia da mesa! Já!
A velocidade surpreendente com que a ordem foi restaurada demonstrou que pelo menos dessa vez os cidadãos estavam ansiosos para ouvir o que a prefeita tinha para dizer. Ela desligou o bip insistente de seu fone de pulso direcionando a chamada para o centro de mensagens.
— Francamente, eu não sei mais do que vocês e não é provável que tenhamos outras informações por várias horas ainda. Com certeza aquilo era algum tipo de espaçonave que já tinha reentrado, eu suponho que o correto seria dizer que tinha entrado, em nossa atmosfera, quando passou sobre nós. Suponho que, já que não existe nenhum outro lugar para se descer em Thalassa, ela presumivelmente retornará às Três Ilhas mais cedo ou mais tarde. Isso pode levar horas se ela estiver dando a volta em torno do planeta.
— E tentativa de contactá-los pelo rádio? — Alguma perguntou alguém ansiosa.
— Sim, mas até agora não tivemos sorte. Será que não deveríamos tentar? — perguntou uma voz.
Um breve silêncio se estabeleceu na assembléia, e o conselheiro Simmons, principal crítico da prefeita, bufou de aborrecimento.
— Isso é ridículo. Não importa o que façamos, eles poderão nos encontrar em dez minutos. De qualquer modo é provável que saibam exatamente onde estamos.
— Concordo inteiramente com o conselheiro — disse a prefeita Waldron, apreciando essa rara oportunidade. Qualquer nave colônia certamente terá os mapas de Thalassa. Eles podem ter mil anos, mas indicarão o local do Primeiro Pouso.
— Mas alienígenas. suponha, apenas suponha, que se trate de A prefeita suspirou, julgava que a tese tinha morrido de exaustão há séculos.
— Não existem alienígenas — disse ela com firmeza.