As cancoes da Terra distante - Clarke Arthur Charles 2 стр.


— Pelo menos nenhum com inteligência suficiente para viajar pelas estrelas. É claro que nunca poderemos ter cem por cento de certeza, mas a Terra pesquisou durante mil anos com todos os instrumentos concebíveis.

— Existe outra possibilidade — disse Mirissa, que estava de pé junto com Brant e Kumar no fundo da sala. Todas as cabeças se

voltaram em direção a ela, o que deixou Brant ligeiramente aborrecido. A despeito de seu amor por Mirissa, havia ocasiões em que desejava que ela não fosse tão bem informada, e que a família dela não estivesse encarregada dos arquivos pelas últimas cinco gerações.

— Qual é, querida? Agora era a vez de Mirissa ficar aborrecida, embora ela escondesse muito bem sua irritação. Não gostava de ser tratada de modo condescendente por alguém que não era de fato muito inteligente, embora fosse indubitavelmente astuta, ou talvez a palavra melhor fosse ardilosa. O fato de que a prefeita Waldron estivesse sempre olhando para Brant não incomodava Mirissa, que apenas achava graça e chegava a sentir certa simpatia pela mulher mais velha.

— Pode ser outra semeadora robô, como aquela que trouxe os padrões genéticos de nossos ancestrais para Thalassa.

— Mas agora? Tão tarde? — Por que não? Os primeiros semeadores só podiam atingir uma baixa porcentagem da velocidade da luz. A Terra continuou a aperfeiçoálos até ser destruída. Como os últimos modelos eram quase dez vezes mais rápidos, os primeiros foram ultrapassados em coisa de um século. Assim muitos deles ainda devem estar a caminho. Não concorda, Brant? Mirissa tinha sempre o cuidado de incluí-lo em qualquer debate, e se possível fazer com que ele pensasse tê-lo originado. Ela estava bem ciente dos sentimentos de inferioridade dele e não desejava de modo algum aumentá-los. Às vezes ser a pessoa mais inteligente de Tarna era algo um pouco solitário, embora ela se comunicasse freqüentemente com meia dúzia de seus iguais nas Três Ilhas. Mas raramente desfrutava dos encontros pessoais que mesmo depois de todos estes milênios nenhuma tecnologia de comunicações pudera igualar.

— É uma idéia interessante — disse Brant.

— Você pode estar certa.

— Embora História não fosse o seu forte, Brant Falconer tinha o conhecimento técnico a respeito da complexa cadeia de eventos que levara à colonização de Thalassa.

— E o que devemos fazer? — ele perguntou.

— Se for outra nave semeadora e ela tentar nos colonizar novamente? Diremos — muito obrigado, mas hoje não? Houve alguns risinhos nervosos, então o conselheiro Simmons observou pensativamente: — Tenho certeza de que saberíamos lidar com uma nave semeadora, se fôssemos obrigados a fazê-lo. E não acham que os robôs seriam suficientemente inteligentes para cancelar o programa ao verem que o trabalho já está feito? — Talvez, mas eles podem julgar-se capazes de fazer um serviço melhor. De qualquer modo, seja uma relíquia da Terra ou um modelo recente de uma das colônias, deve ser um robô de algum tipo. Não havia necessidade de entrar em detalhes, todos conheciam a fantástica dificuldade e o custo de um vôo interestelar „tripulado”. Mesmo que fosse tecnicamente possível, era de todo inútil. Robôs poderiam fazer o trabalho mil vezes mais barato.

— Robô ou relíquia, o que vamos fazer com ela? — quis saber um dos moradores.

— Pode não ser problema nosso — disse a prefeita.

— Parece que todos estão achando que a nave vai se dirigir para o Primeiro Pouso, mas por que deveria? Afinal, a Ilha do Norte é um local muito mais provável. A prefeita já havia sido desmentida outras vezes, mas nunca tão rapidamente. O som que cresceu no céu de Tarna não era um trovão distante, ecoando da ionosfera, mas o penetrante assovio de um jato em vôo baixo. Todos correram para fora da sala do Conselho, numa pressa inconveniente, mas só os primeiros a sair tiveram tempo de ver uma asa delta rombuda eclipsando as estrelas enquanto se dirigia intencionalmente para o local ainda sagrado como o último elo com a Terra. A prefeita Waldron parou brevemente para entrar em contato com a Central e em seguida se reuniu aos outros, aglomerados do lado de fora.

— Brant, você pode chegar lá primeiro. Pegue o avião. O engenheiro mecânico-chefe de Tarna piscou os olhos. Era a primeira vez que recebia uma ordem tão direta da prefeita. Então ele pareceu um tanto envergonhado.

— Um coco furou uma das asas há dois dias e eu não tive tempo de consertar devido ao problema com as armadilhas para peixes. De qualquer forma ele não está equipado para vôo noturno. A prefeita lançou-lhe um olhar severo.

— Espero que meu sarcasticamente. carro esteja funcionando — disse — É claro — respondeu Brant com a voz magoada.

— Abastecido e pronto para seguir. Era fora do comum que o carro da prefeita fosse a algum lugar. Era possível caminhar por toda a extensão de Tarna em vinte minutos e todo o transporte local de comida e equipamento podia ser confiado aos pequenos carros de andar na areia. Em setenta anos de serviço oficial o carro tinha rodado menos de cem mil quilômetros e, descontando-se a possibilidade de acidentes, ainda estaria funcionando bem durante pelo menos mais um século. Os lassanianos tinham experimentado, com bom humor, a maioria dos pecados, mas a obsolescência planejada e o consumismo não estavam entre eles. Ninguém teria imaginado que o veículo fosse mais velho do que qualquer um dos passageiros, quando ele iniciou a mais histórica jornada que jamais faria.

4. TOCSIN

Ninguém ouviu o primeiro toque do sino do funeral da Terra — nem mesmo os cientistas que haviam feito a descoberta fatal no subsolo profundo de uma mina de ouro abandonada no Colorado.

Era uma experiência ousada, totalmente inconcebível antes da segunda metade do século XX. Uma vez detectado o neutrino, era fácil perceber que a humanidade logo teria uma nova janela para o universo. Uma coisa tão penetrante, que passava através de um planeta com a facilidade da luz atravessando uma placa de vidro, podia ser usada para olhar no coração dos sóis.

Especialmente o Sol. Os astrônomos acreditavam compreender as reações que moviam a fornalha solar, da qual toda a vida na Terra dependia, em última análise. Nas enormes pressões e temperaturas que corriam no núcleo do Sol, o hidrogênio se fundia em hélio numa série de reações que liberavam vasta quantidade de energia. E, incidentalmente, neutrinos como subproduto. Como os trilhões de toneladas de matéria em seu caminho não constituíam maior obstáculo do que um fio de fumaça, estes neutrinos solares fugiam de seu berço à velocidade da luz. Apenas dois segundos depois eles emergiam no espaço e se dispersavam no universo. E por mais planetas ou estrelas que encontrassem, a maioria ainda teria escapado à captura por qualquer fantasma pouco substancial de matéria „sólida”, quando o próprio Tempo chegasse ao seu final.

Oito minutos depois de deixarem o Sol, uma minúscula fração da torrente solar atravessou a Terra e uma fração ainda menor foi interceptada pelos cientistas no Colorado. Eles tinham enterrado seu equipamento a mais de um quilômetro de profundidade, de modo que todas as formas de radiação, com poder inferior de penetração, seriam filtradas e poderiam prender os raros e genuínos mensageiros do interior do Sol. Contando os neutrinos capturados, eles esperavam estudar em detalhes as condições de um local que, como qualquer filósofo teria provado, estava para sempre barrado ao conhecimento ou à observação humana. O experimento funcionou e os neutrinos solares foram detectados.

Entretanto eles eram muito poucos. Devia ter havido três ou quatro vezes mais do que a maciça instrumentação conseguiu capturar.

Certamente alguma coisa estava errada e durante a década de 1970 °Caso dos Neutrinos Perdidos chegou às dimensões de um escândalo científico. Equipamentos foram verificados e reverificados, teorias foram reexaminadas e a experiência refeita dúzias de vezes sempre com os mesmos resultados frustrantes.

Por volta do final do século XX, os astrofísicos foram forçados a aceitar uma conclusão perturbadora — embora ninguém percebesse ainda suas verdadeiras implicações.

Não havia nada errado com a teoria ou o equipamento. O problema estava no interior do Sol.

O primeiro encontro secreto na história da União Astronômica Internacional teve lugar em 2008 na localidade de Aspen, no Colorado, não muito distante do cenário da experiência original que, a esta altura, já tinha sido repetida em uma dúzia de países. Uma semana depois, o Boletim Especial da UAI 55/08, levando o título deliberadamente obscuro de „Algumas Notas a Respeito das Reações Solares”, encontrava-se nas mãos de todos os governos da Terra. Poder-se-ia supor que, à medida que a notícia transpirasse lentamente, o anúncio do Fim do Mundo viesse a provocar certo pânico. Na verdade, a reação geral foi de um silêncio espantado seguido de um dar de ombros e uma volta aos negócios banais de todos os dias.

Poucos governos conseguiam ver o futuro além das próximas eleições, poucos indivíduos além do tempo de vida de seus netos. E de qualquer forma os astrônomos poderiam estar enganados.

Mesmo que a humanidade estivesse sob uma sentença de morte, a data da execução ainda se encontrava indefinida. O Sol não iria explodir antes de pelo menos mil anos, e quem iria chorar pela quadragésima geração?

5. PASSEIO NOTURNO

Nenhuma das duas luas tinha se elevado quando o carro partiu ao longo da mais famosa estrada de Tarna levando Brant, a prefeita Waldron, o conselheiro Simmons e dois moradores importantes da vila. Embora dirigisse com sua tranqüilidade normal, Brant ainda estava irritado com a repreensão da prefeita. E o fato de que o braço gordo dela tivesse repousado acidentalmente sobre seus ombros nus não contribuía para melhorar a situação.

Todavia, a beleza pacífica da noite e o ritmo hipnótico das palmeiras passando rapidamente através do leque de luz lançado pelo carro restauraram-lhe rapidamente o bom humor. Como permitir que sentimentos pessoais tão mesquinhos atrapalhassem uma ocasião tão histórica quanto esta?

Em dez minutos eles se encontrariam no Primeiro Pouso, local onde sua história tinha principiado. O que estaria esperando por eles naquele local? Só uma coisa era certa: o visitante se dirigia para o radiofarol, ainda operante, da ancestral nave semeadora. Sabia onde procurar e, portanto, devia pertencer a alguma outra colônia humana neste setor do espaço. Por outro lado Brant se sentiu subitamente perturbado por um pensamento. Qualquer um, qualquer coisa, podia ter detectado aquele radiofarol sinalizando a todo o universo que a inteligência algum dia passara por este caminho. Lembrou-se então de que anos atrás houvera um movimento em favor do desligamento do farol, sob a alegação de que não servia a nenhum propósito útil, e poderia, concebivelmente, causar danos. A moção fora rejeitada por uma margem estreita de votos, por razões mais sentimentais e emocionais do que lógicas. Thalassa poderia arrepender-se logo de tal decisão, mas agora era certamente muito tarde para fazer qualquer coisa a respeito.

O conselheiro Simmons, inclinando-se contra o assento traseiro, falava baixinho com a prefeita.

— Helga — disse ele (e foi a primeira vez que Brant ouvia-o usar o primeiro nome da prefeita) —, você acha que ainda seremos capazes de nos comunicar? A linguagem dos robôs evoluiu muito rapidamente, você sabe. A prefeita Waldron não sabia, mas disfarçava muito bem sua ignorância.

— Este é o último dos nossos problemas. Vamos esperar até que ele apareça. Brant, você poderia andar mais devagar? Eu gostaria de chegar lá viva. Sua atual velocidade era perfeitamente segura naquela estrada familiar, mas Brant obedientemente reduziu para quarenta cliques. Ele se perguntou se a prefeita não estaria tentando adiar a confrontação. Tratava-se de uma responsabilidade espantosa enfrentar a segunda espaçonave vinda de fora que chegava na história deste planeta. Thalassa inteira estaria observando.

— Krakan! — praguejou um dos passageiros no assento de trás.

— Alguém trouxe uma câmara? — Muito tarde para voltar — respondeu o conselheiro Simmons.

— De qualquer maneira, haverá muito tempo para fotografias. Eu não creio que eles decolem logo depois de dizer „alô!”. Havia uma certa histeria contida na voz dele, e Brant dificilmente poderia culpá-lo. Quem poderia dizer o que os esperava além da curva da próxima colina?

— Vou chamar assim que houver alguma coisa para relatar, senhor presidente — disse a prefeita Waldron no rádio do carro.

Brant nem tinha notado a chamada, perdido demais em seus devaneios. Pela primeira vez em sua vida arrependia-se de não ter estudado um pouco mais de história. É claro que conhecia bem os dados básicos, toda criança em Thalassa crescia ouvindo-os. Sabia que a medida que os séculos passavam, implacavelmente o diagnóstico dos astrônomos se tornava mais certo, a data da previsão cada vez mais precisa. No ano 3600, com uma margem de erro de 75 anos, o Sol se transformaria numa nova — não muito espetacular, mas suficientemente grande.

Um filósofo antigo observara certa vez que nada acalma mais a mente do homem do que o conhecimento de que vai ser enforcado na manhã seguinte. Alguma coisa desse gênero aconteceu com toda a raça humana durante os primeiros anos do Quarto Milênio. Se houve um momento em que a humanidade enfrentou a verdade com resignação e determinação, foi na meia-noite de dezembro, quando o ano de 2999 passou a 3000. Ninguém que visse o primeiro „3” aparecer se esqueceria de que nunca ia haver um „4”.

E, no entanto, mais de meio milênio ainda restava e muito poderia ser feito pelas trinta gerações que ainda viveriam e morreriam na Terra, como seus ancestrais haviam feito. Poderiam no mínimo preservar o conhecimento da raça e as maiores criações da arte humana. Mesmo na aurora da era espacial, as primeiras sondas-robôs a deixarem o Sistema Solar já carregavam gravações de música, mensagens e imagens para o caso de serem encontradas por outros exploradores do Cosmos. E embora nenhum indício de civilizações alienígenas tivesse sido detectado na galáxia-pátria, até mesmo os mais pessimistas acreditavam que a inteligência deveria ocorrer em algum outro lugar, nos bilhões de universos-ilhas que se estendiam até onde os mais poderosos telescópios podiam enxergar.

Durante séculos, terabite sobre terabite de cultura e conhecimento humano foram irradiados na direção da galáxia de Andrômeda e de suas vizinhas mais distantes. Ninguém, é claro, nunca viria a saber se os sinais seriam captados e, caso o fossem, se poderiam ser interpretados. Mas a motivação era do tipo que a maioria dos homens poderia compartilhar: era o impulso de deixar alguma última mensagem, algum sinal dizendo „Olhem, eu também já vivi!”

Por volta do ano 3000 os astrônomos acreditavam que seus gigantescos telescópios tinham detectado todos os sistemas planetários num raio de quinhentos anos-luz do Sol. Dúzias de mundos com aproximadamente o tamanho da Terra tinham sido detectados, e alguns dos mais próximos toscamente mapeados. Vários deles tinham atmosferas que exibiam aquela inconfundível assinatura da vida: uma porcentagem de oxigênio anormalmente alta. Havia uma chance razoável de que homens pudessem sobreviver lá, se lá pudessem chegar.

Os homens não podiam, mas o Homem poderia.

As primeiras naves semeadoras eram primitivas, mas ainda assim forçaram a capacidade tecnológica até os seus limites. Com os sistemas propulsores existentes em 2500 elas podiam alcançar os sistemas planetários mais próximos em duzentos anos de viagem, carregando sua preciosa carga de embriões congelados.

Mas esta era a mais simples de suas tarefas. Elas também tinham que transportar o equipamento automático que reviveria e criaria esses humanos em potencial, ensinando a cada um deles como sobreviver num ambiente desconhecido e provavelmente hostil. Teria sido inútil e cruel despejar crianças nuas e ignorantes em mundos tão inamistosos quanto o Saara ou a Antártida. Elas teriam que ser educadas, teriam que receber ferramentas e aprender a localizar e utilizar os recursos naturais. Depois que tivessem pousado e a nave semeadora se transformasse numa nave-mãe, ela teria que cuidar do produto de seu cultivo durante gerações.

Назад Дальше