Saíram-lhe furados os cálculos. O tipo aparecia, fazia de auxiliar de enfermagem e não tinha bigode. Os pêlos de Tertuliano Máximo Afonso tornaram a eriçar-se, desta vez só os dos braços, o suor deixou-lhe as costas em sossego, e, normal, não frio, contentou-se com humedecer-lhe de leve a testa. Viu o filme todo, pôs a cruzinha num outro nome que se repetia, e foi-se deitar. Ainda leu duas páginas do capítulo sobre os semitas amorreus, depois apagou a luz. O seu último pensamento consciente foi para o colega de Matemática. Realmente, não sabia que motivos poderia dar-lhe que explicassem a súbita frieza com que o tratara no corredor da escola. Ter-me posto a mão no ombro, perguntou, e logo deu a resposta, Ficarei com cara de parvo se o disser, e ele volta-me as costas, que era o que faria eu se estivesse no seu lugar. O último segundo antes de adormecer usou-o para murmurar, talvez falando consigo mesmo, talvez com o colega, Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras.
Não é bem assim. Houve um tempo em que as palavras eram tão poucas que nem sequer as tínhamos para expressar algo tão simples como Esta boca é minha, ou Essa boca é tua, e muito menos para perguntar Por que é que temos as bocas juntas. Às pessoas de agora não lhes passa pela cabeça o trabalho que deram a criar estes vocábulos, em primeiro lugar, e quem sabe se não terá sido, de tudo, o mais difícil, foi preciso perceber que havia necessidade deles, depois houve que chegar a um consenso sobre o significado dos seus efeitos imediatos, e finalmente, tarefa que nunca viria a concluir-se por completo, imaginar as consequências que poderiam advir, a médio e a longo prazo, dos ditos efeitos e dos ditos vocábulos. Comparado com isto, e ao invés do que tão peremptoriamente o senso comum afirmou ontem à noite, a invenção da roda foi um mero bambúrrio, como o viria a ser o descobrimento da lei da gravitação universal só porque uma maçã se lembrou de ir cair em cima da cabeça de Newton. A roda inventou-se e ficou logo ali inventada para todo o sempre, enquanto as palavras, aquelas e todas as mais, essas vieram ao mundo com um destino nevoento, difuso, o de serem organizações fonéticas e morfológicas de carácter eminentemente provisório, ainda que,,graças, porventura, à auréola herdada da sua auroral criação, teimem em querer passar, não tanto por si próprias, mas por aquilo que de modo variável vão significando e representando, por imortais, imorredouras, ou eternas. segundo os gostos do classificador. Esta tendência congénita, a que não saberiam nem poderiam resistir, tomou-se, com o decorrer do tempo, em um gravíssimo e se calhar insolúvel problema de comunicação, quer a colectiva de todos, quer a particular de tu a tu, que foi o de acabarem por confundir-se os alhos e os bugalhos, as tornas e as deixas, usurpando as palavras o lugar daquilo que antes, melhor ou pior, pretendiam expressar, do que resultou, finalmente, bem te conheço ó máscara, esta atroadora algazarra de latas vazias, este cortejo carnavalesco de latões com rótulo mas sem nada dentro, ou apenas, já desvanecendo- se, o cheiro evocativo dos alimentos para o corpo e para o espírito que algum dia contiveram e guardavam. A tão longe dos nossos assuntos nos levou esta ramalhuda reflexão sobre as origens e os destinos das palavras, que agora não temos outro remédio que voltar ao princípio. Ao contrário do que possa ter parecido, não foi a mera casualidade que nos levou a escrever aquilo de que Esta boca é minha, nem aquilo de Essa boca é tua, e muito menos aquilo de Por que é que temos as bocas juntas. Tivesse Tertuliano Máximo Afonso empregado algum do seu tempo anos atrás, porém com a condição de o ter feito na hora certa, a pensar nas consequências e nos efeitos, a médio e a longo prazo, de frases como aquelas e como outras que ao mesmo fim tendem e inclinam, que muito provavelmente não estaria agora a olhar para o telefone, a coçar perplexo a cabeça, e a perguntar-se que diabo poderá dizer à mulher que por duas vezes, se é que não foram três, deixou ontem a sua voz e os seus queixumes no gravador. O meio sorriso complacente e a expressão sonhadora que havíamos observado nele quando ontem à noite repetiu a audição das chamadas não passaram, feitas as contas, de um repreensivo sinal de presunção, e a presunção, sobretudo a da metade masculina do mundo, é como aqueles amigos fingidos que à menor contrariedade na nossa vida se escapam ou olham para o lado e assobiam a disfarçar. Maria da Paz, é este o esperançoso e doce nome da mulher que telefonou, não tardará a sair para o seu emprego, e, se Tertuliano Máximo Afonso não lhe fala agora mesmo, a pobre senhora vai ter de viver um dia mais em ânsias, o que, quaisquer que tenham sido os seus erros ou os seus pecados, se em verdade os cometeu, não seria realmente justo. Ou merecido, que foi o termo que ela preferiu usar. Deve dizer-se, no entanto, respeitando e obedecendo ao rigor dos factos, que a contrariedade em que Tertuliano Máximo Afonso se debate neste momento não resulta de estimáveis questões de ordem moral, de melindres de justiça ou injustiça, mas sim de saber que se ele não lhe telefona, ela telefonará, acarretando essa nova chamada um mais que provável acréscimo ao peso das recriminações anteriores, chorosas ou não. O vinho foi servido e em seu tempo saboreado, agora há que beber o resto azedo que ficou no fundo do copo. Como não nos faltarão ocasiões de comprovar no futuro, e ainda por cima em lances que irão submetê-lo a duras lições, Tertuliano Máximo Afonso não é aquilo a que se costuma chamar um mau tipo, inclusive poderíamos mesmo encontrá-lo honrosamente classificado numa lista de gente de boas qualidades que alguém tivesse resolvido elaborar de acordo com critérios não demasiado exigentes, mas, além de ser, como já se viu, susceptível em excesso, o que é um indício flagrante de pouca confiança em si mesmo, fraqueja gravemente pelo lado dos sentimentos, que em toda a sua vida nunca foram fortes nem duradouros. O seu divórcio, por exemplo, não foi uma daquelas coisas clássicas, de faca, açougue e alguidar, com traições, abandonos ou violências, foi antes o remate de um processo de definhamento contínuo do seu próprio sentimento amoroso, que a ele, por distracção ou indiferença, talvez não lhe importasse ficar a ver até que áridos desertos poderia chegar, mas que a mulher com quem estava casado, mais recta e inteira que ele, acabou por considerar insuportável e inadmissível, Foi por te amar que casei contigo, disse-lhe ela num célebre dia, hoje só a cobardia poderia obrigar-me a manter este casamento, E tu não és cobarde, disse ele. Não, não o sou, respondeu ela. As probabilidades de que esta por diversas considerações atractiva pessoa venha a ter um papel na história que estamos narrando são infelizmente muito reduzidas, para não dizer inexistentes, dependeriam de uma acção, de um gesto, de uma palavra deste seu ex-marido, palavra, gesto ou acção que o mais certo seria determiná-los alguma necessidade ou interesse seus, mas que, nesta altura, não temos maneira de vislumbrar. Essa é a razão por que não achámos necessário pôr-lhe um nome. Quanto a Maria da Paz, se vai durar ou não nestas páginas, por quanto tempo e para que fins, é assunto que atém às competências de Tertuliano Máximo Afonso, ele lá saberá o que lhe vai dizer quando se decidir a levantar o auscultador do telefone e marcar um número que conhece de cor. Não conhece de cor o número do colega de Matemática, por isso o está procurando na agenda, pelos vistos, afinal, não vai telefonar à Maria da Paz, pensou ser mais importante e urgente aclarar um insignificante diferendo que tranquilizar uma alma feminina em pena ou desferir-lhe o golpe de misericórdia. Quando a ex-mulher de Tertuliano Máximo Afonso disse que ela não era cobarde, teve muito cuidado em não o ofender com a afirmação ou a simples insinuação de que ele o fosse, mas, neste caso, como em tantos outros na vida, a bom entendedor meia palavra bastou, e, voltando ao cenário emocional e situacional de agora, esta sofredora e paciente Maria da Paz nem à metade de uma palavra vai ter direito, embora já tenha compreendido quase tudo quanto havia para compreender, isto é, que o seu noivo, amante, amigo de cama, ou como quer que se lhe chame nos tempos de hoje, se prepara para bater com a porta. Foi a mulher do professor de Matemática quem do outro lado atendeu o telefone, perguntou Quem faia com uma voz que disfarçava mal a irritação que lhe causava a chamada a uma hora destas, ainda matutina, não foi com qualquer meia palavra que o deu a entender, mas sim com um vibrante e finíssimo subtom, não há dúvida de que nos encontramos perante uma matéria que reclama a atenção de estudiosos de diversas áreas do conhecimento, em particular a dos teóricos do som, convenientemente assessorados pelos que desde há séculos mais sabem do assunto, estamos a referir-nos, claro está, à gente da música, aos compositores, em primeiro lugar, mas também aos intérpretes, que são quem tem de saber como aquilo se consegue. Tertuliano Máximo Afonso começou por se desculpar, depois disse o seu nome e perguntou se podia falar com, Um momento, vou chamá-lo, cortou a mulher, daí a pouco estava o colega de Matemática a dizer Bons dias e ele a responder Bons dias, outra vez se desculpou, que tinha acabado agora mesmo de ouvir a mensagem, Poderia guardar-me para falar consigo logo na escola, mas achei que deveria esclarecer o equívoco o mais rapidamente possível a fim de não deixar nascer mal-entendidos que depois se agravam, mesmo quando não se quer, No que a mim diz respeito, não existe qualquer mal-entendido, respondeu o de Matemática, a minha consciência está tão tranquila como a de uma criança de berço, Eu sei, eu sei, acudiu Tertuliano Máximo Afonso, a culpa é só minha, deste marasmo, desta depressão que me põe os nervos fora do lugar, fico susceptível, desconfiado, a imaginar coisas, Que coisas, perguntou o colega, Eu sei lá, coisas, por exemplo, que não sou considerado como julgo ser merecedor, às vezes tenho até a impressão de não saber exactamente o que sou, sei quem sou, mas não o que sou, não sei se me faço explicar, Mais ou menos, só não me diz qual foi a causa da sua, não sei como chamar-lhe, reacção, reacção está bem, Para lhe falar francamente, nem eu, foi uma impressão de momento, como se você me tivesse tratado de uma maneira, como hei-de dizer, paternalista, E quando foi que eu o tratei dessa paternalista maneira, para usar os seus termos, Estávamos no corredor, separávamo-nos para ir dar as aulas, e você pôs-me a mão no ombro, só podia ter sido um gesto de amizade, mas naquele momento caiu-me mal, como uma agressão, Já me lembro, Seria impossível que não se lembrasse, se eu tivesse no estômago um gerador eléctrico você teria caído ali mesmo, fulminado, Tão forte assim foi a rejeição, Talvez rejeição não seja a palavra mais apropriada, o caracol não rejeita o dedo que lhe toca, encolhe-se, Será a maneira que ele tem de rejeitar, Será, No entanto, você, à vista desarmada, não tem nada de caracol, Às vezes penso que nos parecemos muito, Quem, você e eu, Não, eu e o caracol, Saia-me dessa depressão e verá como tudo mudará de figura, É curioso, Quê, Ter-me dito agora essas palavras, Que palavras disse eu, Mudar de figura, Suponho que o sentido da frase ficou bastante claro, Sem dúvida, e eu compreendi-o, mas o que você acaba de dizer vem exactamente ao encontro de certas inquietações minhas recentes, Para que eu pudesse continuar a segui-lo, teria você de ser mais explícito, Ainda é demasiado cedo para isso, talvez um dia, Ficarei à espera. Tertuliano Máximo Afonso pensou, Esperarás toda a vida, e depois, Voltando ao que realmente importa, meu caro, o que lhe venho pedir é que me desculpe, Está desculpado, homem, está desculpado, ainda que realmente o caso não fosse para tanto, o que sucedeu foi você ter criado na sua cabeça aquilo a que se costuma chamar uma tempestade num copo de água, felizmente nesses casos os naufrágios são sempre à vista da praia, ninguém morre afogado, Obrigado por aceitar o incidente com bom humor, Não tem que agradecer, é da melhor vontade, Se o meu senso comum não andasse distraído com fantasias, fantasmas e sentenças que ninguém lhe pediu, ter-me-ia feito notar logo que a maneira como respondi ao seu generoso impulso tinha sido, mais do que exagerada, disparatada, Não se deixe enganar, o senso comum é demasiado comum para ser realmente senso, no fundo não passa de um capítulo da estatística, e o mais vulgarizado de todos, É interessante o que diz, nunca tinha pensado no velho e sempre aplaudido senso comum como um capítulo da estatística, mas, pensando bem, é isso que ele é, e não outra coisa, Note que também poderia ser um capítulo da História, aliás, agora que estamos a falar disto, há um livro que já deveria ter sido escrito, mas que, tanto quanto julgo saber, não existe, precisamente esse, Qual, Uma história do senso comum, Deixa-me sem fala, não me diga que é seu costume produzir a esta hora matinal ideias de calibre semelhante às que acabo de escutar, disse em ar de pergunta Tertuliano Máximo Afonso, Se me estimulam, sim, mas terá de ser depois do pequeno-almoço, respondeu o professor de Matemática, rindo, Vou passar a telefonar-lhe todas as manhãs, Cuidado, lembre-se do que aconteceu à galinha dos ovos de ouro, Vemo-nos logo, Sim, vemo-nos logo, e prometo-lhe que não voltarei a parecer-lhe paternalista, idade para ser meu pai, quase que a tem, Mais uma razão. Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador, sentia-se satisfeito, aliviado, ainda por cima a conversa tinha sido importante, inteligente, não é todos os dias que aparece alguém a dizer-nos que o senso comum não é mais que um capítulo da estatística e que nas bibliotecas de todo o mundo falta um livro que narrasse a sua história desde que Adão e Eva foram expulsos do paraíso. Um olhar ao relógio informou-o de que Maria da Paz já deveria ter saído para o seu emprego no banco, que o assunto podia mais ou menos compor-se, ainda que temporariamente, com uma mensagem simpática no gravador dela, Depois logo verei. Por prudência, não fosse o diabo tecê-las, decidiu deixar passar meia hora. Maria da Paz vive com a mãe e sempre saem juntas de manhã, uma para o trabalho, a outra para a missa e para as compras do dia. A mãe de Maria da Paz tem sido muito de igrejas desde que enviuvou. Privada da magestade marital, a cuja sombra, crendo que se acolhera, havia murchado durante anos e anos, foi à procura de um outro senhor a quem servir, um senhor daqueles de para a vida e para a morte, um senhor que, além de tudo o mais, lhe oferecia a inapreciável vantagem de que não a deixaria outra vez viúva.
Terminada a meia hora de espera, Tertuliano Máximo Afonso ainda não via com claridade os termos em que conviria debitar a mensagem, havia começado por pensar que estaria bem um recado simples, em estilo simpático e natural, mas, como todos sabemos, os matizes entre simpático e antipático e entre natural e artificial são pouco menos que infinitos, geralmente o tom justo para cada circunstância sai-nos de forma espontânea, porém, quando já se vai de pé atrás, como é o caso de agora, tudo quanto num primeiro momento se nos tinha afigurado suficiente e adequado, irá parecer-nos curto ou excessivo no momento seguinte. Aquilo a que certa literatura preguiçosa chamou durante muito tempo silêncio eloquente não existe, os silêncios eloquentes são apenas palavras que ficaram atravessadas na garganta, palavras engasgadas que não puderam escapar ao aperto da glote. Depois de muito puxar pela cabeça, Tertuliano Máximo Afonso achou que, para maior segurança, o mais prudente seria escrever a mensagem e lê-la para o telefone. Eis o que lhe saiu depois de alguns papéis rasgados, Maria da Paz, cá ouvi as tuas mensagens, e o que tenho para te dizer é que devemos agir com calma, tomar as decisões certas para um e para outro, sabendo que a única coisa que dura toda a vida é a vida, o resto é sempre precário, instável, fugidio, a mim o tempo já me ensinou esta grande verdade, mas uma coisa tenho por certa, que somos amigos e amigos vamos continuar a ser, o que necessitamos é de uma longa conversa, então já verás como tudo se resolverá pelo melhor, telefono-te um destes dias. Hesitou um segundo, o que ia a dizer não estava escrito, e terminou, Um beijo. Depois de desligar o telefone, releu o que escrevera e deu pela presença importuna de alguns matizes a que não prestara bastante atenção, menos subtis uns que outros, por exemplo, o insuportável nariz-de-cera de amigos somos, amigos seremos, é o pior que há para quem queira pôr ponto final numa relação de tipo amoroso, de contrário julgamos que tínhamos fechado a porta e afinal ficámos entalados nela, e também, para já não citar o beijo com que teve a debilidade de se despedir, aquele erro crasso de admitir que precisavam de ter uma longa conversa, mais do que obrigação tinha ele de saber, por experiência adquirida e contínua lição da História da Vida Privada através dos Séculos, que as longas conversas, em situações como estas, são terrivelmente perigosas, quantas vezes se tinha principiado com vontade de matar o outro e se acabou nos braços dele. Que mais poderia eu fazer, lamentou-se, está claro que não lhe podia dizer que tudo entre nós continuaria como antes, amor eterno e essas coisas, mas também não poderia, assim pelo telefone e sem que ela lá estivesse a ouvir, disparar-lhe o golpe final, zás, acabou-se, minha rica, seria uma atitude demasiado cobarde, e eu a esse ponto espero não chegar nunca. Com esta reflexão conciliatória, do género uma no cravo, outra na ferradura, decidiu Tertuliano Máximo Afonso contentar-se, sabendo, no entanto, ai dele, que o mais difícil ainda estava para vir. Fiz o melhor que pude, rematou.
Até agora não havíamos tido necessidade de saber em que dias da semana se estão dando estes intrigantes acontecimentos, mas as próximas acções de Tertuliano Máximo Afonso, para poderem ser plenamente compreendidas, exigem a informação de que este dia em que nos encontramos é sexta-feira, donde se tirará facilmente por conclusão que o dia de ontem foi quinta-feira e o de anteontem quarta. A muitos irão parecer provavelmente escusadas, óbvias, inúteis, absurdas, e até mesmo estúpidas, as informações complementares com que resolvemos beneficiar os dias de ontem e de anteontem, mas desde já nos adiantamos a contrapor que qualquer crítica que viesse a expressar-se nesses termos só por má-fé ou ignorância o faria, uma vez que, como é geralmente conhecido, línguas há no mundo que chamam à quarta-feira, por exemplo, mercredi, miercoles, miercoledi ou wednesday, à quinta-feira.jeudi, jueves, glovedi ou thursday, e à própria sexta-feira, se não tivéssemos tido o cuidado de lhe proteger frontalmente o nome, não faltaria por aí quem começasse já a chamar-lhe freitag. Não é que não o possa vir a ser no futuro, mas tudo tem o seu tempo, lá lhe chegará a hora. Iluminado este ponto, assente que estamos numa sexta-feira, referido que o professor de História, hoje, só terá aula na parte da tarde, recordado que amanhã, sábado, samedi, sábado, sabato, saturday, não haverá aulas, que portanto nos encontramos na véspera de um fim-de-semana, mas sobretudo porque não se deve deixar para amanhã o que deverá ser feito hoje, percebe-se que assistam a Tertuliano Máximo Afonso todas as razões para que vá esta manhã mesmo à loja dos vídeos a fim de alugar o que por lá tivesse ficado dos filmes que lhe interessam. Devolverá à procedência, por inútil à sua investigação, o Passageiro Sem Bilhete, e comprará firmes A Morte Ataca de Madrugada e O Código Secreto. Da encomenda de ontem ainda lhe ficam três, que representam pelo menos quatro horas e meia de visionamento, e, com mais o que trouxer da loja, tudo anuncia que o espera um fim-de-semana inesquecível, uma barrigada de cinema daquelas de lhe chegar com o dedo, como diziam os rústicos, enquanto os houve. Arranjou-se, tomou o pequeno-almoço, introduziu as cassetes nas respectivas caixas, guardou-as à chave em uma das gavetas da secretária e saiu, primeiro para avisar a vizinha do andar de cima de que a partir desse momento poderia descer quando quisesse para limpar e arrumar a casa, Esteja à vontade, só volto lá para o fim da tarde, disse, e depois, bastante menos alvoroçado que no dia anterior, mas ainda com algo do nervosismo típico de quem se dirige a um encontro que, não sendo o primeiro, precisamente por essa razão não se lhe irá tolerar que falhe, meteu-se no carro em direcção à loja de vídeos. É a altura de informar aqueles leitores que. ajuizando pelo carácter mais que sucinto das descrições urbanas feitas até agora, tenham criado no seu espírito a ideia de que tudo isto se está a passar numa cidade de tamanho mediano, isto é, abaixo do milhão de habitantes, é a altura de informar, dizíamos, que, muito pelo contrário, este professor Tertuliano Máximo Afonso é um dos cinco milhões e pico de seres humanos que, com diferenças importantes de bem-estar e outras sem a menor possibilidade de mútuas comparações, vivem na gigantesca metrópole que se estende pelo que antigamente haviam sido montes, vales e planícies, e agora é um sucessiva duplicação horizontal e vertical de um labirinto, de começo agravada por componentes que designaremos por diagonais, mas que, no entanto, com o decorrer do tempo, se revelaram até certo ponto equilibradores da caótica malha urbana, pois estabeleceram linhas de fronteira que, paradoxalmente, em lugar de terem separado, aproximaram. O instinto de sobrevivência, também disso se trata quando da cidade falamos, vale tanto para os animais como para os inanimais, termo reconhecidamente abstruso que não consta dos dicionários e que tivemos de inventar para que, com suficiência e propriedade, pudéssemos tornar transparentes, à simples vista, quer pelo sentido corrente da primeira palavra, animais, quer pela inopinada grafia da segunda, inanimais, as diferenças e as semelhanças entre as coisas e as não coisas, entre o inanimado e o animado. A partir de agora, ao pronunciar a palavra inanimal estaremos a ser tão claros e precisos como quando, no outro reino, já de todo perdida a novidade do ser e das suas designações, indiferentemente chamávamos ao homem animal e animal ao cão. Tertuliano Máximo Afonso, apesar de ensinar História, nunca percebeu que tudo o que é animal está destinado a tomar-se inanimal e que, por muito grandes que sejam os nomes e os feitos que os seres humanos tenham deixado inscritos nas suas páginas, é do inanimal que viemos e é para o inanimal que nos encaminhamos. Entretanto, porém, enquanto o pau vai e vem, como dantes diziam os já mencionados rústicos, querendo crer que no brevíssimo intervalo entre o ir e o vir do cacete tinham as costas tempo de folgar, Tertuliano Máximo Afonso dirige-se à loja dos vídeos, um dos muitos destinos intermédios que o esperam na vida. O empregado que o tinha atendido nas duas vezes que aqui veio estava ocupado com outro cliente. Fez de lá, no entanto, um sinal de reconhecimento e mostrou os dentes num sorriso que, sem aparente significado especial, podia disfarçar alguma turva intenção. Uma empregada que acudiu a informar-se do que desejava o recém-chegado foi travada no caminho por duas curtas mas imperiosas palavras, Eu atendo, e teve de voltar para trás depois de esboçar um pequeno sorriso que era, ao mesmo tempo, de compreensão e desculpa. Sendo nova na profissão e no estabelecimento, portanto sem experiência das sofisticadas artes do bem vender, ainda não estava autorizada a tratar com clientes de primeira classe. Não nos esqueçamos de que Tertuliano Máximo Afonso, além de ser o conhecido professor de História que sabemos e um reputado estudioso das grandes questões do audiovisualismo, é também um alugador de vídeos por grosso e atacado, como ontem se viu e hoje melhor se verá. Livre do primeiro cliente, o empregado, animado e pressuroso, aproximou-se, Bons dias, senhor professor, é um prazer vê-lo outra vez nesta sua casa, disse. Sem pretender pôr em dúvida a sinceridade e a cordialidade da recepção, é impossível, no entanto, deixar passar sem reparo a forte e aparentemente insanável contradição que se observa entre elas e os últimos dizeres murmurados ontem por este mesmo empregado depois que este mesmo cliente se retirou, Quem te pôs o nome de Tertuliano sabia o que fazia. A explicação, adiantamo-nos já, vai dá-la a pilha de vídeos que se encontra sobre o balcão, uns trinta, pelo menos. Perito nas antes referidas artes de bem vender, o empregado, logo a seguir ter largado sotto você aquele veemente desabafo, pensou que seria um erro deixar-se cegar pela decepção e que, não podendo fazer o excelente negócio de venda que primeiro se lhe havia antolhado, ainda lhe restava a possibilidade de levar o tal Tertuliano a alugar tudo quanto fosse possível arranjar da mesma companhia produtora, conservando, além disso, com alguns visos de fundamento, a esperança de vir a vender-lhe uma boa parte dos vídeos que tivesse alugado. A vida de negócio está cheia de alçapões e portas falsas, uma verdadeira caixa de surpresas nem sempre fáceis, há que ir sempre com uma mão atrás e outra adiante, usar de cálculo e malícia sem que o freguês possa aperceber-se da subtil manobra, limar as ideias preconcebidas que ele tenha levado para proteger-se, rodear-lhe as resistências, sondar-lhe os desejos ocultos, em suma, a nova trabalhadora ainda terá que comer muito pão e muito sal para estar à altura. O que o empregado da loja ignora é que Tertuliano Máximo Afonso tinha ido ali com o objectivo precisamente de se abastecer de filmes para todo o fim-de-semana, decidido como está a desbastar quantos vídeos se lhe apresentem, em lugar de contentar-se com a escassa meia dúzia que ainda ontem era sua intenção alugar. Desta maneira, uma vez mais, rendeu o vício homenagem à virtude, desta maneira a enalteceu quando pensou que a ia calcar aos pés. Tertuliano Máximo Afonso pôs o Passageiro Sem Bilhete em cima do balcão e disse, Este não me interessa, E os outros que levou, já resolveu o que vai fazer com eles, perguntou o empregado, Fico com A Morte Ataca de Madrugada e O Código Maldito, os três restantes ainda não os vi, São eles, se não me engano, A Deusa do Palco, O Alarme Tocou Duas Vezes e Telefona-me Outro Dia, recitou o empregado, depois de consultar a respectiva ficha, Exactamente, Quer dizer, o senhor professor aluga o Passageiro e compra a Morte e o Código, Exactamente, Muito bem, então o que vai ser hoje, tenho aqui, mas Tertuliano Máximo Afonso não lhe deu tempo a terminar a frase, Imagino que os vídeos que aí vejo foram apartados para mim, Exactamente, ecoou o empregado, hesitando in mente entre o contentamento de ter vencido sem luta e a decepção de não ter precisado de lutar para vencer, Quantos são, Trinta e seis, Isso dará quantas horas, Se continuarmos a fazer contas pela média de hora e meia cada filme, ora deixe-me ver, disse o empregado, deitando desta vez a mão à calculadora, Escusa de se cansar, eu digo-lho, são cinquenta e quatro horas, Como é que conseguiu tão depressa, perguntou o empregado, eu, desde que apareceram estas máquinas, embora não tenha perdido a habilidade para fazer cálculos de cabeça, uso-as para as operações mais complicadas, É facílimo, disse Tertuliano Máximo Afonso, trinta e seis meias horas são dezoito horas, logo, a soma das trinta e seis horas inteiras que já tínhamos com as dezoito de meias que obtivemos dá cinquenta e quatro, É professor de Matemática, De História, não de Matemática, o meu forte nunca foram os números, Pois até parecia, o saber é realmente uma coisa muito bonita, Depende do que se saiba, Também deverá depender de quem sabe, acho eu, Se foi capaz de chegar sozinho a essa conclusão, disse Tertuliano Máximo Afonso, não precisa de calculadoras para nada, O empregado não estava seguro de haver apreendido na sua totalidade o significado das palavras do cliente, mas pareceram-lhe agradáveis, simpáticas, até mesmo lisonjeiras, logo que chegasse a casa, se entretanto não as tivesse esquecido pelo caminho, não deixaria de as repetir à mulher. Atreveu-se a fazer a operação de multiplicar com papel e lápis, tantos vídeos a tanto, porque tinha decidido que ao menos diante deste cliente nunca mais usaria a calculadora. O resultado foi uma quantia bastante razoável, não como seria se em vez de um aluguer tivesse feito uma venda, mas este pensamento interesseiro, assim como veio, assim se foi, as pazes estavam definitivamente firmadas. Tertuliano Máximo Afonso pagou, depois pediu por favor, Faça-me dois pacotes com dezoito cassetes cada um enquanto eu vou buscar o carro, está demasiado longe para carregar com elas até lá. Um quarto de hora depois, era o próprio empregado da loja quem vinha meter os embrulhos no porta-bagagem, quem fechava a porta do automóvel depois de Tertuliano Máximo Afonso ter entrado, quem dizia adeus com um sorriso e um gesto de mão que eram a própria afeição em gesto e em sorriso, quem ia murmurando enquanto regressava ao balcão, Ainda dizem que as primeiras impressões são as que valem, aqui está uma pessoa que ao princípio não me caía nada bem, e afinal de contas. As ideias de Tertuliano Máximo Afonso seguiam por rumos muito diferentes, Dois dias são quarenta e oito horas, claro está que matematicamente não são bastantes para ver os filmes todos mesmo que eu não dormisse nesses dois dias, mas, se começar já esta noite, com todo o sábado e todo o domingo por diante, e tomando a sério como regra não visionar até ao fim os vídeos em que o tipo não apareça até metade da história, estou convencido de que terminarei a tarefa antes de segunda-feira. O plano de acção tinha ficado completo no sentido e acabado na forma, não necessitaria adendas, apêndices ou notas de pé-de-página, mas Tertuliano Máximo Afonso ainda insistiu, Se não aparecer até metade, também não aparecerá depois. Sim, depois. Esta é palavra que tem andado por aí à espera desde que o actor que interpretou a personagem de um recepcionista de hotel surgiu pela primeira vez no interessante e divertido filme Quem Porfia Mata Caça. E depois, perguntou o professor de História, como uma criança que não sabe que não adianta perguntar pelo que ainda não sucedeu, que farei depois disto, que farei depois de saber que esse homem entrou em quinze ou vinte filmes, que, tanto quanto pude verificar até agora, além de recepcionista, foi caixa de banco e auxiliar de enfermagem, que farei. Tinha a resposta na ponta da língua, mas só a deu um minuto mais tarde, Conhecê-lo.