Por causalidade ou desconhecida intenção, alguém terá ido dizer ao director da escola que o doutor Tertuliano Máximo Afonso se encontrava na sala dos professores, a fazer horas para o almoço segundo todas as aparências, uma vez que a sua única ocupação desde que ali entrara tinha sido a de ler os jornais. Não revia exercícios, não dava os últimos toques na preparação de uma lição, não tomava notas, apenas lia os jornais. Tinha começado por tirar da pasta a factura referente ao aluguer dos trinta e seis vídeos, pô-la aberta em cima da mesa e procurou no primeiro jornal a página dos espectáculos, secção cinema. Faria depois o mesmo com mais dois jornais. Ainda que, como sabemos, a sua adição à sétima arte seja de fresca data e a sua ignorância acerca de todas as questões atinentes à indústria da imagem continue praticamente inalterável, sabia, calculava, imaginava ou intuía que os filmes em estreia não seriam lançados imediatamente no mercado do vídeo. Para chegar a esta conclusão não era necessário ser-se dotado de uma portentosa inteligência dedutiva ou de mirabólicas vias de acesso ao conhecimento que prescindissem do raciocínio, tratou-se de uma simples e óbvia aplicação do mais corriqueiro senso comum, secção mercado, subsecção venda e aluguer. Procurou os cinemas de reposição e, um a um, de esferográfica em punho, foi confrontando os títulos dos filmes que neles se exibiam com os constantes da factura, marcando esta com uma cruzinha de cada vez que coincidiam. Se a Tertuliano Máximo Afonso perguntássemos por que motivo o estava fazendo, se era sua ideia ir ver naqueles cinemas os filmes de que já era possuidor em vídeo, o mais certo seria olhar-nos surpreendido, estupefacto, talvez mesmo ofendido por o julgarmos capaz de uma acção tão absurda, porém não nos daria uma explicação aceitável, salvo aquela que levanta muralhas à curiosidade alheia e que em duas palavras se diz, Porque sim. No entanto, nós que temos vindo a partilhar as confidências e a insinuar-nos nos segredos do professor de História, podemos informar que a despropositada operação não tem mais finalidade que a de manter fixada a sua atenção no único objectivo que desde há três dias lhe interessa, o de impedir que ela vá distrair-se, por exemplo, com as notícias dos jornais, como provavelmente os outros professores presentes na sala supõem ser sua ocupação neste exacto momento. A vida, porém, está feita de maneira que até portas que considerávamos solidamente fechadas e trancadas para o mundo se encontram à mercê deste modesto e solícito contínuo que acaba de entrar para comunicar que o senhor director manda pedir ao senhor doutor o favor de ir ao seu gabinete. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se, dobrou os jornais, guardou a factura na carteira e saiu para o corredor onde se encontravam algum as das aulas.
O gabinete do director era no andar de cima, a escada de acesso tinha no telhado uma clarabóia tão baça por dentro e tão suja por fora que, tanto no inverno como no verão, só avaramente deixava passar para baixo alguma luz natural. Enfiou por outro corredor e parou na segunda porta. Como havia uma luz verde acesa, bateu com os nós dos dedos e abriu quando ouviu de dentro, Entre, deu os bons-dias, apertou a mão que o director lhe estendia e, a um sinal dele, sentou-se. Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar, era como um desses sonhos que sabemos ter sonhado mas que não conseguimos recordar quando despertamos. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, a secretária era ampla, de estilo antigo, moderno o cadeirão de pele negra. Tertuliano Máximo Afonso conhecia estes móveis, este cortinado, esta alcatifa, ou julgava conhecê-los, possivelmente o que lhe aconteceu foi ter lido um dia num romance ou num conto a lacónica descrição de um outro gabinete de um outro director de uma outra escola, o que, assim sendo, e no caso de vir a ser demonstrado com o texto à vista, o obrigará a substituir por uma banalidade ao alcance de qualquer pessoa de razoável memória o que até hoje tinha pensado ser uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retomo. Fantasias. Absorto na sua onírica visão, o professor de História não tinha ouvido as primeiras palavras do director, mas nós, que aqui sempre estaremos para as faltas, podemos dizer que não tinha perdido muito, apenas a retribuição dos seus bons dias, a pergunta Como tem passado, o preambular Pedi-lhe que viesse aqui para, daí em diante Tertuliano Máximo Afonso passou a estar presente em corpo e em espírito, com a luz dos olhos desperta e a do entendimento também. Pedi-lhe que aqui viesse, repetiu o director porque lhe tinha parecido perceber um certo ar de distracção na cara do interlocutor, para falar consigo sobre aquilo que nos disse na reunião de ontem acerca do ensino da História, Que foi que eu disse na reunião de ontem, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Não se lembra, Tenho uma vaga ideia, mas a minha cabeça está um pouco baralhada, quase não dormi esta noite, Sente-se doente, Doente, não, inquietações, nada mais, Já não é pouco, Não tem importância, senhor director, não se preocupe, O que você disse, palavra por palavra, tenho-o apontado aqui, neste papel, é que a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou de diante para trás, Não foi esta a primeira vez que o disse, Precisamente, tem-no dito tantas vezes que os seus colegas já não o tomam a sério, começam a sorrir logo às primeiras palavras, Os meus colegas são pessoas de sorte, têm o sorriso fácil, e o senhor director, Eu, quê, Pergunto se também não me toma a sério, se também sorri às primeiras palavras que digo, ou às segundas, Conhece-me o suficiente para saber que não sorrio facilmente, menos ainda num caso destes, quanto a tomá-lo a sério, está fora de qualquer discussão, você é um dos nossos melhores professores, os alunos estimam-no e respeitam-no, o que é milagre nos tempos que correm, Então não vejo o motivo por que me mandou chamar, Unicamente para lhe pedir que não tome, Que não torne a dizer que a única decisão séria, Sim, Portanto passarei a não abrir a boca durante as reuniões, se uma pessoa considera que tem algo importante para comunicar e as outras não o querem ouvir, é preferível que se deixe ficar calada, Pessoalmente sempre achei interessante a sua ideia, Obrigado, senhor director, mas não mo diga a mim, diga-o aos meus colegas, diga-o sobretudo ao ministério, aliás, a ideia nem sequer me pertence, não inventei nada, gente mais competente do que eu a propôs e a tem defendido, Sem resultados que se notem, Compreende-se, senhor director, falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra, Acho admirável o que acaba de dizer, creio que até o ministro se deixaria convencer pela sua eloquência, Duvido, senhor director, os ministros são lá postos para nos convencerem a nós, Retiro o que lhe tinha dito antes, a partir de hoje apoiá-lo-ei sem reservas ' Obrigado, mas é melhor não criar ilusões, o sistema tem de prestar boas contas a quem de direito e esta é uma aritmética que não lhes agrada, Insistiremos, Houve já quem afirmasse que todas as grandes verdades são absolutamente triviais e que teremos de expressá-las de uma maneira nova e, se possível, paradoxal, para que não venham a cair no esquecimento, Quem disse isso, Um alemão, um tal Schlegel, mas o mais certo é que outros antes dele também o tenham dito, Faz pensar, Sim, mas a mim o que sobretudo me atrai é a fascinante declaração de que as grandes verdades não passam de trivialidades, o resto, a suposta necessidade de uma expressão nova e paradoxal que lhes prolongue a existência e as substantive, já não me diz respeito, sou apenas um professor de História do ensino secundário, Deveríamos conversar mais, meu caro, O tempo não chega para tudo, senhor director, além disso estão aí os meus colegas, que melhores coisas teriam com certeza para lhe dizer, por exemplo, como se responde com um sorriso fácil a palavras sérias, e os estudantes, não esqueçamos os estudantes, coitados, que por não terem com quem falar acabarão um dia por não terem nada para dizer, imagine o que seria a vida na escola com toda a gente à conversa, não faríamos mais nada, e o trabalho à espera. O director olhou o relógio e disse, O almoço também, vamos almoçar. Levantou-se, rodeou a secretária e, numa espontânea demonstração de estima, foi pôr a mão no ombro do professor de História, que igualmente se havia posto de pé. Inevitavelmente observou-se neste gesto algo de sentimento paternalista, mas isso, vindo da parte de um director, era o mais natural, o mais próprio até, uma vez que as relações humanas são o que sabemos. O susceptível gerador eléctrico de Tertuliano Máximo Afonso não reagiu ao contacto, sinal de que não tinha havido nenhum molestador exagero na manifestação de apreço que recebera, ou então, quem sabe, talvez o tivesse simplesmente desligado a esclarecedora conversa matinal com o professor de Matemática. Nunca se repetirá de mais aquela outra trivialidade de que as pequenas causas podem produzir grandes efeitos. Num momento em que o director voltou à secretária para recolher os óculos, Tertuliano Máximo Afonso olhou em redor, viu o cortinado, o cadeirão de pele negra, a alcatifa, e novamente pensou, Já aqui estive. Depois, talvez porque alguém tivesse aventado que poderia apenas haver lido em qualquer parte a descrição de um gabinete parecido a este, acrescentou outro pensamento ao que tinha pensado, Provavelmente, ler também é uma forma de estar lá. Os óculos do director já se encontravam no bolso superior do casaco, ele dizia, risonho, Vamos, e Tertuliano Máximo Afonso não poderá explicar agora nem saberá explicá-lo nunca por que é que de repente a atmosfera lhe pareceu ter-se tomado mais densa, como impregnada por uma presença invisível, tão intensa, tão poderosa como aquela que o despertara bruscamente na sua cama depois do primeiro vídeo. Pensou, Se eu aqui tivesse estado antes de ser professor da escola, isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo histericamente activada. O resto do pensamento, se algum resto havia ainda, ficou por desenvolver, o director já o levava pelo braço, dizia qualquer coisa relacionada com as grandes mentiras, se também elas seriam triviais, se, no caso delas, também os paradoxos poderiam impedir que caíssem no esquecimento. Tertuliano Máximo Afonso apanhou-lhe a ideia por uma unha negra, no último instante, Grandes verdades, grandes mentiras, suponho que com o tempo tudo se vai tomando trivial, os pratos do costume com o tempero de sempre, respondeu, Espero que isso não seja uma crítica à nossa cozinha, brincou o director, Sou freguês habitual, respondeu Tertuliano Máximo Afonso no mesmo tom. Desciam a escada para o refeitório, depois, no caminho, juntaram-se-lhes o colega de Matemática e uma professora de Inglês, para este almoço já estava completa a mesa do director. Então, perguntou o de Matemática em voz baixa num momento em que o director e a de Inglês se adiantaram, como se sente agora, Bem, muito bem mesmo, Tiveram alguma conversa, Sim, mandou-me chamar ao gabinete para me pedir que não tornasse àquilo de ensinar a História de pernas para o ar, De pernas para o ar, É uma maneira de dizer, E você, que lhe respondeu, Expliquei pela centésima vez o meu ponto de vista e creio que consegui convencê-lo finalmente de que o disparate era um pouco menos tolo do que lhe tinha parecido até agora, Uma vitória, Que não servirá para nada, De facto, nunca se sabe muito bem para que servem as vitórias, suspirou o professor de Matemática, Mas as derrotas sabe-se muito bem para que servem, sabem-no sobretudo os que lançaram na batalha tudo o que eram e tudo quanto tinham, mas desta permanente lição da História ninguém faz caso, Dir-se-ia que você está cansado do seu trabalho, Talvez, talvez, andamos a pôr o tempero de sempre nos pratos do costume, nada muda, Pensa deixar o ensino, Não sei com precisão, nem mesmo vagamente, o que penso ou o que quero, mas imagino que seria uma boa ideia, Abandonar o ensino, Abandonar qualquer coisa. Entraram no refeitório, instalaram-se à mesa os quatro, e o director, enquanto desdobrava o guardanapo, pediu a Tertuliano Máximo Afonso, Gostaria que repetisse aqui aos nossos colegas o que me disse há bocado, Sobre quê, Sobre a sua original concepção do ensino da História. A professora de Inglês começou a sorrir, mas a mirada que o aludido lhe deitou, parada, ausente e ao mesmo tempo fria, paralisou o movimento que principiara a esboçar-se nos lábios. Admitindo que concepção seja o termo próprio, senhor director, de original não tem nada, é uma coroa de louros que não foi feita para a minha cabeça, disse Tertuliano Máximo Afonso após uma pausa, Sim, mas o discurso que me deixou convencido era seu, retorquiu o director. Num instante o olhar do professor de História afastou-se dali, saiu do refeitório, percorreu o corredor e subiu ao andar de cima, atravessou a porta fechada do gabinete do director, viu o que já ia à espera de ver, depois regressou pelo mesmo caminho, tornou-se novamente presente, mas agora com uma expressão de perplexidade inquieta, um frémito de desassossego que roçava o temor. Era ele, era ele, era ele, repetia Tertuliano Máximo Afonso consigo mesmo, enquanto, com os olhos postos no colega de Matemática, mais palavra menos palavra, rememorava os lanços da sua metafórica navegação pelo rio do Tempo acima. Desta vez não dissera rio da História, achou que rio do Tempo iria causar mais impressão. A professora de Inglês tinha o rosto sério. Anda pelos sessenta anos, é mãe e avó, e, ao contrário do que teria começado por parecer, não é dessas pessoas que se dedicam a passear pela vida distribuindo sorrisos de mofa à esquerda e à direita. Sucedeu-lhe o mesmo que a tantos de nós, errarmos não porque fosse esse o nosso propósito, mas porque o erro se confundiu com um traço de união, com uma cumplicidade confortável, com a piscadela de olho de quem cria saber do que se tratava só porque outros o afirmavam. Quando Tertuliano Máximo Afonso terminou o seu breve discurso, viu que tinha convencido outra pessoa. Timidamente, a professora de Inglês murmurava, Podia-se fazer o mesmo com as línguas, ensiná-las dessa maneira, ir navegando até à nascente do rio, talvez assim viéssemos a perceber melhor o que é isto de falar, Não faltam especialistas que o saibam, lembrou o director, Mas não esta professora a quem mandaram ensinar Inglês como se não existisse nada antes. O colega de Matemática disse, sorrindo, Desconfio que esses métodos não dariam resultado com a aritmética, o número dez é teimosamente invariável, nem teve necessidade de passar pelo nove nem o devora a ambição de tomar-se onze. A comida tinha sido trazida à mesa, falou-se doutra coisa. Tertuliano Máximo Afonso já não estava tão certo de que o responsável pelo plasma invisível que se diluíra na atmosfera do gabinete do director fosse o caixa do banco. Nem ele, nem o empregado da recepção do hotel. Ainda por cima com aquele bigodinho ridículo, pensou, e depois, sorrindo tristemente para dentro, Devo estar a perder o juízo. Na aula que foi dar depois do almoço, totalmente fora de tom e de propósito, uma vez que a matéria não fazia parte do programa, passou o tempo todo a discretear sobre os semitas amorreus, sobre o Código de Hamurabi, sobre a legislação babilónica, sobre o deus Marduc, sobre o idioma acádico, com o resultado de ter feito mudar de opinião o aluno que no outro dia havia segredado ao colega do lado que o tipo vinha com a mosca. Agora, o diagnóstico, bem mais radical, foi que o tipo tinha um dos parafusos da cabeça fora do lugar ou que se lhe havia moído a rosca. Felizmente, a aula seguinte, para estudantes mais novos, decorreu com normalidade. Uma referência avulsa, de passagem, ao cinema histórico ainda foi acolhida com apaixonado interesse pela turma, mas o divertimento ficou-se por ali, não se falou de cleópatra, nem de espartaco, nem do corcunda de notre-dame, nem sequer do imperador napoleão bonaparte, que é pau para toda a colher. Um dia para esquecer, pensava Tertuliano Máximo Afonso quando entrou no carro para regressar a casa. Estava a ser injusto com o dia e consigo mesmo, afinal tinha conquistado para as suas ideias reformadoras o director e a professora de Inglês, seria menos um a sorrir na próxima reunião de professores, do outro não há que temer, ficámos cientes há poucas horas de que não tem o sorriso fácil.
A casa estava arrumada, limpa, a cama parecia de noivos, a cozinha como um brinco, a casa de banho rescendendo a olores de detergente, algo assim como cheiro de limão, que só de o respirar uma pessoa se lhe lustra o corpo e a alma se sublima. Nos dias em que a vizinha de cima desce a pôr em ordem esta casa de homem só, o morador dela vai comer fora, sente que seria uma falta de respeito sujar pratos, acender fósforos, descascar batatas, abrir latas, e então levar uma frigideira ao lume, isso nem pensar, que o azeite espirra para todos os lados. O restaurante está perto, na última vez que lá esteve comeu carne, hoje irá comer peixe, é preciso variar, se não tivermos cuidado a vida toma-se rapidamente previsível, monótona, uma seca. Tertuliano Máximo Afonso sempre teve muito cuidado. Sobre a pequena mesa de centro, na sala, estão já empilhadas as trinta e seis cassetes que trouxe da loja, numa gaveta da secretária guardam-se as três que sobraram da encomenda anterior e que ainda não foram vistas, a magnitude da tarefa que tem pela frente é simplesmente acabrunhante, Tertuliano Máximo Afonso não a desejaria nem ao seu maior inimigo, que aliás não sabe quem seja, talvez por ser ainda novo, talvez por ter tido tanto cuidado com a vida. Para se entreter até à hora de jantar pôs-se a ordenar as cassetes segundo as datas da produção do filme original, e, como não cabiam na mesa nem na secretária, decidiu alinhá-las no chão, ao longo de uma das estantes, a mais antiga, à esquerda, chama-se Um Homem como Qualquer Outro, a mais recente, à direita, A Deusa do Palco. Se Tertuliano Máximo Afonso fosse coerente com as ideias que anda a defender sobre o ensino da História ao ponto de as aplicar, sempre que tal fosse possível, às actividades correntes do seu dia-a-dia, visionária esta fileira de vídeos de diante para trás, isto é, principiaria por A Deusa do Palco e iria terminar em Um Homem como Qualquer Outro. É de todos conhecido, porém, que a enorme carga de tradição, hábitos e costumes que ocupa a maior parte do nosso cérebro lastra sem piedade as ideias mais brilhantes e inovadoras de que a parte restante ainda é capaz, e se é verdade que em alguns casos essa carga consegue equilibrar desgovernos e desmandos de imaginação que Deus sabe aonde nos levariam se fossem deixados à solta, também não é menos verdade que ela tem, com frequência, artes de submeter subtilmente a tropismos inconscientes o que críamos ser a nossa liberdade de actuar, como uma planta que não sabe por que terá sempre de inclinar-se para o lado de onde lhe vem a luz. O professor de História seguirá portanto fielmente o programa de ensino que lhe puseram nas mãos, verá portanto os vídeos de trás para diante, desde o mais antigo até ao mais recente, desde o tempo dos efeitos a que não precisávamos de chamar naturais até este outro tempo de efeitos a que chamámos especiais porque, não sabendo como se criam, fabricam e produzem, algum nome indiferente teríamos de lhes dar. Tertuliano Máximo Afonso já voltou do jantar, afinal não comeu peixe, o prato era de tamboril, e ele não gosta de tamboril, esse bentónico animal marinho que vive em fundos arenosos ou lodosos, desde o litoral aos mil metros de profundidade, um bicho de enorme cabeçorra, achatada e armada de fortíssimos dentes, com dois metros de comprimento e mais de quarenta quilos de peso, enfim, um animal pouco agradável de ver e que o paladar, o nariz e o estômago de Tertuliano Máximo Afonso nunca conseguiram suportar.
Toda esta informação a está ele a recolher neste momento de uma enciclopédia, movido finalmente pela curiosidade de saber alguma coisa acerca de um animal que desde o primeiro dia detestou. A curiosidade vinha de épocas atrasadas, de muito tempo atrás, mas só hoje, inexplicavelmente, é que estava a dar-lhe cabal satisfação. Inexplicavelmente, dizemos, e contudo deveríamos saber que não é assim, deveríamos saber que não há nenhuma explicação lógica, objectiva, para o facto de Tertuliano Máximo Afonso ter levado anos e anos sem conhecer mais do tamboril que o aspecto, o sabor e a consistência dos pedaços que lhe punham no prato, e de súbito, num certo momento de um certo dia, como se não tivesse nada mais urgente para fazer, eis que abre a enciclopédia e se informa. Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos, discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tacteamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e às vezes, até encontrando. Se tivermos tempo e nos picar, impa ciente, a curiosidade, sempre acabaremos por saber o que é o tamboril. A partir de agora, quando o criado do restaurante tomar a sugerir-lhe o desgracioso lofídeo, o professor de História já saberá responder, Quê, esse horrendo bentónico que vive em fundos arenosos e lodosos, e acrescentará, definitivo, Nem pensar. A responsabilidade desta fastidiosa digressão piscícola e linguística tem-na toda Tertuliano Máximo Afonso por tardar tanto a meter Um Homem como Qualquer Outro no leitor de cassetes, como se estivesse estacado no sopé de uma montanha a deitar contas às forças de que vai precisar para lá chegar acima. Tal como parece que da natureza se diz, também a narrativa tem horror ao vazio, por isso, não tendo Tertuliano Máximo Afonso, neste intervalo, feito alguma coisa que valesse a pena relatar, não tivemos outro remédio que improvisar um chumaço de recheio que mais ou menos acomodasse o tempo à situação. Agora que ele se resolveu a tirar a cassete da caixa e a introduziu no leitor, poderemos descansar.
Passada uma hora, o actor ainda não havia aparecido, o mais certo era não ter entrado neste filme. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a fita até ao fim, leu os nomes com toda a atenção e cortou na lista de participantes aqueles que se repetiam. Se lhe pedíssemos que nos explicasse por palavras suas o que tinha acabado de ver, o mais provável seria que nos atirasse com o olhar de enfado que se reserva aos impertinentes e nos respondesse com uma pergunta, Tenho eu cara de me interessar por semelhantes vulgaridades. Alguma razão haveríamos que reconhecer-lhe, porque, em realidade, os filmes que passou até agora pertencem à denominada série bê, produtos rápidos para consumo rápido que não aspiram a mais que entreter o tempo sem perturbar o espírito, como muito bem tinha expressado, embora por outros termos, o professor de Matemática. Já outra cassete foi metida no leitor, a esta chamam-lhe A Vida Alegre e vai fazer aparecer o sósia de Tertuliano Máximo Afonso num papel de porteiro de cabaré, ou de buate, não se chegará a perceber com clareza suficiente qual das duas definições assenta melhor ao estabelecimento de mundanais diversões em que decorrem jovialidades copiadas sem pudor das diversas versões de A Viúva Alegre. Tertuliano Máximo Afonso chegou a pensar que não valia a pena ver o filme todo, o que lhe importava, isto é se o seu outro eu entrava ou não na história, já o sabia, mas o enredo era tão gratuitamente intricado que se deixou levar até ao fim, surpreendendo-se ao começar a perceber no seu íntimo um sentimento de compaixão pelo pobre diabo que, além de abrir e fechar as portas dos automóveis, não fazia outra coisa que levantar e baixar o boné de pala para cumprimentar com um composto nem sempre subtil de respeito e cumplicidade os elegantes frequentadores que entravam e saíam. Eu, ao menos, sou professor de História, murmurou.
Uma declaração assim, que acintosamente tinha pretendido determinar e enfatizar a sua superioridade, não apenas profissional, mas também moral e social, em relação à insignificância do papel da personagem, estava a pedir uma resposta que repusesse a cortesia no seu devido lugar, e essa deu-a o senso comum com ironia que nele não é habitual, Cuidado com a soberba, Tertuliano, repara no que tens andado a perder não sendo actor, poderiam ter feito da tua pessoa um director de escola, um professor de Matemática, para professora de Inglês é evidente que não darias, terias de ser professor. Satisfeito consigo mesmo pelo tom da advertência, o senso comum, aproveitando que o ferro estava quente, descarregou outra vez o malho em cima dele, Obviamente, terias de ser dotado de um mínimo de talento para a representação, além disso, meu caro, tão certo como chamar-me eu Senso Comum, obrigar-te-iam a mudar de nome, nenhum actor que se preze ousaria apresentar-se em público com esse ridículo Tertuliano, não terias outro remédio que adoptar um pseudónimo bonito, ou talvez, pensando melhor, não fosse necessário, Máximo Afonso não estaria mal, vai pensando nisso. A Vida Alegre voltou para a caixa, o filme seguinte apareceu com um título sugestivo, do mais prometedor para a ocasião, Diz-me Quem És se chamava, mas não veio acrescentar nada ao conhecimento que Tertuliano Máximo Afonso já tem de si mesmo e nada às investigações em que está empenhado. Por desfastio deixou correr a fita até ao fim, pôs algumas cruzinhas na lista e, depois de olhar o relógio, decidiu-se a ir para a cama. Tinha os olhos congestionados, uma opressão nas fontes, um peso sobre o osso frontal, Isto não vai a matar, pensou, o mundo não se acaba se eu não conseguir ver os vídeos todos no fim-de-semana, e, se se acabasse, não seria este o único mistério que ficaria por resolver. Já estava deitado, à espera de que o sono acudisse ao chamamento do comprimido que havia tomado, quando algo que poderia ser outra vez o senso comum, mas que não se apresentou como tal, disse que, em sua opinião, sinceramente, o caminho mais fácil ainda seria telefonar ou ir pessoalmente à empresa produtora e perguntar, assim, com toda a naturalidade, o nome do actor que nos filmes tais e tais fez os papéis de empregado da recepção, caixa de banco, auxiliar de enfermagem e Porteiro de buate, aliás. eles já devem estar habituados, talvez estranhem que a pergunta se refira a um actor secundaríssimo, pouco mais que figurante, mas ao menos saltam a rutina de ter de falar de estrelas e astros o tempo todo.