Nebulosamente, já com as primeiras maranhas do sono a envolvê-lo, Tertuliano Máximo respondeu que a ideia não tinha nenhuma graça, era demasiado simples, ao alcance de qualquer. Não foi por isso que estudei história, rematou. As últimas palavras não tinham nada que ver com o caso, eram outra manifestação de soberba, mas devem desculpá-lo, é o comprimido que está a falar, não aquele que o tomou. De Tertuliano Máximo Afonsoem I pessoa foi, sim, já no limiar do sono. a consideração final, insolitamente lúcida como a chama da vela prestes a apagar-se, Quero chegar a ele sem que ninguém saiba e sem que ele o suspeite. Eram palavras definitivas, que não admitiam troco.
O sono fechou a porta. Tertuliano Máximo Afonso dorme.
Às onze horas da manhã Tertuliano Máximo Afonso já tinha visto três filmes, embora nenhum deles do princípio ao fim. Levantara-se muito cedo, limitara o pequeno-almoço a duas bolachas e uma chávena de café requentado, e, sem perder tempo a barbear-se, saltando as abluções que não fossem estritamente indispensáveis, de pijama e roupão como alguém que não espera visitas, lançou-se à empreitada do dia. Os dois primeiros filmes passaram debalde, mas o terceiro, cujo título era O Paralelo do Terror, trouxe à cena do crime um jovial fotógrafo da polícia que mascava chiclete e repetia, com a voz de Tertuliano Máximo Afonso, que tanto na morte como na vida tudo é questão de ângulo. No final a lista voltou a ser actualizada, foi riscado um nome, marcadas novas cruzes. Havia cinco actores assinalados cinco vezes, tantas quantos os filmes em que o sósia do professor de História tinha participado, e os seus nomes, por imparcial ordem alfabética, eram Adriano Maia, Carlos Martinho, Daniel Santa-Clara, Luís Augusto Ventura e Pedro Félix. Até este momento Tertuliano Máximo Afonso tinha andado perdido no mare magnum dos mais de cinco milhões de habitantes da cidade, mas a partir de agora só terá de se preocupar com menos de meia dúzia, e até com menos de menos de meia dúzia se um ou mais daqueles nomes vierem a ser eliminados por faltarem à chamada, É obra, murmurou, mas logo a seguir saltou-lhe aos olhos a evidência de que este outro trabalho de Hércules afinal não o havia sido tanto, uma vez que pelo menos dois milhões e quinhentas mil pessoas pertenciam ao sexo feminino e, portanto, estavam fora do campo da pesquisa. Não deverá surpreender-nos o esquecimento de Tertuliano Máximo Afonso, porquanto, em cálculos que abarquem grandes números, como no presente caso, a tendência a não contar com as mulheres é irresistível. Apesar da redução sofrida na estatística, Tertuliano Máximo Afonso foi à cozinha festejar com outro café os prometedores resultados. A campainha da porta tocou ao segundo gole, a chávena ficou parada no ar, a meio caminho da descida para o tampo da mesa, Quem será, perguntou, ao mesmo tempo que ia pousando suavemente a chávena. Poderia ser a prestável vizinha do andar de cima a querer saber se tinha encontrado tudo a seu gosto, poderia ser um desses jovens que fazem publicidade de enciclopédias em que se explicam os costumes do tamboril, poderia ser o colega das Matemáticas, não, este não era, nunca haviam sido visitas, Quem será, repetiu. Acabou de beber o café rapidamente e foi ver quem chamava. Atravessando a sala, lançou um olhar inquieto às caixas de vídeo espalhadas, à fila impassível das que, alinhadas no chão, ao longo da estante, esperavam a sua vez, a vizinha de cima, supondo que era ela, não iria gostar nada de ver neste estado deplorável o que ainda ontem lhe tinha dado tanto trabalho a arrumar. Não tem importância, ela não tem que entrar, pensou, e abriu a porta. Não era a vizinha de cima quem estava na sua frente, não era a jovem vendedora de enciclopédias a comunicar-lhe que tinha ao seu alcance, finalmente, o enorme privilégio de conhecer os costumes do tamboril, quem estava ali era uma mulher que até agora ainda não nos tinha aparecido mas de quem já sabíamos o nome, chama-se Maria da Paz, empregada num banco. Ah, és tu, exclamou Tertuliano Máximo Afonso, e logo, tentando disfarçar a perturbação, o desconcerto, Viva, que grande surpresa. Devia dizer-lhe que entrasse, Passa, passa, agora mesmo estava a beber um café, ou então, Estupendo que tenhas vindo, põe-te à vontade enquanto eu faço a barba e tomo um banho, mas era a custo que se afastava para o lado e lhe dava passagem, ah, se lhe pudesse dizer, Esperas aqui enquanto eu vou esconder uns vídeos que não quero que vejas, ah, se lhe pudesse dizer, Desculpa, vieste em má altura, neste momento não te posso dar atenção, volta amanhã, ah, se alguma coisa ainda lhe pudesse dizer, mas agora era demasiado tarde, tivesse-O pensado antes, a culpa era toda dele, o homem prudente deverá estar constantemente de pé atrás, de sobreaviso, deverá prever todas as eventualidades; sobretudo não esquecer que o procedimento mais correcto é em geral o mais simples, por exemplo, não ir ingenuamente abrir a porta só porque a campainha tocou, a precipitação dá sempre origem a complicações, é dos livros. Maria da Paz entrou com o à-vontade de quem conhece os cantos à casa, perguntou, Como tens passado, e logo, Ouvi o teu recado e penso como tu, precisamos de conversar, espero não ter vindo em má ocasião, Que ideia, disse Tertuliano Máximo Afonso, peço é que me desculpes por te receber desta maneira, despenteado, com a barba crescida e o aspecto de quem acabou de sair da cama, Vi-te outras vezes assim e nunca achaste que fosse preciso pedir desculpa, O caso, hoje, é diferente, Diferente, em quê, Sabes bem o que quero dizer, nunca vim receber-te à porta neste arranjo, de pijama e roupão, Foi uma novidade, quando já há tão poucas entre nós. A entrada para a sala estava a três passos, a estupefacção não tardaria a manifestar-se, Que demónio é isto, que fazes com todos estes vídeos, mas Maria da Paz ainda se deteve para perguntar, Não me dás um beijo, Claro, foi a infeliz e embaraçada resposta de Tertuliano Máximo Afonso, ao mesmo tempo que adiantava os lábios para a beijar na face. O masculino recato, se o era, resultou inútil, a boca de Maria da Paz tinha ido ao encontro da sua, e agora sugava-a, espremia-a, devorava-a, ao mesmo tempo que o corpo dela se colava de alto a baixo ao dele, como se não houvesse roupas a separá-los. Foi Maria da Paz quem por fim se despegou para murmurar, ofegando, uma frase que não chegou a concluir, Mesmo que me arrependa do que acabei de fazer, mesmo que me envergonhe de o ter feito, Não digas tolices, contemporizou Tertuliano Máximo Afonso a tentar ganhar tempo, que ideias, arrependimento, vergonha, era o que nos faltava, envergonhar-se, arrepender-se uma pessoa de expressar o que sente, Sabes muito bem a que me refiro, não faças de conta que não compreendes, Entraste, beijámo-nos, foi tudo do mais normal, do mais natural, Não nos beijámos, beijei-te eu, Mas eu também te beijei a ti, Sim, não tiveste outro remédio, Estás a exagerar como de costume, a dramatizar, Tens razão, exagero, dramatizo, exagerei vindo a tua casa, dramatizei ao abraçar-me a um homem que deixou de gostar de mim, deveria era ir-me daqui neste mesmo instante, arrependida, sim, envergonhada, sim, apesar da caridade de dizeres que o caso não é para tanto. A possibilidade de que ela se fosse embora, ainda que obviamente remota, projectou um raio de esperançosa luz nos sinuosos desvãos da mente de Tertuliano Máximo Afonso, mas as palavras que lhe saíram da boca, alguém diria que escapadas à sua vontade, exprimiram um sentimento diferente, Realmente, não sei aonde foste buscar essa peregrina ideia de que não gosto de ti, Explicaste-te com bastante clareza a última vez que estivemos juntos, Nunca disse que não gostava de ti, nunca disse que não gosto de ti, Em questões de coração, que conheces tão pouco, até o mais obtuso entendedor percebe a metade que não chegou a ser dita. Imaginar que se escaparam à vontade de Tertuliano Máximo Afonso as palavras agora em análise, seria esquecer que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas, e que a função de algumas das suas linhas, parecendo que conduzem o interlocutor ao conhecimento do que está dentro, é espalhar orientações falsas, insinuar desvios que irão terminar em becos sem saída, distrair da matéria fundamental, ou, como no caso que nos ocupa, suavizar, antecipando-o, o choque que se aproxima. Ao afirmar que nunca tinha dito que não gostava de Maria da Paz, dando portanto a entender que sim senhor gostava dela, o que Tertuliano Máximo Afonso pretendia, com perdão da vulgaridade das imagens, era envolvê-la em algodão-em-rama, rodeá-la de almofadas amortecedoras, atá-la a si pela emoção amorosa quando fosse impossível continuar a retê-la do lado de fora da porta que dá para a sala. Que é o que está sucedendo agora. Maria da Paz acaba de dar os três passos que faltavam, entra, não quereria pensar no mavioso canto de rouxinol que lhe roçou de leve os ouvidos, mas não consegue pensar noutra coisa, estaria mesmo disposta a reconhecer, contrita, que a sua irónica alusão a bons e maus entendedores tinha sido não só impertinente, mas também injusta, e é já com um sorriso que se volta para Tertuliano Máximo Afonso, pronta a cair-lhe nos braços e decidida a esquecer agravos e queixas. Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso, que o arco de círculo descrito pelos olhos de Maria da Paz passasse, primeiro pelo televisor ligado, logo pelas cassetes que não tinham sido devolvidas aos seus lugares no chão, finalmente pela própria fileira delas, presença inexplicável, insólita, para qualquer pessoa que, como ela, íntima destes sítios, tivesse suficiente conhecimento dos gostos e hábitos do dono da casa. Que é isto, que fazem aqui todas estas cassetes, perguntou, É material para um trabalho em que tenho andado ocupado, respondeu Tertuliano Máximo Afonso desviando a vista, Se não estou enganada, o teu trabalho, desde que te conheço, consiste em ensinar História, disse Maria da Paz, e esta coisa, olhava com curiosidade o vídeo, chamada Paralelo do Terror, não me parece que tenha muito que ver com a tua especialidade, Não há nada que me obrigue a ocupar-me só de História durante toda a vida, Claro que não, mas é natural que me tenha sentido desconcertada vendo-te rodeado de vídeos, como se de repente te tivesse dado uma paixão pelo cinema, quando antes te interessava tão pouco, Já te disse que estou ocupado com um trabalho, um estudo sociológico, por assim dizer, Não passo de uma empregada vulgar, uma bancária, mas as poucas luzes do meu entendimento chegam-me para ver que não estás a ser sincero, Que não estou a ser sincero, exclamou indignado Tertuliano Máximo Afonso, que não estou a ser sincero, era só o que me faltava ouvir, Não vale a pena irritares-te, disse o que me pareceu, Sei que não sou a perfeição em homem, mas a falta de sinceridade não é um dos meus defeitos, tinhas a obrigação de me conhecer melhor, Peço desculpa, Muito bem, ficas desculpada, não se fala mais deste assunto. Isto disse, mas teria preferido continuar nele para não ter de entrar no outro que temia. Maria da Paz acomodou-se na cadeira em frente do televisor e disse, Vim para ter uma conversa contigo, os teus vídeos não me interessam. O canto do rouxinol perdera-se nas estratosféricas regiões do tecto, era já, como em tempos passados se costumava dizer, uma saudosa lembrança, e Tertuliano Máximo Afonso, deplorável figura, enfiado no roupão, de chinelos e com a barba por fazer, portanto em flagrante situação de inferioridade, tinha consciência de que uma conversa em tom acerbo, ainda que pela própria crispação das palavras pudesse convir ao que sabemos ser seu interesse final, isto é, romper a sua relação com Maria da Paz, seria difícil de conduzir e certamente muito mais difícil de rematar. Sentou-se pois no sofá, aconchegou as abas do roupão as pernas, e principiou, conciliador, A minha ideia, De que estás a falar, interrompeu Maria da Paz, de nós, ou dos vídeos, Falaremos de nós depois, agora quero explicar-te em que espécie de estudo estou metido, Se fazes questão, seja, respondeu Maria da Paz, dominando a impaciência. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o mais que pôde o silêncio que se seguiu, puxou da memória as palavras com que desorientara o vendedor da loja dos vídeos, ao mesmo tempo que experimentava uma estranha e contraditória impressão. Embora sabendo que vai mentir, pensa, no entanto, que essa mentira será como uma forma tergiversada da verdade, quer dizer, ainda que a explicação seja redondamente falsa, o simples facto de a repetir vai, de alguma maneira, torná-la verosímil, e cada vez mais verosímil se Tertuliano Máximo Afonso não se limitar a esta primeira prova. Enfim, sentindo-se já senhor da matéria, começou, O meu interesse por ver uns quantos filmes desta produtora, escolhida ao acaso, como poderás verificar são todos da mesma empresa cinematográfica, nasceu de uma ideia que me ocorreu há tempos, a de fazer um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, ou, para ser mais preciso, os sinais ideológicos que um determinado fabricante de filmes vai disseminando, imagem a imagem, entre os consumidores deles, E como foi que te nasceu esse repentino interesse, ou, como lhe chamaste, essa ideia, que tem isso que ver com o trabalho de um professor de História, perguntou Maria da Paz, a quem não passaria pela cabeça que tinha acabado de oferecer de mão beijada a resposta que Tertuliano Máximo Afonso, na hora de aperto dialéctico em que se achava, talvez não fosse capaz de encontrar por si mesmo, É muito simples, respondeu ele com uma expressão de alívio que poderia ser facilmente confundida com a virtuosa satisfação de qualquer bom professor ao rever-se a si mesmo no acto de transmitir o seu saber à classe, É muito simples, repetiu, tal como a História que escrevemos, estudamos ou leccionamos vai fazendo penetrar em cada linha, em cada palavra, e até em cada data, o que designei por sinais ideológicos, inerentes não só à interpretação dos factos, mas igualmente à linguagem por que os expressamos, isto sem esquecer os diversos tipos e graus de intencionalidade no uso que dessa mesma linguagem fazemos, assim também o cinema, modo de contar histórias que, por via de uma sua particular eficácia, actua sobre os próprios conteúdos da História, de alguma maneira os contaminando e deformando, assim também o cinema, repito, participa, com muito maior rapidez e não menor intencionalidade, na propagação generalizada de toda uma rede desses sinais ideológicos, em regra interessadamente orientados. Fez uma pausa e, com o meio sorriso indulgente de quem se desculpa pela aridez de uma exposição que se tinha esquecido de tomar em consideração a insuficiente capacidade compreensiva do auditório, acrescentou, Espero vir a ser mais claro quando passar estas reflexões ao papel. Apesar das suas mais do que justas reservas, Maria da Paz não pôde impedir-se de o olhar com certa admiração, afinal ele é um habilitado professor de História, um profissional idóneo com provas dadas de competência, presume-se que saiba do que fala mesmo quando lhe aconteça ter de abordar assuntos fora da sua directa especialidade, ao passo que ela não passa de uma simples empregada bancária de nível médio, sem preparação para captar de maneira cabal quaisquer sinais ideológicos que não tenham começado, ao menos, por explicar como se chamam e o que pretendem. No entanto, ao longo de toda a fala de Tertuliano Máximo Afonso, apercebera-se de uma espécie de roce incómodo na sua voz, uma desarmonia que lhe distorcia em certos momentos a elocução, assim como o característico vibrato de uma vasilha rachada quando se lhe bate com os nós dos dedos, que acuda alguém a ajudar Maria da Paz, a informá-la de que justamente com aquele som é que as palavras nos saem da boca quando a verdade que parecemos estar a dizer é a mentira que escondemos. Pelos vistos, sim, pelos vistos vieram avisá-la, ou com as meias palavras do costume lho deram a entender, não há outra explicação para o facto de subitamente se ter apagado a admiração nos olhos dela e de no seu lugar ter surgido uma expressão dolorida, um ar de compassiva lástima, falta saber se de si própria ou do homem que se encontra sentado na sua frente. Tertuliano Máximo Afonso compreendeu que o discurso fora ofensivo, além de inútil, que são muitas as maneiras de faltar ao respeito que se deve à inteligência e à sensibilidade dos outros e que esta havia sido uma das mais grosseiras. Maria da Paz não veio aqui para que lhe dessem explicações acerca de procedimentos sem pés nem cabeça, seja qual for a ponta por onde se lhes pegue, veio para saber quanto terá de pagar para que lhe seja devolvida, se tal é possível ainda, a pequena felicidade em que imaginou haver vivido nos últimos seis meses. Mas também é certo que Tertuliano Máximo Afonso não lhe irá dizer, como a coisa mais natural deste mundo, Imagina que descobri um tipo que é meu exacto duplicado e que esse tipo aparece como actor em uns quantos destes filmes, em caso algum lho diria, e menos ainda, se é permitido juntar estas últimas palavras às imediatamente anteriores, quando a frase poderia ser interpretada por Maria da Paz como mais uma manobra de diversão, ela que veio aqui só para saber quanto terá de pagar para que lhe seja restituída a pequena felicidade em que imaginava haver vivido nos últimos seis meses, que nos seja perdoada esta repetição em nome do direito que a qualquer pessoa assiste de dizer uma e outra vez onde lhe dói. Fez-se um silêncio difícil, Maria da Paz deveria tomar agora a palavra, desafiá-lo Se já acabaste o teu estúpido discurso sobre essa patranha dos sinais ideológicos, falemos de nós, mas o medo deu-lhe de repente um nó na garganta, o pavor de que a mais simples palavra pudesse vir estilhaçar o cristal da sua frágil esperança, por isso se cala, por isso espera que Tertuliano Máximo Afonso principie, e Tertuliano Máximo Afonso está de olhos baixos, parece absorto na contemplação das suas chinelas de quarto e da pálida fímbria de pele que assoma onde terminam as perneiras das calças do pijama, a verdade é outra e bem diferente, Tertuliano Máximo Afonso não se atreve a levantar os olhos com medo de que eles se desviem para os papéis que estão em cima da secretária, a lista dos filmes e dos nomes dos actores, com as suas cruzinhas, os seus riscos, os seus pontos de interrogação, tudo tão apartado do malfadado discurso sobre os sinais ideológicos que neste momento lhe parece ter sido obra de outra pessoa. Ao contrário do que geralmente se pensa, as palavras auxiliadoras que abrem caminho aos grandes e dramáticos diálogos são em geral modestas, comuns, corriqueiras, ninguém diria que perguntar, Queres um café, poderia servir de introdução a um amargo debate sobre sentimentos que se perderam ou sobre a doçura de uma reconciliação a que não se sabe como chegar. Maria da Paz deveria ter respondido com a merecida secura, Não vim cá para tomar café, mas, olhando para dentro de si, viu que não era tal, viu que realmente tinha vindo para tomar um café, que a sua própria felicidade, imagine-se, dependeria desse café. Numa voz que só queria mostrar cansada resignação, mas que o nervosismo fazia tremer, disse, Pois sim, e acrescentou, Eu mesma o preparo. Levantou-se da cadeira, e não é que se tenha detido quando ia a passar ao lado de Tertuliano Máximo Afonso, como conseguiremos nós explicar o que se passou, juntamos palavras, palavras e palavras, as tais de que já falámos noutro sítio, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e, por mais que intentemos, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido descrever, como se um sentimento fosse assim como uma paisagem com montanhas ao longe e árvores ao pé, mas o certo certo é que o espírito de Mana da Paz suspendeu subtilmente o movimento rectilíneo do corpo, à espera sabe-se lá de quê, talvez de que Tertuliano Máximo Afonso se levantasse para a abraçar, ou lhe pegasse suavemente na mão abandonada, e assim foi que sucedeu, primeiro a mão que reteve a mão, depois o abraço que não ousou ir além de uma proximidade discreta, ela não lhe ofereceu a boca, ele não a procurou, há ocasiões em que é mil vezes preferível fazer de menos que fazer de mais, entrega-se o assunto ao governamento da sensibilidade, ela, melhor que a inteligência racional, saberá proceder segundo o que mais convenha à perfeição plena dos instantes seguintes, se para tanto nasceram. Desprenderam-se devagar, ela sorriu um pouco, ele sorriu um pouco, mas nós sabemos que Tertuliano Máximo Afonso tem uma outra ideia na cabeça, que é retirar das vistas de Maria da Paz, o mais depressa possível, os papéis reveladores, por isso não se estranha que quase a tenha empurrado para a cozinha, Vai, vai fazer o café enquanto eu dou uma arrumação a este caos, e então aconteceu o inaudito, como se não desse importância às palavras que lhe saíam da boca ou como se não as entendesse completamente, ela murmurou, O caos é uma ordem por decifrar, Quê, que foi que disseste, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, que já tinha a lista dos nomes a salvo, Que o caos é uma ordem por decifrar, Onde foi que leste isso, a quem o ouviste, Ocorreu-me neste momento, não creio que o tivesse lido alguma vez, e, ouvi-lo a alguém, isso tenho a certeza de que não, Mas como foi que te saiu uma frase dessas, Que tem de especial a frase, Tem muito, Não sei, talvez fosse porque o meu trabalho no banco se faz com algarismos, e os algarismos, quando se apresentam misturados, confundidos, podem aparecer como elementos caóticos a quem os não conheça, no entanto existe neles, latente, uma ordem, na verdade creio que os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontrá-la, Aqui não há algarismos, Mas há um caos, foste tu mesmo que o disseste, Uns quantos vídeos desarrumados, nada mais, E também as imagens que lá estão dentro, pegadas umas às outras de maneira a contarem uma história, isto é, uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar, Os sinais ideológicos, disse Tertuliano Máximo Afonso, pouco seguro de que a referência viesse a propósito, Sim, os sinais ideológicos, se assim o queres, Dá a impressão de que não acreditas em mim, Não importa se acredito em ti ou não, tu lá saberás o que andas a procurar, O que me custa a perceber é como foi que te ocorreu esse achado, a ideia de uma ordem contida no caos e que pode ser decifrada no interior dele, Queres dizer que em todos estes meses, desde que a nossa relação principiou, nunca me consideraste suficientemente inteligente para ter ideias, Ora essa, não se trata disso, tu és uma pessoa bastante inteligente, no entanto, No entanto, não precisas terminar, menos inteligente do que tu, e, claro está, falta-me a boa preparaçãozinha básica, sou uma pobre empregada bancária, Deixa-te de ironias, nunca pensei que fosses menos inteligente do que eu, o que quero dizer é que essa tua ideia é absolutamente surpreendente, Inesperada em mim, De certo modo, sim, O historiador és tu, mas julgo saber que os nossos antepassados só depois de terem tido as ideias que os fizeram inteligentes é que começaram a ser suficientemente inteligentes para terem ideias, Agora saíste-me paradoxal, eis-me caindo de assombro em assombro, disse Tertuliano Máximo Afonso, Antes que acabes por te transformar em estátua de sal, vou fazer o café, sorriu-se Maria da Paz, e enquanto seguia pelo corredor que a levava à cozinha, foi dizendo, Arruma o caos, Máximo, arruma o caos. A lista dos nomes foi rapidamente metida numa gaveta e fechada à chave, as cassetes soltas voltaram às caixas respectivas, O Paralelo do Terror, que havia ficado no leitor de vídeos, seguiu o mesmo caminho, nunca tinha sido tão fácil ordenar um caos desde que o mundo é mundo. Tem-nos, porém, ensinado a experiência que sempre algumas pontas ficam por atar, sempre algum leite se entorna pelo caminho, sempre algum alinhamento faz barriga para dentro ou para fora, o que, aplicado à situação em análise, significa que Tertuliano Máximo Afonso está consciente de que já leva a sua guerra perdida antes de a ter começado. No ponto a que as coisas chegaram, por causa da superior estupidez do seu discurso sobre os sinais ideológicos, e agora com o golpe de mestre que foi aquela frase sobre a existência de uma ordem no caos, uma ordem decifrável, é impossível dizer à mulher que está lá dentro a fazer o café, A nossa relação chegou ao fim, poderemos continuar como amigos no futuro, se quiseres, mas nada mais do que isso, ou então, Custa-me muito dar-te este desgosto, mas, pesando os meus sentimentos para contigo, já não encontro o entusiasmo do princípio, ou ainda, Foi bonito, foi, mas acabou-se, minha rica, a partir de hoje tu vais à tua vida e eu vou à minha. Tertuliano Máximo Afonso dá voltas à conversa a tentar descobrir em que foi que a sua táctica fracassou, se é que tinha de facto alguma, se é que não se deixou apenas dirigir pelas mudanças de humor de Maria da Paz, como se se tratasse de súbitos focos de incêndio que era necessário ir apagando à medida que surgiam, sem entretanto se dar conta de que o fogo continuava a lavrar-lhe debaixo dos pés. Ela sempre esteve mais segura do que eu, pensou, e neste momento viu distintamente as causas da sua derrota, esta caricata figura que fazia despenteado e de barba crescida, com os chinelos de quarto acalcanhados, as riscas das calças do pijama a aparecerem como franjas murchas, o roupão ponta abaixo ponta acima, há decisões na vida que para Tomá-las é aconselhável estar vestido para sair, já de gravata posta e sapatos engraxados, a isso se chama a maneira nobre, exclamar em tom ofendido, Se a minha presença a incomoda, senhora, não preciso que mo diga, e acto contínuo sai-se pela porta fora, sem olhar para trás, olhar para trás é um risco tremendo, pode a pessoa transformar-se em estátua de sal e ficar para ali à mercê da primeira chuva. Mas Tertuliano Máximo Afonso tem agora outro problema para resolver, e esse requer muito tacto, muita diplomacia, uma habilidade de manobra que até este momento lhe tem faltado, uma vez que, como vimos, a iniciativa sempre esteve nas mãos de Maria da Paz, até mesmo quando à chegada se lançou aos braços do amante como uma mulher a ponto de afogar-se. Foi precisamente isto o que Tertuliano Máximo Afonso pensou, dividido entre a admiração, a contrariedade e uma espécie de perigosa ternura, Parecia que estava a afogar-se e afinal tinha os pés bem assentes no chão. Voltando ao problema, o que Tertuliano Máximo Afonso não poderá permitir-se é deixar Maria da Paz sozinha na sala. Imaginemos que ela aparece com o café, aliás não se compreende por que é que está a demorar-se tanto, um café faz-se em três minutos, já estamos longe do tempo em que era preciso coá-lo, imaginemos que, depois de o terem tomado em santa harmonia, ela lhe diz com segundas intenções ou mesmo sem primeiras, Vai-te arranjar enquanto eu ponho aqui um destes vídeos, a ver se descubro algum dos teus famosos sinais ideológicos, imaginemos que uma sorte maldita quereria que aparecesse na figura de um porteiro de buate ou de um caixa de banco o duplicado de Tertuliano Máximo Afonso, imaginemos o grito que daria Maria da Paz, Máximo, Máximo, vem cá, corre, vem ver um actor igualzinho a ti, a um auxiliar de enfermagem, realmente, poderá chamar-se-lhe tudo, bom samaritano, providência divina, irmão de caridade, sinal ideológico é que não. Nada disto, porém, irá suceder, Maria da Paz trará o café, já se lhe ouvem os passos no corredor, a bandeja com as duas chávenas e o açucareiro, umas bolachas para confortar o estômago, e tudo se passará como Tertuliano Máximo Afonso nunca teria ousado sonhar, beberam o cafezinho calados, mas era um silêncio de companhia, não hostil, o perfeito bem-estar doméstico que para Tertuliano Máximo Afonso se converteu em glória bendita quando a ouviu dizer, Enquanto tu te arranjas, eu arrumo o caos da cozinha, depois deixo-te em paz com o teu estudo, Ora, ora, o estudo, não falemos mais do estudo, disse Tertuliano Máximo Afonso para retirar esta inoportuna pedra do meio do caminho, mas cônscio de que tinha acabado de pôr outra no lugar dela, mais difícil de remover, como não tardará a verificar-se. Fosse como fosse, Tertuliano Máximo Afonso não queria deixar nada entregue ao acaso, barbeou-se num ai, lavou-se num ámen, vestiu-se num suspiro, e tão rapidamente fez tudo isto que quando entrou na cozinha ainda foi muito a tempo de secar a louça. Viveu-se então nesta casa o quadro tão enternecedoramente familiar que é um homem enxugando os pratos e a mulher arrumando-os, poderia ter sido ao contrário, mas o destino ou o azar, chamem-lhe o que quiserem, decidiu que fosse assim para que tivesse de acontecer o que aconteceu num momento em que Maria da Paz levantava altos os braços para acomodar uma travessa numa prateleira, oferecendo sem dar por isso, ou sabendo-o muito bem, a cintura delgada às mãos de um homem que não foi capaz de resistir à tentação. Tertuliano Máximo Afonso deixou a um lado o pano da louça e, enquanto a chávena, que se escapara, se estilhaçava no chão, abraçou-se a Maria da Paz, apertou-a furiosamente contra si, o espectador mais objectivo e imparcial não teria dúvidas em admitir que o chamado entusiasmo do princípio nunca poderia ter sido maior que este. A questão, a dolorosa e sempiterna questão, é saber quanto tempo irá isto durar, se será realmente o reacender de um afecto que algumas vezes terá sido confundido com amor, com paixão, até, ou se só nos encontramos, e mais uma vez, perante o arquiconhecido fenómeno da vela que ao extinguir-se levanta uma luz mais alta e insuportavelmente brilhante, insuportável só por ser a derradeira, não porque a rejeitassem os nossos olhos, que bem quereriam continuar absortos nela. Diz-se e repete-se que enquanto o pau vai e vem folgam as costas, ora, as costas, propriamente ditas, são o que menos está folgando neste momento, diríamos até, se aceitássemos ser grosseiros, que muito mais estará folgando ele, mas o certo, embora não se encontrem aqui grandes razões para lirismos exaltados, é que a alegria, o prazer, o gozo destes dois, atirados sobre a cama, um sobre o outro, literalmente enganchados de pernas e braços, nos levaria a tirar respeitosamente o chapéu e a desejar que lhes seja assim para sempre, estes, ou cada um deles com quem a sorte os vier a emparceirar no futuro, se a vela que está agora a arder não durar mais que o breve e último espasmo, aquele que no mesmo instante em que nos derrete nos costuma endurecer e apartar. Os corpos, os pensamentos. Tertuliano Máximo Afonso pensa nas contradições da vida, no facto de que para ganhar uma batalha às vezes possa ser necessário perdê-la, veja-se este caso de agora, ganhar teria sido conduzir a conversa no sentido do ansiado, total e definitivo rompimento, e essa batalha, pelo menos para os tempos mais próximos, teve de dá-la por perdida, mas ganhar seria conseguir desviar dos vídeos e do imaginário estudo sobre os sinais ideológicos a atenção de Maria da Paz, e essa batalha, por agora, ganhou-a. Diz a sabedoria popular que nunca se pode ter tudo, e não lhe falta razão, o balanço das vidas humanas joga constantemente sobre o ganho e o perdido, o problema está na impossibilidade, igualmente humana, de nos pormos de acordo sobre os méritos relativos do que se deveria perder e do que se deveria ganhar, por isso o mundo está no estado em que o vemos. Maria da Paz também pensa, mas, sendo mulher, portanto mais próxima das coisas elementares e essenciais, recorda a angústia que trazia na alma quando entrou nesta casa, a sua certeza de que se iria daqui vencida e humilhada, e afinal acontecera o que em nenhum momento lhe tinha passado pela fantasia, estar na cama com o homem a quem amava, o que mostra quanto tem ainda de aprender esta mulher se ignora que muitas dramáticas discussões dos casais é ali que acabam e se resolvem, não porque os exercícios do sexo sejam a panaceia de todos os males físicos e morais, embora não falte quem assim pense, mas porque, esgotadas as forças dos corpos, os espíritos aproveitam para levantar timidamente o dedo e pedir autorização para entrar, perguntam se se lhes permite fazer ouvir as suas razões, e se eles, corpos, estão preparados para lhes dar atenção. É então quando o homem diz à mulher, ou a mulher ao homem, Que loucos somos, que estúpidos temos sido, e um deles, misericordiosamente, cala a resposta justa que seria, Tu, talvez, eu só tenho estado à tua espera. Ainda que pareça impossível, é este silêncio cheio de palavras não ditas que salva o que se julgava perdido, como uma jangada que avança do nevoeiro a pedir os seus marinheiros, com os seus remos e a sua bússola, a sua vela e a sua arca do pão. Propôs Tertuliano Máximo Afonso, Podíamos almoçar os dois, não sei é se estás disponível, Naturalmente que sim, sempre estive, Tens lá a tua mãe, queria dizer, Explique-lhe que me apetecia dar um passeio sozinha, que talvez não fosse comer a casa, Uma desculpa para vires aqui, Não precisamente, foi só depois de ter saído de casa que decidi vir falar contigo, Já está falado, Queres dizer, perguntou Maria da Paz, que tudo entre nós continuará como antes, Claro. Esperar-se-ia um pouco mais de eloquência de Tertuliano Máximo Afonso, mas ele sempre poderá defender-se, Não tive tempo, ela agarrou-se a mim aos beijos, e logo eu a ela, daí a nada estávamos outra vez enroscados, foi um que-deus-te-ajude, E ajudou, perguntou a voz desconhecida que há tanto tempo não ouvíamos, Não sei se foi ele, mas lá que valeu a pena, valeu, E agora, Agora, vamos almoçar, E não falam mais do assunto, Qual assunto, O vosso, Já está falado, Não está, Está, Então acabaram-se as nuvens, Acabaram, Quer dizer que já não pensa em rompimentos, Isso é outra coisa, deixemos para o dia de amanhã o que ao dia de amanhã pertence, É uma boa filosofia, A melhor, Desde que se saiba o que é que pertence a esse dia de amanhã, Enquanto lá não chegarmos não se pode saber, Tem resposta para tudo, Também você a teria se se encontrasse na necessidade de mentir tanto quanto eu tenho mentido nos últimos dias, Então, vão almoçar, Pois vamos, Bom proveito, e depois, Depois levo-a a casa e volto, Para ver os vídeos, Sim, para ver os vídeos, Bom proveito, despediu-se a voz desconhecida. Maria da Paz já se tinha levantado, ouvia-se correr a água do duche, em tempos idos sempre se lavavam juntos depois de terem feito amor, mas desta vez nem ela se lembrou nem ele se fez lembrado, ou lembraram-se ambos, mas preferiram calar, há momentos em que o melhor é contentar-se uma pessoa com o que já tem, não seja que se perca tudo.
Passava das cinco horas da tarde quando Tertuliano Máximo Afonso regressou a casa. Tanto tempo perdido, pensava enquanto abria a gaveta onde guardara a lista e duvidava entre De Braço Dado com a Sorte e Os Anjos também Bailam. Não chegará a pô-los no leitor de vídeos, por isso nunca virá a saber que o seu duplicado, aquele actor igualzinho a ele, como poderia ter dito Maria da Paz, fazia de croupier no primeiro filme e de professor de dança no segundo. De repente imitara-se com a obrigação que se havia imposto a si mesmo de seguir a ordem cronológica da produção, desde o mais antigo e por aí fora até ao mais recente, achou que não seria uma má ideia variar, quebrar a rotina, Vou ver A Deusa do Palco, disse. Não tinham passado dez minutos quando o seu sósia apareceu interpretando o papel de um empresário teatral. Tertuliano Máximo Afonso sentiu um choque na boca do estômago, muita coisa deveria ter mudado na vida deste actor para representar agora uma personagem que ia ganhando cada vez mais importância depois de ter sido, durante anos, fugazmente, empregado de recepção num hotel, caixa de banco, auxiliar de enfermagem, porteiro de buate e fotógrafo da polícia. Ao cabo de meia hora não aguentou mais, fez rodar a fita a toda a velocidade até ao final, mas, ao contrário do que esperava, não encontrou no elenco de actores nenhum dos nomes que tinha na lista. Voltou ao princípio, ao elenco principal, em que, pela força do costume, não tinha reparado, e viu. O actor que representa o papel de empresário teatral no filme A Deusa do Palco chama-se Daniel Santa-Clara.
Descobrimentos em fins-de-semana não são menos válidos e estimáveis do que aqueles que se produzam ou expressem em qualquer dos outros dias, os denominados úteis. Num caso como no outro, o autor do descobrimento informará do sucedido os ajudantes, se estes estavam a fazer horas extraordinárias, ou a família, se a tinha ali por perto, à falta de champanhe brindou-se ao feito com a garrafa de espumoso que esperava no frigorífico o seu dia, deram-se e receberam-se parabéns, anotaram-se os dados para a patente, e a vida, imperturbável, prosseguiu, depois de ter demonstrado uma vez mais que a inspiração, o talento ou o acaso não escolhem, para manifestar-se, nem dias nem lugares. Raros terão sido os casos em que o descobridor, por viver sozinho e trabalhar sem auxiliares, não teve ao seu alcance ao menos uma pessoa com quem partilhar a alegria de haver presenteado o mundo com a luz de um novo conhecimento. Mais extraordinária ainda, mais rara, se não única, é a situação em que se encontra neste momento Tertuliano Máximo Afonso, que não só não tem ninguém a quem comunicar que descobriu o nome do actor que é seu vivo retrato, como teria todo o cuidado em calar-se sobre o achado. De facto, não é imaginável um Tertuliano Máximo Afonso correndo a telefonar à mãe, ou a Maria da Paz, ou ao colega de Matemática, e dizer, em palavras atropeladas pela excitação, Descobri, descobri, o tipo chama-se Daniel Santa-Clara. Se há algum segredo na vida que ele queira conservar bem guardado, que ninguém possa nem sequer suspeitar da sua existência, é precisamente este. Pelo temor das consequências, Tertuliano Máximo Afonso está obrigado, talvez para todo o sempre, a guardar silêncio absoluto sobre o resultado das suas investigações, quer as da primeira fase, que hoje culminaram, quer as que venha a realizar no futuro. E está também obrigado, pelo menos até segunda-feira, à mais completa inactividade. Sabe que o seu homem se chama Daniel Santa-Clara, mas esse saber serve-lhe de tanto como ser capaz de dizer que uma certa estrela se chama Aldebarã e ignorar tudo dela. A empresa produtora estará fechada hoje e amanhã, nem vale a pena tentar comunicar por telefone, na melhor das suposições atendê-lo-ia um vigilante da segurança que se limitaria a dizer, Telefone na segunda-feira, hoje não se trabalha, Pensei que para uma produtora de cinema não houvesse domingos nem feriados, que filmassem todos os dias que Nosso Senhor manda ao mundo, sobretudo na primavera e no verão para não se perderem as horas de sol, alegaria Tertuliano Máximo Afonso a querer fazer durar a conversa, Esses assuntos não são da minha área, não são da minha competência, sou apenas um empregado da segurança, Uma segurança bem entendida deveria estar informada de tudo, Não me pagam para isso, É pena, Deseja mais alguma coisa, perguntaria impaciente o homem, Diga-me ao menos se sabe quem dá aí informações acerca dos actores, Não sei, não sei nada, já lhe disse que sou da segurança, telefone na segunda-feira, repetiria exasperado o homem, se é que não lhe sairia pela boca fora alguma das palavras grosseiras que a impertinência do interlocutor estava a justificar. Sentado na cadeira estofada, a que está em frente do aparelho de televisão, rodeado de cassetes, Tertuliano Máximo Afonso reconhecia consigo mesmo, Não há outro remédio, vou ter de esperar até segunda-feira para telefonar à produtora. Disse-o e nesse instante sentiu um aperto na boca do estômago, como um súbito medo. Foi rápido, mas a tremura subsequente ainda se prolongou por alguns segundos, como a vibração inquietante de uma corda de contrabaixo. Para não pensar no que lhe havia parecido uma espécie de ameaça, perguntou-se que poderia ele fazer no resto do fim-de-semana, o que ainda resta de hoje e todo o dia de amanhã, como ocupar tantas horas vazias, um recurso seria ver os filmes que faltam, mas isso não lhe forneceria mais informações, apenas veria a sua cara noutros papéis, quem sabe se um professor de dança, talvez um bombeiro, talvez um croupier, um carteirista, um arquitecto, um professor primário, um actor à procura de trabalho, a sua cara, o seu corpo, as suas palavras, os seus gestos, até à saturação. Podia telefonar a Maria da Paz, pedir-lhe que viesse vê-lo, amanhã se não pudesse ser hoje, mas isso significaria atar-se pelas suas próprias mãos, um homem que se respeite não pede ajuda a uma mulher, mesmo não o sabendo ela, para depois a mandar embora. Foi nesse momento que um pensamento que já havia assomado algumas vezes a cabeça por trás de outros com mais sorte, sem que Tertuliano Máximo Afonso lhe tivesse dado atenção, conseguiu passar de súbito ao primeiro lugar, Se tu fores à lista telefónica, disse, poderás saber onde ele vive, não precisarás de perguntar à produtora, e até, no caso de estares com disposição para isso, poderás ir ver a rua onde ele mora, e a casa, claro que deverás ter a prudência elementar de te disfarçares, não me perguntes de quê, isso é lá contigo.
O estômago de Tertuliano Máximo Afonso deu outra vez sinal, este homem recusa-se a perceber que as emoções são sábias, que se preocupam connosco, amanhã lembrarão, Nós bem te tínhamos avisado, mas nessa altura, segundo todas as probabilidades, já será demasiado tarde. Tertuliano Máximo Afonso tem a lista nas mãos, trémulas procuram a letra S, folheiam para trás e para diante, aqui está. São três os Santa-Clara, e nenhum é Daniel.
A decepção não foi grande. Uma tão trabalhosa busca não podia terminar assim sem mais nem menos, seria ridiculamente simples. É verdade que as listas telefónicas sempre foram um dos primeiros instrumentos de investigação de qualquer detective particular ou polícia de bairro dotado de luzes básicas, uma espécie de microscópio de papel capaz de trazer a bactéria suspeita até à curva de percepção visual do pesquisador, mas também é verdade que este método de identificação tem tido os seus espinhos e fracassos, são os nomes que se repetem, são os gravadores sem compaixão, são os silêncios desconfiados, é aquela frequente e desanimadora resposta Esse senhor já não mora aqui. O primeiro e, por lógico, acertado pensamento de Tertuliano Máximo Afonso foi que o tal Daniel Santa-Clara não tinha querido que o seu nome constasse da lista telefónica. Algumas pessoas influentes, de mais relevante evidência social, adoptam esse procedimento, chama-se a isso defesa do sagrado direito à privacidade, fazem-no, por exemplo, os empresários e os financeiros, os politicantes de primeira grandeza, as estrelas, os planetas, os cometas e os meteoritos do cinema, os escritores geniais e meditabundos, os craques do futebol, os corredores de fórmula um, os modelos da alta e média costura, também os da baixa, e, por razões bastante mais compreensíveis, igualmente os delinquentes das distintas especialidades do crime têm preferido o recato, a discrição e a modéstia de um anonimato que até certo ponto os protege de curiosidades malsãs. No caso destes, mesmo se as suas façanhas vierem a tomá-los famosos, poderemos ter a certeza de que nunca os encontraremos no anuário telefónico. Ora, não sendo Daniel Santa-Clara, pelo que dele viemos conhecendo até agora, um delinquente, não sendo também, e quanto a este ponto não pode restar-nos qualquer dúvida, apesar de à mesma profissão pertencer, uma estrela de cinema, o motivo da não presença do seu nome no reduzido grupo dos apelidados Santa-Clara teria de causar uma viva perplexidade, da qual só será possível sair reflectindo. Foi essa precisamente a ocupação a que se entregou Tertuliano Máximo Afonso enquanto nós, com reprovável frivolidade, discorríamos sobre a variedade sociológica daquelas pessoas que, no fundo, apreciariam estar presentes numa lista telefónica particular, confidencial, secreta, uma espécie de outro almanaque de Gotha que registasse as novas formas de nobilitação nas sociedades modernas. A conclusão a que Tertuliano Máximo Afonso chegou, ainda que pertencendo à classe das que saltam à vista, nem por isso é menos merecedora de aplauso, porquanto demonstra que a confusão mental que tem trazido atormentados os últimos dias do professor de História ainda não se transformou em impedimento a um livre e recto pensar. É certo que o nome de Daniel Santa-Clara não se encontra na lista telefónica, mas isso não significa que não possa haver uma relação, digamos assim, de parentesco, entre uma das três pessoas que nela figuram e o Santa-Clara actor de cinema. Não menos será de admitir a probabilidade de que todos eles pertençam à mesma família, ou até mesmo, se por este caminho vamos, que Daniel Santa-Clara, afinal, more numa daquelas casas e que o telefone de que ele se serve esteja ainda, por exemplo, em nome do seu falecido avô. Se, como às crianças antigamente se contava, para ilustração das relações entre as pequenas causas e os grandes efeitos, uma batalha foi perdida por se ter soltado uma das ferraduras a um cavalo, a trajectória das deduções e induções que trouxeram Tertuliano Máximo Afonso à conclusão que acabamos de expor não se nos afigura mais duvidosa e problemática que aquele edificante episódio da história das guerras cujo primeiro agente e final responsável teria sido, no fim de contas e sem margem para objecções, a incompetência profissional do ferrador do exército vencido. Que passo irá dar agora Tertuliano Máximo Afonso, essa é a candente questão. Talvez o satisfaça haver desbastado o problema com vista ao estudo ulterior das condições para a definição de uma táctica de aproximação não frontal, daquelas prudentes que procedem por pequenos avanços e mantêm sempre um pé atrás. Quem o vê, sentado na cadeira em que teve começo esta que é já, a todos os títulos, uma nova fase da sua vida, de dorso curvado, cotovelos assentes nos joelhos e cabeça entre as mãos, não imagina o duro trabalho que vai dentro daquele cérebro, pesando alternativas, medindo opções, estimando variantes, antecipando lances, como um mestre de xadrez. Já passou meia hora, e ele não se mexe. E outra meia hora terá ainda de passar até que de repente o veremos levantar-se para ir sentar-se à secretária com a lista telefónica aberta na página do enigma. É manifesto que tomou uma viril decisão, admiremos a coragem de quem afinal deitou a prudência para trás das costas e resolveu atacar de frente. Marcou o número do primeiro Santa-Clara e esperou, Ninguém respondeu e não havia atendedor de chamadas. Marcou o segundo e uma voz de mulher atendeu, Diga, Boas tardes, minha senhora, peço desculpa se a venho importunar, mas gostaria de falar com o senhor Daniel Santa-Clara, tenho indicação de que vive nessa morada, Está equivocado, esse senhor não mora nesta casa, nem morou nunca, Mas o apelido, O apelido é uma coincidência, como tantas outras, Julguei que ao menos fosse da família dele e me pudesse ajudar a encontrá-lo, Nem sequer o conheço, A ele, A ele e a si, Perdoe, devia ter-lhe dito o meu nome, Não diga, não me interessa saber, Pelos vistos, informaram-me mal, Assim é, pelos vistos, Muito obrigado pela sua atenção, De nada, Boas tardes, desculpe tê-la incomodado, Boas tardes. Seria natural, depois desta troca de palavras, inexplicavelmente tensa, que Tertuliano Máximo Afonso fizesse uma pausa para recuperar a serenidade e a normalidade do pulso, mas tal não aconteceu. Há situações na vida em que já tanto nos dá perder por dez como perder por cem, o que queremos é conhecer rapidamente a última soma do desastre, para depois, se tal for possível. não voltarmos a pensar mais no assunto. O terceiro número foi pois marcado sem hesitação, uma voz de homem perguntou de lá, bruscamente, Quem fala. Tertuliano Máximo Afonso sentiu-se como apanhado em falta, balbuciou um nome qualquer, Que deseja, tornou a voz a perguntar, o tom continuava a ser desabrido, mas, curiosamente, não se percebia nele nenhuma hostilidade, há pessoas assim, a voz sai-lhes de tal maneira que parece que estão irritadas com toda a gente e, afinal, vai-se ver e têm um coração de ouro. Desta vez, por causa da brevidade do diálogo, não iremos chegar a saber se o coração da pessoa é realmente feito daquele nobilíssimo metal. Tertuliano Máximo Afonso manifestou o desejo de falar com o senhor Daniel Santa-Clara, o homem da voz irritada respondeu que não morava ali ninguém com esse nome, e a conversa não parecia poder avançar muito mais, não valia a pena repisar a curiosa coincidência dos apelidos nem a possível casualidade de uma relação familiar que encaminhasse o interessado ao seu destino, em casos destes as perguntas e as respostas repetem-se, são as mesmas de sempre, Fulano está, Fulano não mora aqui, mas desta vez surgiu uma novidade, e foi ela ter-se recordado o homem das cordas vocais destemperadas de que havia mais ou menos uma semana outra pessoa tinha telefonado a fazer idêntica pergunta, Suponho que não terá sido o senhor, pelo menos a voz não se parece, tenho muito bom ouvido para distinguir vozes, Não, não fui eu, disse Tertuliano Máximo Afonso, subitamente perturbado, e essa pessoa era quem, um homem, ou uma mulher, Era um homem, claro. Sim, um homem, que cabeça a sua, pois não se está mesmo a ver que por muitas diferenças que possam existir entre as vozes de dois homens, muitas mais as haveria entre uma voz feminina e uma voz masculina, Ainda que, acrescentou o interlocutor à informação, agora que o penso, houve um momento em que me pareceu que se esforçava por disfarçá-la. Depois de ter agradecido, como devia, a atenção, Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador no descanso e ficou a olhar os três nomes da lista. Se o tal homem telefonara a perguntar por Daniel Santa-Clara, a simples lógica de procedimento obrigava a que, tal como ele próprio havia acabado de fazer, tivesse ligado para os três números. Tertuliano Máximo Afonso desconhecia, obviamente, se da primeira das casas lhe teria respondido alguém, e tudo indicava que a maldisposta mulher com quem falara, essa, sim, pessoa grosseira apesar do tom neutro da voz, ou não se recordava, ou não considerara necessário mencionar o facto, ou, mais naturalmente, não tinha sido ela quem atendera a chamada. Talvez porque viva sozinho, disse Tertuliano Máximo Afonso consigo mesmo, tenho tendência a imaginar que os outros vivem da mesma maneira. Da fortíssima perturbação que lhe causara a notícia de que um desconhecido andava também à procura de Daniel Santa-Clara ficara-lhe uma inquieta sensação de desconcerto como se se encontrasse diante de uma equação do segundo grau depois de se ter esquecido de como se resolvem as do primeiro. Provavelmente seria algum credor, pensou, é o mais certo, um credor, isto de artistas e literatos é gente que quase sempre leva uma vida irregular, deve ter ficado a dever dinheiro em algum desses sítios onde se joga e agora querem fazê-lo pagar. Tertuliano Máximo Afonso tinha lido em tempos passados que as dívidas de jogo são as mais sagradas de todas, há até quem lhes chame dívidas de honra, e embora não percebesse por que teria a honra que ver nestes casos mais que nos outros, aceitara o código e a prescrição como algo que não lhe dizia respeito, É lá com eles, pensara. No entanto, hoje, teria preferido que de sagrado não tivessem essas tais dívidas tanto, que fossem das comuns, daquelas que se perdoam e olvidam, como no antigo padre-nosso não só se rogava como também se prometia. Para desanuviar o espírito, foi à cozinha preparar um café e, enquanto o tomava, deu balanço à situação, Ainda me falta fazer aquela chamada, duas coisas poderão suceder quando a fizer, ou me dizem de lá que desconhecem o nome e a pessoa e por este lado fica arrumado o assunto, ou me respondem que sim, que vive ali, e então o que farei é desligar, nesta altura só me importa saber onde ele mora.