"Então, meu irmão mais novo ainda se recusa a se juntar a mim?" A voz acusava uma pitada de vontade misturada com raiva.
Hyakuhei abriu os olhos e passou a mão por seus longos cabelos de ébano. Sem dizer uma palavra em voz alta, ele respondeu à voz intrusiva. "Irmão mais novo? Nós somos gêmeos Tadamichi, você não é melhor do que eu."
A voz de Tadamichi endureceu: "Os gêmeos são parecidos... nós somos parecidos? Além disso, eu sou o primogênito... então isso o faz mais jovem."
Sentando-se, Hyakuhei deixou as folhas de seda caÃrem de seu corpo nu enquanto deslizava da cama. Tadamichi adorava manipular os acontecimentos a seu gosto. "Não, não somos nada iguais... então chega de charadas." Ele estremeceu e depois revirou os olhos quando a lâmpada na mesa de cabeceira ao lado dele se quebrou. Ele tinha de aprender a manter seu temperamento sob controle ou tudo ao redor dele seria destruÃdo. Ele achava que era seu castigo por ter perdido a paciência há tanto tempo com seu irmão.
"Eu não odeio você," Hyakuhei resmungou como se estivesse tentando se convencer.
"Que generoso," a voz de Tadamichi tomou um tom melancólico como se ele não acreditasse na confissão. "Na última vez que estivemos dentro do mesmo reino... nós nos matamos. Atos tão sem sentido para imortais... você não acha?" Houve uma pausa antes que ele continuasse. "Uma vez acabado o banimento, como um irmão fiel... Esperei por seu retorno."
"Estamos destinados a ficarmos sozinhos," Hyakuhei cortou com uma mentira. Ele sabia que seu irmão não estava mais sozinho... Tadamichi tinha se certificado disso.
Ele podia ouvir a risada silenciosa de seu irmão. Isso fez com que ele se perguntasse se não havia sido um erro pensar que poderia voltar e enfrentar a famÃlia perversa que seu irmão criara em sua ausência. O único ponto em que ele e seu irmão eram iguais era que eles não gostavam de ficar sozinhos... embora eles tivessem duas maneiras completamente diferentes de corrigir esse problema.
"Eu sabia que você retornaria... aqui onde a noite nunca é escura... aqui onde você nunca estará sozinho entre tantos humanos e as crianças que eu criei para nós." A voz de Tadamichi tornou-se desejosa.
Hyakuhei entrou no banheiro, ligando o chuveiro e girando para encarar o espelho. Nenhuma reflexão olhou para ele, então ele simplesmente imaginou o rosto de seu irmão... seu próprio rosto, quando ele respondeu. "Eu não quero nada com as abominações que você gerou." Ele recuou no chuveiro enquanto desmanchava a ligação para que não precisasse mais ouvir a voz assombrosa do irmão.
Não... ele não havia voltado para sua terra natal para se juntar a eles como em uma deturpada reunião de famÃlia. Seu irmão era o mais destrutivo de todos os demônios e as crianças que ele gerava eram, no mÃnimo, perturbadoras. Aquelas crianças agora estavam gerando outras e seus números cresciam como a peste negra.
Hyakuhei colocou as mãos nas paredes de cerâmica do chuveiro... deixando a água quente aquecer sua pele congelada. O que isso importava para ele? A última vez que ele tentou impedir seu irmão de infestar o mundo humano com demônios hÃbridos terminou em suas mortes... uma morte falsa de que levou séculos para se recuperarem.
O castigo deles por esse crime foi o banimento um do outro e deste mundo de seres humanos. Eles se tornaram Sombras que andavam pela dimensão entre os reinos... lançando apenas sombras de solidão. Aquilo terminara há mais de um século. No entanto, ele havia permanecido longe de seu gêmeo. Mesmo da escuridão do outro lado do mundo, ele ouvia esta cidade chamando-o até que ele não pôde mais lutar contra o chamado por mais tempo.
Seu irmão estava certo sobre uma coisa... ele estava exausto de ficar sozinho. Mas agora que ele estava em casa, ele podia sentir o cheiro dos pecados de seu irmão contagiando a terra. Demônios de sangue verdadeiro ele poderia tolerar, mas o estupro da cidade por vampiros hÃbridos que aquela geração havia criado... era provocante.
Seu irmão gêmeo ficara no subsolo na maior parte do tempo, dentro das opulentas catacumbas que uma vez haviam compartilhado durante a era medieval... apenas para ressurgir de vez em quando, tempo o suficiente para trazer outra vÃtima para o abraço mortal.
Hyakuhei olhou para a cachoeira do chuveiro... tentando evitar que sua fúria transbordasse, mas soube que fracassou quando ouviu o espelho do banheiro quebrar.
Tadamichi o acusou de se esconder do mundo, mas isso não era verdade.
"à Tadamichi quem escolheu esse caminho," pensou ele de forma sombria. "Ele não pode ver a destruição que ele está causando. A noite já não é escura e nem silenciosa." Hyakuhei desligou o chuveiro e saiu, sem se preocupar em envolver uma toalha em volta de sua forma esguia. Em vez disso, ele pegou o suave pano preto e começou a secar seus longos cabelos de ébano. Dentro de momentos ele estava vestido e pronto para a noite.
Voltando para sua janela na sala de estar, sentou-se no peitoril e olhou para o panorama.
Hyakuhei sorriu para o seu humor negro e olhou para o lado oposto do edifÃcio.
"A escuridão está viva com demônios Irmão. Essa cidade com seus altos muros fez isso," ele meditou em voz alta.
*****
Yuuhi reapareceu no centro da cidade minutos antes do amanhecer. Ele já podia sentir o calor do sol em sua pele e acelerou seu ritmo em direção ao Grand Hotel no centro da metrópole. Sob as massivas instalações de cinco estrelas escondidas do mundo ficava a residência subterrânea do seu senhor. Era tão bonito abaixo do solo quanto o que abrigava os seres humanos acima... seu senhor havia arranjado para que assim fosse.
Yuuhi atravessou as portas da frente do Grand Hotel e atravessou o saguão. Ignorando a saudação amigável da humana atrás do balcão, Yuuhi atravessou a porta que dizia "manutenção". Atravessando até o porão, ele entrou no elevador de manutenção que o levaria ao nÃvel do sub-subterrâneo. De lá, era a abertura da passagem escondida que o levaria ao seu mestre.
Sentindo a escuridão perto dele como um cobertor protetor, a criança de cabelo platina correu pelos túneis sinuosos como se estivesse tentando escapar da escuridão... ou acompanhá-la.
Yuuhi era um dos poucos privilegiados permitidos na alcova privada de Tadamichi... apenas os que Tadamichi tinha gerado pessoalmente eram autorizados. O garotinho tinha sido um dos primeiros de Tadamichi e o vÃnculo que o mantinha fiel era o que o levara a avisar o mestre sobre a menina... e o poder que ela possuÃa. O vÃnculo também lhe permitia sentir os estados emocionais de seu mestre, o que podia ser problemático à s vezes.
Ele podia sentir que o Mestre Tadamichi estava com raiva e sabia a causa por trás daquela raiva... Hyakuhei. Somente o irmão gêmeo do mestre poderia provocar esse tipo de reação. Ciúme e rejeição podiam ser perigosos com alguém tão poderoso.
Yuuhi silenciosamente passou para os aposentos de Tadamichi, mas ficou na sombra para observar seu mestre. O garoto era paciente e sabia aguardar a tempestade da raiva de seu mestre.
Tadamichi olhou para seu reflexo no Espelho das Almas e desviou o olhar com um silvo irritado. Seu irmão havia quebrado o vÃnculo entre suas mentes... banindo-o mais uma vez. Toda oportunidade que Tadamichi escolhia para falar com seu irmão era terminada de forma bastante abrupta, irritando-o. Ele estava começando a acreditar que seu vÃnculo nunca voltaria ao que havia sido.
Tadamichi olhou para seu reflexo no Espelho das Almas e desviou o olhar com um silvo irritado. Seu irmão havia quebrado o vÃnculo entre suas mentes... banindo-o mais uma vez. Toda oportunidade que Tadamichi escolhia para falar com seu irmão era terminada de forma bastante abrupta, irritando-o. Ele estava começando a acreditar que seu vÃnculo nunca voltaria ao que havia sido.
Os séculos longe uns dos outros não foram uma punição suficientemente longa? Hyakuhei sempre ficaria longe?
Ao ver o movimento nas sombras, Tadamichi agitou com raiva a mão em sua direção... cada hÃbrido dentro de sua sala e a mil metros de sua solidão queimaram espontaneamente... deixando para trás um cheiro de enxofre no ar. Não haveria testemunhas da rejeição de seu irmão. No entanto, ele virou a cabeça na outra direção e repousou os olhos no único de seus filhos em que ele confiaria seu segredo.
Ignorando Yuuhi por um momento, Tadamichi caminhou lentamente pela sala e ficou de pé em frente a um retrato, as mãos cruzadas atrás de suas costas. Quando os gritos e as chamas se apagaram, Tadamichi continuou a encarar a pintura como se nada estivesse faltando.
A pintura fora criada muito antes das guerras medievais terem ocorrido... antes de sua guerra civil. Poder-se-ia imaginar que era um autorretrato que mostrava duas personalidades. Na verdade, era ele e seu irmão... tão difÃcil de diferenciá-los. Como eles podiam ser tão parecidos... e tão diferentes? Seu irmão nunca aprendera o significado do amor... a dor da rejeição?
Tadamichi passou a ponta dos dedos sobre a imagem de seu irmão, suas sobrancelhas franzindo um pouco antes de seu rosto se contorcer de raiva. Ele de repente atacou a pintura em um movimento tão rápido que era praticamente invisÃvel. A imagem ficou ali por um momento, então, lentamente, um rasgo irregular apareceu... cortando os gêmeos, separando um do outro. O pano do retrato caiu ligeiramente ao lado e a expressão de Tadamichi de repente mostrou tristeza.
Colocando as palmas das mãos contra a pintura, Tadamichi juntou-os por um momento antes de deixá-los cair.
Seu amor por Hyakuhei era incalculável. Tadamichi simplesmente queria que Hyakuhei estivesse ao seu lado para compartilhar essa existência maravilhosa. "Por que você abandonou a mim e a vida que poderÃamos ter?" Ele perguntou em silêncio e sentiu o frio de ter feito a mesma pergunta para outro que não o seu irmão. Ele puxou a memória para dentro de si, recusando-se a remoê-la.
Yuuhi saiu da sombra detrás dele, sentindo a melancolia de seu mestre. Ele ficou surpreso que seu pai pudesse se sentir tanto assim por seu irmão quando ele mesmo mal sentiu uma pontada quando a menina matara seus irmãos apenas algumas horas antes.
"Então, você os perdeu?" Tadamichi perguntou, nunca tirando os olhos da imagem de seu irmão.
Yuuhi assentiu sabendo que Tadamichi podia ver seus pensamentos. Um pedaço de mármore branco apareceu em sua visão periférica e ele virou a cabeça em direção a ele. Seu olhar parecia quase pensativo enquanto olhava para as estátuas à esquerda. Virando lentamente em cÃrculo, ele olhou para cada uma, uma a uma. Elas estiveram aqui por tanto tempo quanto Yuuhi era capaz de lembrar, mas ele nunca havia perguntado sobre elas.
"Uma menina," sussurrou Yuuhi, perguntando-se por que um mestre demonÃaco teria estátuas de anjos. Era estranho... ele sempre pensou assim. Os anjos eram lindos até mesmo para os olhos de Yuuhi e ele se perguntava se criaturas como estas poderiam ter existido nesta terra.
"Vou contar-lhe a história das estátuas, meu filho." Tadamichi lentamente olhou para longe das pinturas, com curiosidade... "E você vai me contar sobre essa garota." O canto de seus lábios mostrou a sugestão de um sorriso perverso. "Vá e olhe mais de perto," ele persuadiu. "A curiosidade é uma emoção intrigante... não é?"
Yuuhi caminhou lentamente pela sala olhando para os rostos dos homens alados... parando na frente do que mais o intrigava. Os longos cabelos que alcançavam a parte inferior das costas dele balançavam... como se estivesse no meio da batalha. A expressão que estava no rosto era muito bonita... e assustadora. Para o que o anjo lutava tanto? Qual teria sido o prêmio?
As mãos de pedra se agarravam a uma espada que estava em um movimento descendente e Yuuhi estendeu a mão para deslizar o polegar nela... recolhendo-a rapidamente quando uma pequena e fina linha de sangue brotou no polegar.
Tadamichi estava, de repente, ao lado dele, levando a lesão a seus lábios para sugar o sangue do dedo do menino. Sabendo que Yuuhi era uma criança de poucas palavras e menos emoções ainda, Tadamichi soltou a mão e assentiu com a cabeça para a estátua. "Esta estátua... Kyou e sua espada da destruição," ele fechou os olhos ao se lembrar dos guardiões, "Adversários muito poderosos... todos eles."
Yuuhi se virou para o mestre e esperou pacientemente.
"Eles pensavam que poderiam livrar o mundo das trevas... pensavam que poderiam livrá-lo de mim e do meu irmão. Deveriam ter sido mais espertos." Ele abriu os olhos, que agora tinham um estranho matiz vermelho neles. "Eles eram irmãos, sabe." Ele se aproximou da estátua daquele que parecia ser o mais novo quando acrescentou: "Ou pelo menos todos eles pensavam que eram verdadeiros irmãos."
Ele estendeu a mão e acariciou a bochecha da estátua, deixando seus dedos rastrearem o caminho que uma lágrima tinha deixado... congelado no tempo. "Meu querido Kamui. Ele sabia que o que os guardiões tinham feito estava errado. à por isso que ele parece tão triste. à uma pena meu irmão nunca o ter conhecido."
Tadamichi voltou-se para o próximo irmão. "Kotaro era forte de espÃrito, mas possessivo sobre o que ele afirmava ser dele." Seus olhos brilhavam como se estivessem vendo o passado. "Ele estava disposto a morrer se precisasse... tudo pelo amor de uma mulher."
Descartando a estátua com um acenar de mão, ele se aproximou da próxima, quando seus olhos escureceram. Este era o mais perigoso dos irmãos. "Toya... ele era uma criatura muito interessante. Tão cheio de fogo e fúria, e, ainda assim, como ele poderia amar uma mulher com tanta ferocidade não consigo entender. Isso levou a muitas batalhas entre ele e os outros irmãos. Ele era o mais possessivo dela. Estou surpreso que eles nunca se destruÃram em seu absurdo."
Ele se virou para a estátua final. A mão do homem estava na frente dele como se estivesse lançando um feitiço. Tadamichi sabia a verdade sobre o feitiço de Shinbe... o vazio estava em movimento conforme eles o jogaram no portal do tempo... selando-o dentro dele. "Shinbe era sábio além de sua idade, mas ele era tolo o suficiente para alterar o destino... todos eles eram." Seus olhos se endureceram enquanto se perguntava se a sacerdotisa ainda estava com eles.
"A menina pode nos destruir." A voz de Yuuhi não tinha nenhuma emoção enquanto ele estava na frente da estátua que parecia conter o verdadeiro significado de raiva. "Ela me faz lembrar dele, Mestre."
Tadamichi olhou estranhamente para o guardião que a criança havia indicado, "Toya?"
Yuuhi finalmente virou os olhos negros para Tadamichi enquanto suas palavras assustadoras ecoavam: "Toya, ele é quem está dentro dela... isso é o que pode nos matar."
Os olhos de Tadamichi subiram para a raiva de Toya e, de repente, ele se sentiu mais vivo do que nunca. O que era a vida sem um motivo para viver? Então... ela voltou para esse reino. Ele sentia saudade das guerras de antigamente. Anjos e demônios eram a mesma coisa... só que um tinha uma reputação melhor. Se a verdade fosse dita, eles eram todos assassinos.