Bom, eu vou fazer perguntas, mas não vai ser essa esclareci, embora sem sucesso.
Chegámos. Disse o taxista com um largo sorriso no rosto. Boa sorte!
Sim, obrigado respondi sem querer entrar em mais detalhes acerca daquela tarde anormal, em que tinha aceitado consultar de improviso uma mulher com uma caixa, que eu agora trazia comigo e que me levava até um espetáculo de balé que eu desconhecia.
Não é como se eu fosse fã desta arte, mas em certas ocasiões, sobretudo quando ia a congressos, organizavam-se eventos culturais lá perto, dignos de se contemplar pelo grande esforço feito por parte dos seus organizadores.
Estava diante da porta de um teatro, algo que me chamou à atenção, pois não era habitual haver uma apresentação de balé num lugar daqueles. E chegada a hora de entrar, apresentei o bilhete e o porteiro disse:
Boa noite! Esperávamo-lo com algum nervosismo.
A mim? Perguntei, surpreso com aquela saudação tão invulgar.
Aguarde aqui, por favor, enquanto aviso os restantes.
E tendo dito isto, abriu uma porta interna e gritou:
Já chegou! Preparem-se todos.
Todos quem? Voltei a perguntar sem saber bem a que se devia aquela agitação.
Venha, pode entrar! Disse uma jovem, abrindo uma porta lateral que impedia a passagem do lado da janela de acesso.
Obrigado, mas não estou a perceber a que se deve tanta atenção eu disse com um ar de surpresa, misturado com cansaço.
Venha comigo! Continuou a rapariga enquanto nos esgueirávamos por uma passagem estreita que ia dar a uma pequena sala.
Chegue aqui, por favor disse outra pessoa, através de um dos assentos.
Por onde é que posso descer? Perguntei ao ver que me encontrava no meio de um pequeno cenário, enquanto a rapariga se retirava.
Lá ao fundo, do seu lado direito, há três degraus que não são muito grandes respondeu a pessoa que se levantava do assento.
Quando dei com o lugar, disse para a pessoa que me recebera com a palma da mão aberta:
Qual é o meu lugar?
Qualquer um! Afirmou com um largo sorriso.
Como assim? Perguntei surpreendido com aquilo.
Pode sentar-se onde lhe apetecer. Agora preciso retirar-me dizia enquanto subia para o cenário de onde tinha descido e desaparecia pelo mesmo lugar que a rapariga que me tinha trazido até ali.
Senhoras e senhores! Boa noite, antes de mais nada, quero agradecer a vossa presença, espero que esta obra seja do vosso interesse. E sem mais demoras, comecemos. Disse o bilheteiro que agora envergava uma jaqueta verde e umas calças de malha da mesma cor.
Olhei em volta para ver se havia mais espetadores naquela sala, mas não consegui ver ninguém. Aquilo surpreendeu-me, pois não percebia o que é que se estava ali a passar. Tinha a certeza de que estava no lugar certo, que a morada e inclusive o bilheteiro, que tudo isso estava correto. À exceção do que se tinha passado das portas para dentro.
No palco, aquelas três pessoas apresentavam e dançavam sucessivamente, fazendo trocas constantes de roupa e de entoações.
De início custou-me um pouco perceber qual era a peça, mas logo dei-me conta de que estava diante de uma das obras mais representadas da história. Uma obra classificada como a mais dramática e a mais complexa. Repleta de amor, ódio, vingança e desejo, mas que era rapidamente conhecida pela famosa frase Ser ou não ser! Eis a questão.
Hamlet, uma das obras trágicas mais conhecidas de William Shakespeare, mas adaptada a um pequeno povo criado em palco, em vez de refletir a nobreza dinamarquesa das suas personagens originais.
O enredo não se distanciava muito dos dramas atuais, embora os bailarinos quisessem manter aquele traje medieval e linguagem aprimorada e pouco direta da obra original.
Além disso, como os atores-bailarinos eram poucos, eles próprios representavam várias personagens, sendo que a única coisa que os distinguia uns dos outros era a indumentária que usavam. Assim, e para que fosse evidente a troca, os dois rapazes, além de fazerem as personagens masculinas, também faziam as personagens femininas.
Em apenas meia hora tinham terminado e eu fiquei perplexo com aquilo. Não era que me lembrasse da obra por inteiro, mas sabia que tinha três ou quatro atos, cada um mais extenso do que o outro em termos de tempo, mas isto, tinha sido como um Hamlet expresso.
Quando os três bailarinos ficaram de pé no palco, com os braços para cima após dobrarem o corpo numa vénia, baixarem a cabeça quase até aos joelhos e deterem-se a olhar para mim, tive que aplaudir.
O que achou? Perguntou o ator-bailarino que tinha feito de bilheteiro.
Pareceu-me bem eu disse, tentando recuperar da impressão que me causara.
A sério que gostou? Perguntou nervosa a atriz.
Bom, na sua essência pareceu-me bem, embora tenha faltado o mais importante referi sem querer desanimá-los.
O mais importante? Perguntou um terceiro.
Sim, toda a introspeção dos personagens, principalmente do príncipe Hamlet. Faltou mais um pouco de autodiálogo.
Eu sabia! Falou o primeiro ator.
Tem calma! Disse o terceiro.
Como acha que poderíamos melhorar? Perguntou a atriz.
Não sei, não é como se fosse um entendido no assunto, nem nada disso.
Era isso que queríamos, daí o convite indicou a mulher.
Não estou a perceber! Respondi, confuso com aquela afirmação.
Deixámos um convite no parque para que, quem quisesse, pudesse assistir de forma anónima à nossa ante-estreia, para assim ficarmos a conhecer de antemão a impressão que a nossa obra causa no espetador. Esclareceu o primeiro ator.
Bem, talvez eu não seja tão imparcial como desejariam, sou psiquiatra e devido à minha profissão, tenho o costume de analisar tudo aquilo que oiço e vejo. É um hábito profissional! Esclareci com um certo tom de resignação.
Então! Gostou? Insistiu a mulher que estava vestida com um meias de rede e um tutu, ambos negros.
Sim, achei interessante a abordagem que fizeram, mas pareceu-me demasiado curto, e faltaram algumas cenas importantes da obra.
É essa a ideia afirmou o terceiro ator com um tom desafiante. Se queria ver uma obra clássica, enganou-se na sala. Nós somos ousados, inovadores, e não queremos repetir o mesmo que os outros.
Apesar disso, creio que um pouco mais de introspeção seria bom para o público refletir sobre a natureza humana, tal como pretendia Shakespeare voltei a indicar.
Reflexão? Não é isso que procuramos, queremos emocionar, impressionar, fazer perder o fôlego que quando sair daqui, se lembre do que viveu como uma experiência única. Não queremos cá reflexões! Insistiu o terceiro ator com um tom aborrecido.
Bem, apenas estou a dizer o que penso, creio que é um clássico e há que respeitar algumas coisas da obra original.
Agradecemos o seu tempo afirmou a mulher enquanto descia os três degraus do palco. Já agora, isto é seu? Disse, entregando-me a caixa que me tinha conduzido até esta experiência tão imprevisível. Sim, é seu. Afirmou. Embora esperássemos que viesse acompanhado.
Acompanhado? Perguntei surpreendido.
Sim, mas suponho que não tinha ninguém com quem vir afirmou com um tom sarcástico o terceiro bailarino ao descer do palco.
Acompanhado? Perguntei surpreendido.
Sim, mas suponho que não tinha ninguém com quem vir afirmou com um tom sarcástico o terceiro bailarino ao descer do palco.
A verdade é que, se soubesse ao que vinha, poderia ter convidado alguém, mas como não dizia nada
Como nada? Perguntou o primeiro ator, que fizera de bilheteiro. Está escrito o lugar, a hora e até que era um espetáculo de balé.
Sim, é verdade, mas não me imaginei num sítio como este, vi no jornal que anunciavam uma companhia de balé que atuaria hoje, e pensei que eram vocês.
Antes fosse! Disse a mulher. Nem sequer somos uma companhia, apenas um grupo de amigos que resolveu oferecer um pouco de arte ao povo, mas isso sim, preferimos que seja de qualidade e que transmita emoção ao espetador.
Ouviu bem? Emoção! E não diálogo! Afirmou o terceiro bailarino, enquanto se sentava do meu lado.
Bom, parabéns, continuem assim. Eu disse, tentando acabar com aquela situação desconfortável, pois era a primeira vez que ia a uma dessas representações alternativas, ou lá como se chamava.
Raramente ia a lugares artísticos, mas quando o fazia, procurava sempre que fossem obras de companhias internacionais.
Espere! Disse a jovem, segurando-me pelo braço do casaco. O que é isto?
O quê? Perguntei surpreso.
Este anel e este bilhete? O que quer isto dizer? Perguntou desconfiada enquanto o retirava da caixa.
Não faço a mínima ideia, veio com a caixa afirmei sem saber o motivo da sua desconfiança.
Deixámos a caixa no parque para que quem quisesse nos pudesse vir ver e assim ficarmos a saber a sua opinião, mas não colocamos isto lá referiu o primeiro ator.
Pois posso garantir-lhes que isso já estava aí dentro quando recebi a caixa insisti.
Tome! Disse a rapariga, entregando-me ambos os objetos.
E o que quer que faça com isto? Perguntei contrariado ao ver que não lhes pertencia.
Não sei, mas não é daqui. Agradecemos a sua visita e a sua opinião acerca da nossa representação afirmou a rapariga enquanto me indicava o palco com um gesto de mão.
Acompanhe-me à saída falou o terceiro bailarino, enquanto caminhava diante de mim.
Segui-o até à saída, atravessando o caminho estreito e após cruzar a porta, voltei-me e a única coisa que recebi daquele homem foi:
Mais diálogo? O que é que você sabe de balé?
Após dizer isto fechou a porta e deixei-me ficar ali por uns segundos a observá-la antes de me voltar e olhar à minha volta.
A rua estava quase toda às escuras, à exceção de alguns estabelecimentos de bebidas e de jogos, desses que ficam abertos vinte e quatro horas.
Olhei para ambos os lados e não vi um único carro. Olhei para o relógio e fiquei admirado ao ver que já tinha passado mais de uma hora desde que saíra do meu escritório.
E onde é que encontro um táxi a estas horas? Disse para mim próprio enquanto começava a caminhar rua acima, à espera de que passasse algum.
Como o ar começava a ficar mais fresco, subi a gola do casaco e meti as mãos nos bolsos, quando me apercebi de que trazia aquele anel. Retirei-o, e com dificuldade, reparei que tinha algo gravado. Algo de que não me tinha apercebido antes, mas que também não conseguia ver bem com aquela luz fraca.
Voltei a guardá-lo no bolso e com a mão, toquei no bilhete e apercebi-me de que continha um certo relevo numa das suas pontas. Retirei-o e pus-me a observá-lo, mas não vi nada.
Pode ser que dê para ver melhor debaixo da luz, disse para mim, enquanto o levantava na direção de um candeeiro, que a vários metros de altura, fazia os possíveis por manter a rua iluminada.
Nada, assim também não dá para ver. Afirmei após tentar observá-lo de vários ângulos.
Estava entretido naquilo quando a rua se começou a iluminar e reparei que um carro se aproximava. Guardei depressa o pedaço de papel e fui tentar pará-lo.
Táxi! Táxi! Gritei, enquanto abanava as mãos no ar para que me visse.
Precisa de um táxi, senhor? Perguntou o condutor, parando do meu lado.
Sim, obrigado afirmei aliviado enquanto entrava para a parte traseira do carro.
Para onde quer ir?
Para o Hotel Plaza.
Teve sorte de eu passar por aqui, não é uma zona muito recomendável.
Pois, estou a ver que não eu disse, vendo que se tratava de um bairro negligente.
Está cá de visita? Perguntou o taxista.
O quê? Devolvi, enquanto observava o bairro que atravessávamos.
É a sua primeira vez cá na cidade? Insistiu.
Não, eu moro cá.
Onde? No hotel? Perguntou o taxista num tom de brincadeira.
Sim, isso mesmo. Afirmei decisivo.
Desculpe, mas não estou a perceber disse o homem surpreendido.
Há anos que vivo lá, e dessa forma posso concentrar-me no meu trabalho sem a necessidade de me distrair com coisas desnecessárias como as lidas domésticas.
Que trabalho pode ser assim tão absorvente? Perguntou o taxista curioso.
Sou psiquiatra respondi, enquanto baixava a gola do casaco.
Psi quê? Dos loucos? Perguntou, soltando uma gargalhada.
Aquele que trata da saúde mental dos cidadãos desta cidade salientei sem me deixar afetar por aquele comentário jocoso, que nem sequer era dos mais ofensivos que já tinha suportado.
Bem, não interessa, e isso dá-lhe para viver num hotel? Você deve ganhar bem ele disse, enquanto fazia um gesto com os dedos indicador e polegar, indicando dinheiro.
Nem por isso, mas como não tenho outros gastos, posso-me dar a esse luxo.
Ah! Sim, estou a ver! Afirmou o taxista, mostrando um sorriso brincalhão.
Se você fizesse contas do que gasta com o aluguer ou hipoteca, mais os gastos de luz, água, seguros e comida, provavelmente optaria por uma solução como a minha afirmei, fazendo-o ver as vantagens daquilo.
Se dissesse à minha mulher que íamos viver para um hotel, a primeira coisa que ela me perguntaria era se tinha ganhado a lotaria o homem brincou.
E a segunda? Perguntei, seguindo a sua piada.
O que faria com a minha sogra. Respondeu às gargalhadas.
Tem uma família grande? Perguntei intrigado.
Grande? Se contar com a minha mulher, a minha sogra, os tios e os primos, sim. Quando nos reunimos todos, somos dez. E vem outro a caminho. E você, não é casado? Perguntou divertido.
Não. Quer dizer, já fui, mas ela abandonou-me.
Ah, lamento afirmou o taxista, mudando de tom.
Não lamente, ela fugiu com outro enquanto eu estava num congresso.
Está a falar a sério?
E começamos os dois a rir daquela situação tão absurda. Até que se seguiu um momento de silêncio, quase tão desconfortável como o que senti quando voltei para casa naquele dia e encontrei o bilhete de despedida da minha mulher, a dizer: Espero que consigas tudo o que queres, eu também vou tentar, por isso vou-me embora.
Eu andava sempre com o bilhete na carteira, para todo o lado que ia, mas ainda não tinha chegado a mostrá-lo a ninguém, talvez por vergonha ou por medo de partilhar os meus sentimentos. Era óbvio que ela não era feliz comigo e que queria explorar novos horizontes.