Eu andava sempre com o bilhete na carteira, para todo o lado que ia, mas ainda não tinha chegado a mostrá-lo a ninguém, talvez por vergonha ou por medo de partilhar os meus sentimentos. Era óbvio que ela não era feliz comigo e que queria explorar novos horizontes.
Assim, quando cheguei a casa, e após dar-me conta da situação, peguei na mala que trazia comigo do congresso e fui para o Hotel Plaza, onde me deixei ficar até hoje.
Não me via a viver naquela casa sem ela. Tanto silêncio, tanta solidão, naquela casa que tínhamos comprado com tanta expectativa. Onde íamos ter os nossos filhos, vê-los crescer, e que seria a nossa morada até os últimos anos das nossas vidas. E com apenas dois anos de casamento, tudo acabou desta forma. Sem um único telefonema ou uma explicação, apenas com um bilhete de despedida.
É verdade que os últimos meses tinham sido bastante agitados para mim, centrados num novo projeto ser um dos cofundadores de uma associação internacional de psiquiatras, onde pretendíamos oferecer uma nova perspetiva às pessoas alheias à nossa ciência; publicar uma revista trimestral; arranjar financiamento para projetos de investigação; atender os meus pacientes e com tudo isso, acabei por me descuidar daquilo que mais queria, mas para o qual não tinha recebido nenhum sinal.
Sempre que voltava para casa, ela parecia feliz e satisfeita. Falava-me sobre o seu trabalho como professora, das dificuldades que por vezes tinha, ou de como alguma das crianças lhe tirava do sério.
Lembro-me até de que já tínhamos feito planos para nas próximas férias passarmos umas semanas numa dessas ilhas tropicais, cheias de cocos e praias de areia branca, onde o mar se confunde com o céu, e onde pudéssemos estar os dois juntos, a partilhar daquele pedacinho de céu cá na Terra. E de repente, de um dia para o outro, restou apenas um bilhete.
Chegámos! Disse o taxista ao parar em frente à entrada principal do hotel.
Obrigado! Respondi, pagando-lhe pela corrida e saindo do carro.
Boa noite! Saudou o porteiro do hotel.
Boa noite! Respondi enquanto subia novamente a gola do casaco e entrava no hotel com alguma pressa, uma vez que o tempo tinha começado a arrefecer.
Depois de subir as escadas, cruzei a porta giratória e dirigi-me à receção.
Boa noite, quarto 311. Tem correspondência para mim? Perguntei enquanto esperava que me dessem a chave do quarto.
Não doutor, mas aqui tem os jornais de hoje, tal como pediu.
Muito obrigada! Boa noite respondi enquanto recolhia os jornais internacionais aos quais gostava de dar uma vista de olhos antes de me deitar.
Qual é o andar? Perguntou o rapaz do elevador.
O terceiro. Afirmei, sabendo que ele já sabia a resposta, pois todas as noites fazia-me a mesma pergunta.
Teve um bom dia? Voltou a perguntar o rapaz.
Bom, foi uma tarde um pouco invulgar!
Por causa do tempo?
Sim, também respondi com um sorriso forçado.
Já chegámos! Tenha uma boa noite.
Muito obrigado, vou tentar falei, saindo do elevador e dirigindo-me ao meu quarto.
Ao fundo do corredor, havia uma pequena suite, que disponha de um pequeno escritório e de um quarto. Não era muito grande, mas era o melhor que tinha conseguido negociar com o diretor do hotel, já que não era habitual terem clientes alojados no mesmo quarto durante anos.
Mal abri a porta da suite, percebi que alguma coisa não estava bem. Um cheiro forte a charuto inundava a sala, algo que era óbvio que não era meu, pois eu não fumava, e muito menos recebia convidados no meu quarto, pelo que não pude evitar soltar um:
Quem está aí?
Tentei ligar o interruptor, mas os candeeiros não acendiam, embora tivesse pressionado repetidamente a chave da luz.
Não se preocupe doutor, está tudo bem. Disse uma voz vinda da minha poltrona.
Tinha passado tanto tempo naquela sala que era capaz de reconhecer cada canto e sabia bem que, no lugar de onde me falava, havia uma poltrona debaixo de um candeeiro de pé, lugar onde costumava sentar-me a ler os jornais antes de dormir.
Quem é você? Perguntei, dando um passo atrás e dirigindo-me até à saída para abrir a porta e poder, pelo menos, iluminar o quarto.
Estava prestes a fazê-lo, já com a mão na maçaneta, quando notei que alguém a prendia, impedindo-me de puxar a maçaneta.
Acalme-se, por favor! Se lhe quisesse fazer mal, não estaríamos aqui a falar.
De repente, fez-se luz atrás de mim. O homem que falava comigo, tinha acendido o candeeiro e com isso, notei como outro, encasacado e com luvas, prendia-me a mão com as suas duas mãos.
Soltei-me e voltei-me para protestar por aquela invasão de privacidade, pois, embora assim não fosse, considerava aquele espaço a minha casa.
Calma! Já disse que não lhe queremos fazer mal voltou a dizer o homem sentado junto ao candeeiro, enquanto acendia um charuto.
Não pode fumar aqui! Protestei.
A sério que me surpreende que um homem como você, com o seu talento, tenha acabado neste buraco indicou o homem do charuto enquanto expelia uma nuvem de fumo.
Não me venha cá com bajulações. Não sei o que querem, mas enganaram-se na pessoa insisti, tentando safar-me daquela situação desconfortável.
Tenho a certeza de que a esta altura já teve tempo de traçar um perfil para mim.
Um perfil? Perguntei num tom de espanto.
Não se arme em inocente, doutor. Conhecemo-lo bem. Ou prefere que lhe recite todos os livros que escreveu sobre perfis psicológicos? Comentou num tom desafiador.
Aquelas palavras fizeram-me recuar aos meus tempos de faculdade, quando ainda estava a estudar e passava horas e horas na biblioteca.
A certa altura, durante uma aula de Bases Psicológicas e Biológicas da Personalidade, descobri com fascínio como era possível analisar minuciosamente as pessoas a um ponto indescritível.
A maneira de ser, sentimentos e pensamentos ficavam a olho nu diante de um bom analista, capaz de descobrir os segredos de qualquer pessoa como se fossem transparentes como um cristal.
Algo que no início comecei a ler como um passatempo, já que não fazia parte das disciplinas obrigatórias, mas que aos poucos foi fazendo parte da minha especialidade, abordando-o em diversas disciplinas, aprofundando no que atualmente conhecemos como perfis e que são tão úteis para os juízes no seu trabalho pericial e, inclusive, no âmbito dos recursos humanos na hora de selecionar o candidato ideal.
Benjamin Franklin, Carl Gustav Jung, Albert Einstein e atreveu-se a fazê-lo, inclusive, com Stephen Hawking. Você é corajoso ou um visionário? Disse o homem do charuto.
Enquanto me afastava da porta, deixei o casaco sobre um cabide e procurando numa das prateleiras da estante, retirei um livro volumoso sobre perfis e disse para ele:
Se quiser aprender, posso emprestar-lhe um dos meus livros.
Não vim cá para perder tempo nem para receber aulas suas, apenas quero saber se você está qualificado para isso.
Para o quê? Perguntei, tentando descobrir mais alguma coisa.
Enganámo-nos, peço desculpa afirmou o homem, levantando-se.
Está a referir-se a você querer ver se sou capaz de lhe dizer, que apesar do seu sotaque fingido e das suas maneiras, aparentemente refinadas, não é nada mais, nada menos, do que o filho de um comerciante que lhe ensinou o mundo das palavras e do blefar, empregando um certo grau de teatralidade na forma como manipula o medo e o desconforto, deixando transparecer que é você quem domina a situação, quando, na verdade nem sequer faz ideia de como vou reagir. E que o seu suposto guarda-costas, não é nada mais do que o seu motorista, daí ter segurado a minha mão sobre a maçaneta com as duas mãos e não com uma, como seria de esperar de alguém robusto e acostumado a recorrer à violência. E que você, por exemplo, está demasiado bem-vestido para usar uns sapatos tão desgastados nas solas, e que o charuto que está a fumar nem sequer é importado, o que me indica que você viaja com frequência e que não lhe importa a qualidade, mas sim a utilidade das coisas.
E que mais? Perguntou o homem do charuto, sentando-se novamente no sofá do qual acabara de se levantar.
Está claro que precisam de mim para alguma coisa que vocês mesmos não estão qualificados a fazer, provavelmente para analisar alguém ou para lhes dizer se alguém é quem diz ser. E virem até aqui quer dizer que, ou estão muito desesperados, ou então não querem que ninguém saiba. E como já faz tempo que eu não me dedico a isto, ninguém iria suspeitar de mim.
Muito bem! Disse o homem enquanto olhava para o charuto com atenção. Tenho um pequeno problema e preciso da sua ajuda.
Não me parece que seja pequeno. Invasão, ameaças quando sair daqui terá muitos mais do que imagina.
Você ainda não foi aprovado! Respondeu o homem que permanecia sentado a fumar o charuto.
Aprovado? Perguntei admirado.
É para isso que aqui estamos disse o homem que estava a obstruir a porta do quarto.
Que mais é que sabe? Insistiu o homem que fumava.
Muito bem! Pelo que vejo, você deve ser uma pessoa importante, mas não é um político ou um empresário, já que o seu parceiro da porta o respeita tanto que nem sequer se atreveu a interferir até agora, e o fez com um tom de respeito e não como se fosse uma precisão às suas palavras. Poderia dizer que quase que o venera, como se faz a um guia espiritual ou a um professor.
Professor? Perguntou o homem do charuto, endireitando-se no assento.
Bom, isso é o que lhe chamariam agora, mas a forma correta seria Mestre eu disse com um tom burlão.
O que o fez chegar a essa conclusão? Questionou o homem ao levantar-se, deixando o charuto sobre a mesa onde estava o candeeiro.
Cuidado com a mesa! Falei ao tentar aproximar-me dela quando senti que alguém me detinha por trás, agarrando-me pelos ombros.
Responda à pergunta disse o homem que me agarrava por trás.
Está bem! Respondi em tom de protesto enquanto me abanava, tentando libertar-me. O que o denunciou foi a marca no seu dedo anular, que agora está sem nada, mas que ainda mantém a marca de um anel de tamanho considerável que usa habitualmente, tal e qual o de um bispo ou assim parecido. Mas você não usa roupa ampla que nem eles, porque senão sentir-se-ia desconfortável com esse fato de boa qualidade que está a usar. E também não tem nenhum sinal na cabeça por usar um solidéu cristão ou quipá judeu, nem nada que se pareça, tendo eu descartado a opção religiosa. Além disso, tem uma pequeníssima cruz octogonal de Malta, com as suas oito pontas vermelhas, na lapela do seu casaco, também conhecida como a cruz de São João, para que quem não o reconhecer possa parecer ser só mais um adorno, e inclusivamente, ser confundido com o escudo de algum clube de futebol ou de alguma ordem religiosa como a de Santiago, mas sem sombra de dúvida que é a Cruz de Malta.
Já esteve em Malta? Perguntou o homem ao olhar para aquele alfinete singular.
Sim, há muito tempo atrás, mas gosto de conhecer os lugares onde vou, sobretudo a sua história, e a de Malta era muito singular.
Singular? Perguntou o homem ao recostar-se no sofá e pegar no charuto para continuar a fumar.
Uns cavaleiros, pertencentes à nobreza europeia, exilados do seu destino, ficam confinados numa ilha, em terras adversárias.
Não é assim a história! Retificou aborrecido o fumador.
Eu sei, mas a sua expressão corporal ajuda-me a definir o seu perfil. E pelo que vejo, você já não é um cidadão dessa ilha, mas um descendente intelectual dos seus Mestres. E atrever-me-ia a dizer que talvez também possa ser genético.
Que importância é que isso tem? Perguntou, lançando lentamente uma baforada de fumaça.
A-há! Você é descendente direto de um dos Mestres do lugar afirmei convito.
As suas capacidades surpreendem-me. Indicou o homem, levantando-se do sofá. Para dizer a verdade, você é bem melhor do que eu pensava. Está aprovado!
Aprovado? Para o quê? Perguntei inquieto ao vê-lo aproximar-se de mim com o charuto.
Tenho três nomes e três destinos, está tudo nesta pasta. Quero um relatório de cada um deles, e gostaria de o ter até ao final do mês. Tenha uma boa tarde!
E dito isto, entregou-me a pasta, que não era pesada, e saiu do quarto seguindo aquele homem que o protegia, sem dizer mais nada. Deixando-me naquele quarto agora mais iluminado devido às luzes do corredor.
Ainda estava perplexo com o que se tinha passado, quando me voltei para lhes perguntar qual era o motivo daquele serviço, mas eles já tinham desaparecido no corredor e apanhado o elevador do qual eu tinha saído minutos antes.
A verdade é que eu conhecia muito mais da história de Malta do que tinha expressado, mas queria ver a sua reação diante de uma meia-verdade, a ver se aquela pessoa também sabia ou não.
Uma história extraordinária que começou há milhares de anos, mas que só alcançou o seu auge com uma decisão política de D. Carlos I de Espanha e V da Alemanha, que após receber notícias da derrota que a Ordem de São João tinha sofrido na ilha grega de Rodes pelas mãos dos Otomanos, permitiu que se instalassem numa pequena ilha, mais a sul do Mediterrâneo, como um ponto estratégico, uma vez que era a porta de acesso entre a Europa e África.
Desde então, todos os anos, em troca da sua cessão e como forma de reconhecimento pelo seu ato, os cavaleiros da Ordem de Malta deviam entregar, como tributo, o famoso Falcão Maltês.
Terra de pescadores que viu como a sua orografia se transformava num porto sem igual, agora convertido num centro comercial e religioso onde desembarcavam todas as maiores fortunas da Europa para ajudar na construção daquela que seria a maior fortaleza da história da época.
Uma ilha conhecida por se destacar pelas suas artes e avanços na medicina para onde os aspirantes a cavaleiros iam estudar e se formar. Tudo patrocinado e sustentado pelas casas reais europeias, que viam prosperar aquele pequeno lugar.
Mas aquilo não se tratava apenas de uma contribuição benéfica e altruísta que se realizava desde as monarquias europeias, pois desde que se instauraram na ilha, tiveram que fazer frente a todo o tipo de piratas e conquistadores que pretendiam apoderar-se das riquezas provenientes de África.
Mas os leais cavaleiros mantinham as suas águas limpas de ímpios e protegiam as mercadorias valiosas que cruzavam aquelas águas.
Um lugar desejado e temido ao mesmo tempo. Fortaleza de uma linhagem de cavaleiros, que se dizia serem descendentes dos cruzados que foram à Terra Santa.
A respeito disso, a realidade começava a confundir-se com a ficção. A tradição pretendia ressaltar a magnificência daqueles cavaleiros, com a indicação de que eram guardiões de grandes tesouros que acumulavam com receio, e até, que eram possuidores de relíquias provenientes da Terra Santa, entre elas, a mais valiosa o Santo Graal.
De qualquer forma, isso podia ou não ser verdade, já que foram tantos os lugares autoproclamados como possuidores temporários desta majestosa relíquia, que se tornava impossível saber a verdade.
Se tivesse tido mais tempo para trocar mais informação com este Mestre, com certeza que me poderia ter esclarecido acerca desta e de outras questões, que ainda hoje permanecem um mistério sobre as figuras míticas de uns homens tão valentes e engenhosos que foram capazes de deter o avanço das temidas tropas de Solimão, o Magnífico. Personagem na qual realizei uma das minhas análises de perfis psicológicos, tal como fizera com outros grandes nomes da história, como Napoleão I ou o próprio Alexandre Magno, mas que, pelo seu distanciamento ao longo do tempo, não pude recolher mais do que pequenas histórias soltas, que talvez fossem apenas os seus súbditos a ressaltarem as bonanças da sua imagem, ou dos seus adversários, contando o quão cruel e impiedoso ele era. Algo que me fizera optar por personagens mais recentes, onde constasse documentação e, inclusivamente, algo escrito pela própria pessoa. Desta forma, era-me mais fácil aproximar-me da sua verdadeira personalidade e descobrir quais eram as suas ambições, desejos e anseios, mas também o que temia e evitava. Já que, por natureza, não só nos movimentamos por aquilo que queremos como também para evitarmos o que tememos.