Estava transtornada.
Olhei a minha tia, ao meu lado, no banco posterior do carro, que chorava baixinho, repetindo continuamente: «Perdoa-me».
Pareceu-me entrar em transe, num estado de semiconsciência.
Todas as minhas certezas caíram por terra.
Passaram-se horas.
Permaneci naquele estado até chegarmos a Dublin ao final da tarde.
Lembro-me apenas que o carro parou mesmo em frente a um hotel, o Jolly Hotel.
O homem da receção nem nos perguntou pelos documentos, entregou-nos simplesmente as chaves dos quartos.
Eu e a tia fomos levadas para o quarto 112, enquanto o padre Dominick dirigiu-se sozinho para a porta 115.
O quarto era pequeno com papel de parede amarelo, tal como as cortinas e as cobertas.
Havia duas camas de solteiro. Sentei-me sobre a que estava ao fundo, perto da janela.
Posei a minha mala no chão e observei a estrada iluminada pelos postes de luz, no exterior da janela.
«Tens fome?» perguntou-me a tia, fazendo-me saltar de susto. Depois de me revelar que não era minha tia, não me tinha dirigido mais a palavra.
«Não, obrigada».
«Tens a certeza? Não comeste nada, nem mesmo no autogrill onde paramos para almoçar» mencionou preocupada.
Apeteceu-me perguntar-lhe porque se interessava tanto por mim, uma vez que eu não lhe era nada, mas não o fiz.
Abanei a cabeça.
Ambas sem jantar, metemo-nos por baixo dos cobertores, apesar de ainda ser muito cedo.
Não tinha sono nenhum.
A minha mente estava cheia de pensamentos, mas aquele que me martelava a cabeça era: a tia, ou melhor, a irmã Cecília.
Se isto for sequer o seu verdadeiro nome.
Passei uma hora a quebrar a cabeça à procura de um sentido, de uma lógica sobre todo aquele assunto.
Vinte e quatro horas atrás fazia zapping sentada no sofá da sala, enquanto a tia reorganizava a cozinha e agora estava numa cama desconfortadíssima, num quarto de hotel ridículo, com uma mulher talvez desconhecida.
Isto tudo não fazia sentido.
Quero de volta a minha casa e a minha tia.
Apercebia-me que tinha sido mais belo viver na completa ignorância e ilusão, do que ir de encontro à crua e injusta realidade.
Se o padre Dominick tentasse outra vez falar-me de justiça divina, comia-o vivo!
Todavia agora estava ali. Presa naquela absurda realidade, perto da pessoa que, até há bem pouco tempo atrás, adorava mais que tudo, enquanto agora temia não a conhecer realmente.
Não consegui mais estar calada.
«Porque tomaste conta de mim em todos estes longos anos?» perguntei-lhe muito baixinho.
Estava convencida que não tinha ouvido. Não porque dormia. Sabia que não dormia, uma vez que durante o sono ressonava imenso, mas sentia a garganta a arder e o peito pesado que me sufocava e as palavras saíram-me débeis e inseguras.
«Não o imaginas?» respondeu-me com a sua habitual e familiar doçura.
«Porque te ordenaram, certo?».
«Não, tolinha. Porque gosto muito de ti. Ainda que realmente não o sejas, para mim, és a minha menina. És a coisa mais importante da minha vida. Esperava conseguir comunicar-te tudo isto em todos estes anos juntas».
Sim, sabia que me queria bem. Sempre me ajudou nos momentos de dificuldade, esteve sempre pronta a apoiar-me e nunca me fez faltar nada, apesar das diversas restrições económicas. Em tudo o que fazia, demonstrava o seu amor por mim e eu sempre me apercebi disso e recebi-o de braços abertos.
Tinha sido uma mãe, mas também uma amiga, uma vez que por causa da minha saúde, nunca consegui fazer amigos. Todos os meus companheiros sempre foram desconfiados em relação a mim, por viver com uma tia e estar frequentemente doente, para além de ser a inimiga número um de Patty Shue, a amiga número um de todos os outros.
«Sei que me queres bem e também eu te quero bem, mas todas estas novidades fizeram curto-circuito no meu cérebro. Não sei mais quem sou, quem tu és...» desabafei.
«Tens razão. Quis dizer-te a verdade tantas vezes, mas a Ordem proibiu-me terminantemente».
«Podias ter-me dito às escondidas. Fazia de conta que não sabia de nada com o padre August e Dominick».
A tia começou a rir.
Também eu sorri e percebi que tudo tinha ficado como antes.
Cecília era sempre a minha querida tia, que escutava as minhas tontices e se ria delas.
«Escuta, Vera. Tenho muita pena de não te ter dito a verdade, mas fi-lo para o teu bem. Prometo-te que quando encontrarmos o cardeal Siringer, lhe pedirei autorização para te contar toda a verdade. A este ponto, é justo que saibas a história completa» disse a tia muito séria.
«Pois, ainda devo saber quem me quer morta» tentei desdramatizar.
«Nunca permitirei que te façam mal» afirmou determinada.
Naquela noite, a tia não me quis dizer mais nada.
Continuamos a falar toda a noite, mas acerca da nossa antiga vida na quinta, procurando consolo ao menos nas recordações.
ENCONTRO
Na manhã seguinte, a tia e eu levantamo-nos com uma grande fome e um sono terrível, todavia tínhamos todos os sentidos alerta.
Enquanto mudávamos de roupa para descer ao restaurante do hotel para o pequeno-almoço, continuávamos a olhar a porta com medo de vê-la arrombada pelo padre Dominick, devido à enésima tragédia ou a uma nova inesperada fuga.
Quando estávamos prontas para descer, a tia abriu a porta e encontrou diante de si um daqueles dois homens que estavam vestidos de preto, que nos tinham acompanhado a Dublin.
Quando chegamos ao restaurante do hotel para o pequeno-almoço, a tia explicou-me que aqueles dois homens foram escolhidos para defender-me de ataques da parte deles.
«Eles quem?».
«São pessoas devotas ao mal e à obscuridade, prontas a sacrificar a vida dos demais pela deles» explicou rapidamente a tia, adicionando o seu toucinho ao bacon.
«Isso não é instinto de sobrevivência?» perguntei desorientada.
«Não, no caso deles...de qualquer forma agora come» ordenou-me a tia.
Eu tomei um grande pequeno-almoço, mas antes de acabar, chegou o padre Dominick com o rosto tenso e exausto.
Não tinha fechado os olhos toda a noite.
«Bom dia» cumprimentamo-lo.
«Bom dia. Como estão?».
«Cansadas» sussurrou a tia.
«Também eu. Estou de rastos. Para além disso, acabei de receber um telefonema do cardeal Siringer. Temos encontro marcado por volta das três horas, na velha abadia St. George Abbey, nos arredores de Dublin».
Foram as três horas mais longas da minha vida.
Eu, a tia e o padre Dominick estivemos confinados no nosso quarto, com os dois capangas à porta, até à hora marcada.
No quarto não havia nem um televisor para se distrair e a tia e o Dominick mencionavam apenas pessoas das quais eu nunca tinha ouvido falar, que talvez estivessem presentes naquele encontro.
Por fim, deitei-me na cama a pensar, mas a minha mente estava demasiado cansada e afetada por todos aqueles acontecimentos para poder raciocinar claramente.
Adormentei-me ligeiramente e quando reabri os olhos, lá fora chovia a cântaros. Adorava chuva, mas naquele momento só serviu para tornar mais deprimente o pensamento acerca do encontro que iria ter daí a pouco tempo e que certamente mudaria o meu destino para sempre.
Arrastei-me com relutância para a porta, onde dois homens estavam à nossa espera. Escoltaram-nos até à BMW preta que nos levaria a St George Abbey.
Estava um ar húmido e sentia o frio penetrar-me até aos ossos.
Não consegui acalmar o tremor nem mesmo dentro da cabina aquecida do carro.
Meia hora depois estávamos em frente a um edifício de pedra muito velho. Acompanharam-me a uma porta secundaria que conduzia a uma escada. Fiquei curiosa quanto ao piso inferior, imerso na escuridão, do qual se ouvia o som da água que corria. Tentei aproximar-me, mas o padre Dominick empurrou-me para subir ao piso superior.
Olhei-o desconfiada e ele explicou-me brevemente: «Velha cripta em desuso».
Percorremos um longo corredor antes de chegar a uma porta.
Os dois homens pararam.
«Este é o escritório do abade Kirk, membro da Ordem. Entrem. Nós ficaremos aqui de guarda» disse o mais alto, posando a mão sobre o coldre da sua arma, que eu nem tinha notado antes.
Em vez de tranquilizar-me, aquele gesto fez-me entrar em pânico.
Até ali não me tinha dado conta do quanto pudesse estar em perigo.
Entrei naquela majestosa sala com o coração que me batia ferozmente no peito.
No interior estavam cinco homens.
Da roupa, percebi imediatamente que, o que estava sentado na grande secretária, que ocupava quase toda a sala, era o cardeal Siringer. À sua esquerda estava o padre August, que me cumprimentou apenas com um aceno de cabeça e, perto dele estava a enorme figura de um homem grisalho, que o olhava de um modo mais que insistente. Posteriormente, foi-me explicado que se tratava do abade Kirk.
À direita do cardeal estavam outros dois homens musculados e robustos, idênticos àqueles que nos acompanharam até ali.
Depois das diversas formalidades, o cardeal dirigiu-me o seu olhar cinzento serpentino e com uma voz ácida e fria, como a temperatura daquela sala, disse-me: «E assim, és tu a famosa Vera Campbell em carne e osso... Espero que te dês conta da situação».
«Na verdade, eu...».
Não tinha a mais pequena ideia do que estava a acontecer, mas o cardeal já se tinha voltado para a tia e o padre Dominick, para explicar-lhes a atual situação.
«O cardeal Montagnard foi morto com um golpe de pistola para despistar-nos, mas é óbvio que foram eles. Deve haver um espião entre nós... algum dos novos membros da Ordem, suponho. Quem quer que tenha sido, deve ter dito ao grupo do Blake que estávamos na posse de uma arma para derrotá-lo e ao seu grupo de mercenários. Uma vez na posse desta informação, começaram a mexer-se a investigar. Alguns meses atrás, encontramos alguns membros da Ordem torturados e assassinados, mas nenhum de nós pensou em algo do género, até que as fontes secretas do padre August contaram-nos o que tinha acontecido. Ao que parece estavam convencidos que esta arma era um objeto e começaram a procurar no interior das nossas sedes, mas sem resultados, até que alguém mencionou o nome do cardeal Montagnard, como o guardador de tal segredo. Só o Blake seria capaz de usar entrar em terra consagrada devido aos seus grandes poderes, mas nunca pensei que chegaria a tal ponto. Provavelmente descobriu que esta arma era indicada principalmente contra ele, por isso tentou destruí-la de todas as formas. Quando encontrou o cardeal deve ter descoberto que este instrumento era uma pessoa e não um objeto. Infelizmente, ninguém viu ou ouviu nada para além do disparo, o seu escritório e as suas salas privadas estavam organizadas, por isso partimos do princípio de que o cardeal Montagnard tenha falado».
«Não acredito. O cardeal Montagnard nunca iria colocar a vida da Vera em perigo» interrompeu-o a tia com a máxima indignação.
«Lamento dizê-lo, mas o cardeal tem que ter confessado, uma vez que esta noite Blake e os outros invadiram a quinta que vos tínhamos concedido para esta missão» revelou o cardeal Siringer com uma voz estrondosa que não admitia replicas.
«O Ahmed!» gritei temendo o pior para aquele que considerava como parte da minha família.
«Não te preocupes. Ele também está em Dublin, neste momento. Esta manhã, as minhas fontes informaram-me que reservou o voo para a Tunísia, previsto para esta tarde. Coloquei um homem nosso a protegê-lo» assegurou-me sem, contudo, suavizar o seu tom de voz.
Agradeci-lhe.
Depois, voltamos ao assunto anterior.
O cardeal Siringer tranquilizou-se e revelou-nos a última descoberta.
«Não sabemos como aconteceu, mas desapareceu toda a documentação acerca da Vera e das suas origens. Alguns dias antes, o cardeal Montagnard contou-me que tinha feito uma descoberta extraordinária que colocaria todos os trunfos da nossa parte.
Tínhamos marcado um encontro para a semana seguinte para falarmos disso pessoalmente. De qualquer forma, o cardeal antes de morrer, conseguiu escrever um bilhete que está a ser analisado neste momento. Acreditamos que esconde uma mensagem em código ou uma indicação particular, mas até agora não foi possível descobrir nada.
«O que dizia a mensagem?» perguntou a tia triste.
«Estava escrito exatamente isto: O amor gera novo amor. Só isto pode salvar da condenação».
Olhamo-nos todos um pouco atordoados.
Com todas as coisas que podia escrever nos últimos instantes de vida, escolheu uma frase bastante óbvia. Era um típico ensinamento de catequese. Lembrava-me tanto os ensinamentos do padre Dominick. Ele dizia-mo frequentemente.
«Mais nada?» tentou perguntar a tia.
«Não, com exceção a alguns papéis relacionados com árvores genealógicas de famílias de origem humilde que trabalhavam na mina, que ressaem a quatrocentos anos atrás».
Entre eles caiu o silêncio, mas antes que o cardeal abrisse novamente a boca, quis aproveitar para clarear as ideias de uma vez por todas.
«Desculpe-me, mas quem são eles? Não posso acreditar que tudo isto esteja a acontecer por minha culpa» perguntei timidamente ao cardeal.
Este último ficou todo vermelho e lançou um olhar furioso à tia e ao padre Dominick.
«Não sabe de nada? Mas como puderam esconder-lhe que existe um grupo de vampiros que está a revirar a cidade à procura dela para matá-la!».
Vampiros? Talvez percebi mal, mas não usei repetir aquela palavra para não ser ridicularizada.
«Um grupo de?» perguntei novamente, procurando o olhar da tia, que teimava em fixar a ponta dos seus pés com um ar culpado.
«Vampiros! Tens presente aqueles homens que rejeitam a graça divina para ressuscitar e nutrir-se de sangue humano?» gozou o cardeal, ao ver a minha expressão mista de descrença e medo.
Naquele momento, tentei lembrar-me de todos os vampiros que tinha visto na minha vida na televisão, mas não me vinha à mente nada a não ser um desenho animado que eu via aos sete anos, no qual o protagonista era um fantoche vampiro covarde, mas com um coração bom.
Duvidava que os vampiros de que me falava o cardeal fossem semelhantes ao fantoche.
«Não sabia que existiam realmente» gaguejei.
«Ninguém o sabe, porque a Ordem da Cruz Ensanguentada tem precisamente o dever de manter escondida esta realidade. Todavia existem e como! É muito difícil encontrá-los porque podem transformar-se noutras criaturas e têm uma força sobrenatural. É impossível matar ou capturar um deles, sem primeiro enfraquecê-lo com água benta ou prata...».
«Mas então para que servem as armas que tinham os dois homens que nos acompanharam até aqui?» perguntei.
«Os nossos guardas possuem armas muito especiais, carregadas com projéteis de prata pura» explicou-me orgulhoso.
«E depois?».
«Depois queimamo-los».
«E este Blake, porque é considerado tão perigoso?».