A versão resumida era que os caídos quase tinham destruído o seu próprio mundo ao invadir a nossa dimensão e roubar algumas das nossas mulheres, só porque achavam que elas eram lindas. Roubar humanos ainda só tinha sido o seu primeiro erro. Uma vez chegados ao outro lado do buraco de minhoca, os caídos tinham feito turnos a procriar com as mulheres roubadas.
O problema é que as crianças que nasceram dessas uniões não eram o que eles esperavam e o nascimento matava sempre as fêmeas humanas.
Apenas uma pequena percentagem das crianças nasciam caídos de sangue puro e apenas uma em várias centenas era fêmea. O resto eram demónios híbridos que não sangue puro de nada. A maioria dos híbridos era aquilo a que os humanos chamavam de monstros. Quando esses monstros se viraram contra os seus próprios criadores, os caídos começaram a erradicar todos os híbridos do seu mundo, quer eles fossem monstros ou não.
Uma vez acabado aquele genocídio, perceberam que agora tinham dezenas de machos para cada fêmea no mundo. Por isso, os idiotas tinham voltado pelo buraco de minhoca, desta vez mantendo as suas criações do nosso lado, ao mesmo tempo que acasalavam com o máximo de mulheres que podiam, o mais rapidamente possível.
À medida que as crianças nasciam e as mães morriam, os caídos recolhiam os caídos de sangue puro e levavam-nos para o seu mundo, deixando para trás os híbridos. Como não precisavam das crianças do sexo masculino que nasciam, treinavam-nas para lutar contra os seus irmãos mestiços.
Mesmo antes desses rapazes chegarem à puberdade, os líderes dos caídos enviaram-nos de volta para cá e fecharam o buraco de minhoca entre as duas dimensões, encalhando todas as crianças aqui, à exceção das fêmeas caídas, por quem tinham sacrificado tantas vidas.
A história não acabava ali. Esses jovens guerreiros tinham sido treinados para fazerem a mesma coisa que os seus pais tinham feito rasgar aberturas para a dimensão vizinha, desde que não fosse aquela que levava ao seu mundo de origem. Esse novo mundo existia tão próximo de nós que ficava apenas a um piscar de olhos de distância. Seria de presumir que fora daí que surgira a teoria sobre o Inferno. Tão perto que alguns humanos com sentidos mais apurados podiam por vezes vê-lo e senti-lo.
Ao procurarem os híbridos, os guerreiros descobriram que muitos dos seus rivais eram tão poderosos como os caídos de sangue puro. Houve derramamento de sangue de ambas as partes e também foi documentado que alguns dos caídos foram arrastados para a dimensão alternativa com os híbridos.
As grandes mentes por trás desses assassinatos que tinham enviado para cá os seus filhos sabiam que era uma sentença de morte. Tinham planeado que os seus descendentes se matassem entre si e limpassem a desordem que eles tinham deixado para trás.
Apenas uma mão cheia desses rapazes ainda deambulavam pela terra e a maioria era mais nova que a primeira remessa, tendo chegado depois do rescaldo da guerra e dos híbridos se terem dispersado. Na opinião de Ren, era aqui que as coisas se complicavam. Nem todos os híbridos eram propriamente demoníacos. Se não fossem detetados, poderiam misturar-se com os humanos e os animais, uma vez mais reproduzindo-se durante mais de um milénio.
O grande segredo que Storm tentava proteger era o facto de a maioria das criaturas, metamórficos e lobisomens, ou humanos com a mais pequena capacidade anormal, serem muito provavelmente descendentes de um desses híbridos, incluindo os poderes de súcubo que ele próprio usava para os encontrar e enfrentar. Ren ainda se sentia incomodado com a ideia de ele próprio ser parcialmente híbrido.
Em sua defesa, Ren tinha quase a certeza de que os demónios que matara no passado não tinham qualidades de redenção, ou então poderia sempre alegar autodefesa, porque eles tinham certamente tentado matá-lo.
Para tornar tudo ainda pior, Storm ainda tinha largado a bomba de que alguns híbridos originais não eram maléficos, embora transmitissem a mesma aura que um demónio de alto nível. E se isso não lhes desse dores de cabeça suficientes, ainda se juntava o facto de um vampiro nem ser de todo um híbrido, mas algo totalmente diferente que tinha invadido a terra.
Ren esfregou a têmpora esquerda enquanto olhava para o mapa de grelha. Todas as zonas que encontrara onde sentira um aumento de poder estavam iluminadas com uma luz negra e, tendo em conta que Misery nunca ficava no mesmo lugar, constituíam a maior parte da cidade. Porém, considerando que ela tinha um fetiche por vampiros sem alma, ele só a podia deixar reclamar zonas próximas do ninho dos vampiros.
Isso deixava muitos poderes por enumerar e algures pelo meio deles estava a razão para a profecia sangrenta de Storm. Por falar em Storm, já não o via desde que tinha levado os seus poderes divinatórios de volta para a ilha e até agora ainda não tinha aparecido ninguém que pertencesse à equipa PIT.
Ren esboçou um sorriso afetado, sabendo exatamente como atrair a atenção de Storm. Estava tão sintonizado com o sistema informático de alta tecnologia que já não tinha de fazer mais nada a não ser estar na mesma divisão em que ele estava. Observou o ecrã do computador a piscar enquanto se ligava ao sistema principal da PIT, depois introduziu o mapa de grelha por entre as densas firewalls que apenas ele e Storm conseguiam contornar.
Geralmente, apenas esperava alguns minutos até Storm responder ou aparecer, por isso quando os minutos foram passando sem resposta, Ren ficou preocupado. Depois o ecrã piscou.
Storm surgiu no ecrã para que Ren o visse e baixou um pano manchado de vermelho do seu nariz, antes de se reclinar na cadeira e sorrir para Ren através da webcam.
Ren franziu o sobrolho perante a cena e reparou que Storm estava em casa, na ilha. Estou surpreendido por não teres aparecido em pessoa, mas realmente parece que andaste outra vez a quebrar as regras censurou Ren, com uma sobrancelha levantada.
O fluxo de tempo na tua zona está a impedir-me de saltar e a dar-me uma dor de cabeça do caraças. Storm explicou-se segurando no lenço ensanguentado no punho.
Então pára de tentar retorquiu Ren.
Storm acedeu Vamos ter de nos manter em contacto desta forma até as coisas acalmarem um pouco do teu lado. Por agora, vais ter equipas PIT a chegar e está na altura de aprenderes a trabalhar com eles para o bem de todos. Já que tens memória fotográfica e já leste os ficheiros deles, de certeza que vais saber mais sobre eles do que eles sabem sobre eles próprios.
Então vais finalmente pôr-me no meio de um monte de pessoas com poderes? Isso será uma jogada inteligente? E se eu não me conseguir controlar? Ren fez a pergunta desagradado com a ideia de trabalhar com mais alguém para além de Storm.
Storm sorriu e encolheu os ombros A prática leva à perfeição, Ren e tu estás prestes a ter um curso intensivo sobre interação humana. O Zachary e a Angelica vão mudar-se para aí para poderem aceder ao banco de dados e a todo o equipamento que guardei no castelo. Também vão tratar da maioria das equipas PIT que vão chegar aí. Quanto a ti, o teu trabalho é tentar descobrir o que raio é que está a provocar o fluxo de tempo e a barrar-me o acesso à zona.
Fez uma pausa de alguns segundos antes de se inclinar na direção do ecrã. Tens gente à tua porta.
O vídeo perdeu a ligação subitamente, deixando Ren a olhar para o ecrã com ar surpreso. Uma batida forte na porta fê-lo olhar para a entrada e depois de volta para o ecrã vazio.
Detesto quando ele faz isto. Ren resmungou e levantou-se da cadeira, pegando nos óculos de sol para esconder os olhos.
Passando pelas portas duplas abertas que levavam ao hall de entrada, Ren abriu a porta e fitou os seus visitantes, que viriam a ser os seus colegas de casa.
Detesto quando ele faz isto. Ren resmungou e levantou-se da cadeira, pegando nos óculos de sol para esconder os olhos.
Passando pelas portas duplas abertas que levavam ao hall de entrada, Ren abriu a porta e fitou os seus visitantes, que viriam a ser os seus colegas de casa.
Zachary sorria enquanto olhava para o homem do outro lado da entrada. É bom finalmente conhecer o verdadeiro ás na manga de que o Storm fala desde que o conheço.
Ren rangeu os dentes, mas aceitou a mão estendida de Zachary e acenou a Angelica antes de se afastar para o lado para os deixar entrar. Conhecia todas as caras do elenco da PIT e quais eram os seus dons. Tinha feito questão de memorizar os perfis de todos os membros da PIT pouco depois de Storm o ter acolhido.
Storm tinha adicionado notas à versão bloqueada dos perfis, que Ren transferira mentalmente também. Storm tinha razão provavelmente sabia mais sobre eles do que eles sabiam sobre eles próprios.
Zachary era um miúdo meio rebelde, com o que Storm tinha descrito como uma dupla personalidade num minuto, Zachary estava a brincar e no seguinte já era capaz de ser tão mortífero como uma cobra assanhada. Tinha visto notícias sobre o incêndio que destruíra a casa de um barão da máfia há uns tempos atrás e toda a situação tinha o nome da PIT, mais especificamente do Zachary, muito bem estampado. Na manhã seguinte, Zachary submetera o relatório no sistema da PIT e confirmara as suspeitas de Ren.
O poder de Angelica era um pouco mais complicado, sendo capaz de matar demónios usando a magia com que tinha nascido. Uma vez, Storm referira-se a ela como a chave, mas nunca disse o que é que ela abria.
O ficheiro dela era o maior de todos, como se Storm tivesse documentado todos os movimentos dela desde a nascença. Ren não percebia porquê, mas de momento também não queria saber. Sem uma palavra, fechou a porta e dirigiu-se à divisão que servia de escritório. De alguma forma sabia que o iriam seguir.
Então disse Zachary ao fim de menos de um minuto de silêncio incómodo Gostas de viver aqui sozinho?
Não disse Ren. Tenho novos colegas de casa.
Angelica esboçou um sorriso ao ver a expressão perplexa que surgiu no rosto de Zachary. Acho que ele está a tentar quebrar o gelo.
Não está a correr muito bem respondeu Ren, sentindo-se já apertado.
Eu sei admitiu Angelica. Reconhecia um tipo solitário quando o via.
Zachary dirigiu um olhar de gozo a Angelica. Ei, era suposto estares do meu lado.
Porquê? Angelica riu. Acredites ou não, alguns de nós podem passar dias de boca fechada. Já tu É uma grande sorte passar dois segundos sem te ouvir a tagarelar sobre qualquer coisa.
Também sei ficar calado! Zachary exclamou. Vais ver!
Zachary começou então a esticar-se no sofá e cruzou os braços sobre o peito, com os lábios comprimidos numa linha fina. Angelica revirou os olhos antes de se levantar para ver melhor o sistema informático que Storm tinha criado.
Ren observou-a de perto, pronto para responder a quaisquer questões que ela pudesse ter e olhou de relance para Zachary. Por algum motivo, o outro homem tinha encontrado algo muito fascinante nos botões da sua camisa. Ren fez uma contagem mental de cinco para um antes de ocorrer a inevitável explosão.
GAH! Zachary gritou. Não aguento isto.
Ren riu-se, fazendo com que Angelica e Zachary olhassem para ele com surpresa. Não durou muito e Ren passou a mão pelo cabelo antes de receber os outros. Estejam à vontade para explorar o castelo, há imensos quartos. disse ele assim que os vestígios de humor desapareceram do seu rosto.
Angelica acenou Vou buscar a minha mala.
Quando ela saiu, Ren olhou para Zachary e deu por si frente a frente com o outro lado da sua personalidade borbulhante. Estou curioso. Quais são os teus poderes?
O teu Ren esboçou um sorriso afetado e o da Angelica e o de qualquer pessoa que estiver ao alcance do meu súcubo.
Zachary virou a palma da mão para cima e abriu-a, visivelmente satisfeito por ainda ter os seus poderes.
Eu não disse que retirava o teu poder Ren encolheu os ombros, recusando-se a fazer truques de cortesia para demonstrar o que estava a dizer. Fixou o olhar nos olhos de Zach e viu o homem perturbado por trás da máscara. Ao aproximares-te de mim, estás a dar-me o mesmo poder afirmou ele para ser mais claro.
Eu tomo conta da Angelica enquanto ela estiver aqui anunciou Zach do nada.
Eu não sou ama de ninguém, podes tomar conta de toda a gente que aparecer corrigiu Ren. Não é esse o meu trabalho.
Zach acenou como se tivesse acabado de ganhar uma guerra de estratégia "Eu sei que o Storm está a reunir um exército."
Ren assentiu Sim.
Ele vai precisar Zach esfregou as mãos nas pernas e levantou-se. Quem mais é que ele chamou para isto?
Tanto quanto sei, quase toda a gente respondeu Ren. Mas há alguns que ele não conseguiu localizar.
Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? Perguntou Zach.
Ren fez um gesto com a cabeça na direção do computador. Encontra aqueles que o Storm não conseguiu encontrar. Ele fez uma lista de todos os que ainda estão desaparecidos em combate.
Zach sorriu e caminhou na direção do computador. Vejamos quem é que o todo poderoso não encontrou.
Ren observou, completamente fascinado com a sua total mudança de atitude. Não sabia de que lado gostava mais mas sabia em qual é que confiava mais.
Capítulo 4
Angelica deitou-se na cama com um par de almofadas apoiadas contra a cabeceira da cama para tentar evitar dormir, o seu novo passatempo favorito. Assim que voltou para dentro com a sua mala, percebeu que Zachary tinha ligado o interruptor com Ren, pois este estava sentado no sofá a observá-lo. Zachary tinha-lhe dito para escolher um quarto e dormir um pouco, por isso ela tinha alegremente fingido fazê-lo.
Tinha percorrido os longos corredores durante alguns momentos antes de escolher aleatoriamente uma porta e abri-la. Ao ver o interior, sorriu e pousou a sua mala na cama. O quarto estava decorado em tons de roxo com detalhes dourados e em tons mais claros de lavanda.
A cama era enorme, provavelmente de tamanho imperial, com um belo dossel, almofadas decorativas em tons de dourado e lilás e um edredom. Os lençóis e as fronhas eram em tom de lavanda e quase que se riu das pequenas borlas douradas nos cantos das almofadas.
Havia um grande armário no lado oposto do quarto. Quando o abriu, esperava vê-lo repleto de vestidos de baile antiquados. Para sua desilusão, estava vazio. Na parede oposta à da cama, havia um antigo toucador com um espelho enorme.
Junto à cama, havia uma escrivaninha com algumas canetas e uma pilha de papel, juntamente com uma nota a informar que a porta de dados para o seu portátil estava junto à parede por baixo da secretária. Angelica quase se rira ao ler isto e dobrou-se para espreitar. Viu logo o ponto de acesso e imediatamente retirou o seu portátil e ligou-o.
Da sua posição preguiçosa na cama, tinha uma vista perfeita através das portas da varanda para o luar refletido no oceano. Sorriu, pois era uma varanda mesmo fantástica.
A maioria das pessoas que a conhecia acharia que ela não era dada a essas coisas femininas. Mas todas as meninas têm a fantasia de serem princesas num castelo e ela não era exceção. Até costumava fingir que era a Cinderela ou a Bela Adormecida, esperando que o seu príncipe chegasse e a levasse para longe.