Eis o bisbilhoteiro Son House à época dos factos
O boato circula e a lenda do pacto com o diabo ganhou imediatamente forma: enfim foi o mesmo Robert Johnson a fixá-la definitivamente exprimindo-o na sua CROSSROAD BLUES. Depois, como acontece nestes casos, a lenda espalhou-se mais rapidamente do que ele e talvés o absorveu, transformando-o num artista querido e danado destinado (como depois foi) para uma intensa e curta vida de sucessos e para uma morte dramática e repentina. E Zimmerman em tudo isto... que parte teve?
Encontrei muitas noticias sobre ele... numa rádio de Alabama, que entrevistou à filha dele alguns anos atrás, na ocasião da reivindicação de alguns trechos do pai pois publicados por Robert Johnson. A imagem que aparece é bem diferente daquela que se encontra por aí!
Isaia " Ike " Zimmerman(mas o apelido originário parece ser Zinnerman) nasceu em Grady, em Alabama, em 1907. Embora desenvolveu cedo o amor pela música é forçado a trabalhar desde criança como agricultor na pequena firma familiar. No tempo livre lhe agradava contudo pôr-se a andar tocando por aí nos bares e parece que em Montgomery fosse muito conhecido. Nesta alegre vila terá como mulher uma certa Ruth, que era uma cozinheira num
Dos melhores hotéis do sítio. Com ela se transfere para um lugar chamado The Quarters, em Beauregard Road.
É interessante notar como o pequeno aglomerado de 6 casas residisse concretamente ao lado de um cemitério e que a casa de Ike se encontrasse na boca de um cruzamento, como narra a filha. Aqui a pequena família alarga-se, ele acaba por mudar de trabalho mas não perde por ventura a paixão pelo blues que, como sempre, não é bem visto pela gente do sítio. Todavia é muito ágil não só com a guitarra mas também com outros instrumentos, e também bom maestro e parece que a um certo ponto tenha começado a deliciar-se no ensinamento da guitarra às mulheres! Mas um motivo de contraste com a pequena comunidade, se pensarmos que nos primeiros anos 20 a sociedade, seja negra como branca, não via com bons olhos que as mulheres se aculturassem. Porém imaginemos a tocar o blues!
Zimmerman acaba desta forma a dar aulasnos cemitérios, e não só naquele de Beauregard decerto em todos aqueles da zona, já que ia com frequência passeando. O porquê desta medonha escolha e muito simples: tratava-se de lugares sagrados, tranquilos e um pouco fora de mão, lugares em que nem a mais excitada cabeça quente do subúrbio teria ido com invectivas ou pior. Com o tempo, a figura de Ike vem absorvida e tolerada e começou a fazer parte da paisagem. As suas breves incursões o levaram a Martinsville, onde habitava o irmão Herman e onde ele fixava-se muitas vezes num bar na época chamado ONE STOP porque toda a zona tinha uma única paragem de autocarro. Exactamente aqui acontece o fatídico encontro entre Zimmerman e Johnson.
Ouvindo os testemunhos Robert estava sem um tostão e fixava-se no bar para restaurar-se e tocar um pouco. Os dois simpatizaram de imediato e Ike convidou o rapaz sem dinheiro, que demonstrava um grande amor pela guitarra e uma forte vontade de aprender a tocá-la, para a sua casa. Johnson aqui fica um ano inteiro. Toda a família Zimmerman afeiçoa-se pelo rapaz e as crianças brincam com ele. À noite reuniam-se todos à volta da fogueira para tocar baladas tradicionais ou mesmo algumas canções típicas da família zimmerman. Ouvindo os testemunhos dos filhos, parece que as famosas Ramblin' on my mind e Come on into my kitchen, publicadas por Johnson, eram na verdade canções compostas por Ike cujo depois Johnson apoderou-se.
Seja como for os dois empenhavam-se muito: no sábado e no domingo subiam a pé ao longo de uma rua terraplanada através dos bosques, atravessavam um cruzamento (!) e depois encaminhavam-se à direita para entrar num cemitério onde se exercitavam tocando, seja de dia como de noite. Ou melhor, muito de noite, visto que o bom Ike de dia trabalhava como operário para sustentar a família! Às vezes Robert voltava ao encontro da mulher Callie... mas para brevíssimas pausas. Além da guitarra parece que Zimmerman o tenha ajudado a afinar a arte da gaita-de-beiços e que tenha sido co-autor de muitas canções entre as quais depois foram gravadas pela Okeh, alguns anos depois.
Pouco tempo depois começaram a exibir-se em duelos musicais em toda a zona Juke e Martinsville: desafiavam-se em toques de guitarra no meio das ruas e no fim partiram para Texas, onde os seus caminhos separaram-se. Robert voltou para o norte para espantar os seus colegas músicos com as adquiridas habilidades, e Ike depois deixou Beauregard para transferir-se com a família antes para Los Angeles e no fim para Compton, na Califórnia, onde empreendeu uma actividade pastorícia. Não parou por acaso de tocar o blues e morreu tranquilamente na sua cama em 1974.
Uma raríssima foto de Ike Zimmermann quando fazia-se de mentor ao jovem Johnson.
Tudo aqui? E então, o Pacto com o diabo?
Digamos que, se mesmo não queremos trazer à baila o pobre DOCTOR FAUST, a ideia de vender a própria alma ao Maligno é história antiga! Toda a tradição Afro-Americana e também aquela Europeia está repleta de referências a esta prática; basta recordar o famoso conto de Irving WashingtonO diabo e Tom Walkerde 1824, ou então ODiabo e Daniel Websterde Stephen Vincent Bennet de 1936. E o que dizer de uma dos ilustres predecessores de Robert Johnson, o músico negro TOMMY JOHNSON que, triste e alcoolizado e na esteira do outro tanto arrasado CHARLIE PATTON, passeava por aí ao longo do Mississípi gritando a sua BIG ROAD BLUES?
E se decerto queremos dizer a verdade, não foi ainda Son House a sublinhar a familiaridade entre a história de Robert Johnson e aquela do bluesman de St. Louis PEETIE WHEATSTRAW, que se autoproclamava filho legítimo de Satanás? enfim, se nós queremos
Chegar às histórias de casa nostra, o que é que acham de Nicolò Paganini e de muitos seus trechos que se dizia de lhe terem sido ditados pelo demónio?
Em suma, fazer de um adquirido talento nato por uma dura dedicação e por uma predisposição inata uma lenda, e acrescentando pormenores inventados por cima por vanglória da parte de Robert Johnson e ampliar esta imagem por puros objectivos comerciais da parte das editoras que o produziram, não foi difícil. Pena que depois o músico DANADO se tenha engasgado sozinho alimentando as suas fábulas!
Aqui está o Tommy Johnson, o primeiro filho do Diabo dos pântanos do delta. Todavia a figura deste músico alcoolizado não criou problemas à comunidade negra da época: por quê? Veremos a seguir.
Aqui está o Tommy Johnson, o primeiro filho do Diabo dos pântanos do delta. Todavia a figura deste músico alcoolizado não criou problemas à comunidade negra da época: por quê? Veremos a seguir.
De todas as formas, o seu comportamento não era certamente edificante: entretendo-se em felizes encontros sexuais com a senhorita Virginia Mae Smith certamente dois meses depois da morte da sua pobre mulher, grávida esta de um filho que nunca quis reconhecer e fugido secretamente para casar-se com a abastada e várias vezes divorciada Callie Craft, dez anos mais grande, por únicos motivos económicos, disseminava por toda a parte rancores, discórdias e corações partidos.
Diferentemente de muitos bluesman que se metiam na cama de qualquer uma com o único objectivo de obter quaisquer trocados, uma garrafa e um pouco de calor, Robert Johnson explorava os seus dotes amadores com o cálculo preciso de um homem de negócios, vendendo-se a quem oferecia mais. Não considerava descabido deixar-se sustentar por mulheres idosas e endinheiradas, que sucedia, usufruia e muitas das vezes maltratava, para no fim abandoná-las quando encontrava o melhor. O seu segundo casamento acabou... quando Callie adoeceu (alguns dizem que por um aborto ou um filho nascido morto) e era necessário estar ao lado dela. De noite até ao amanhecer Robert a deixou para acompanhar-se nas suas incursões a uma estrelinha de passagem
Entre 1932 e 1933 o encontramos muitas vezes em viagem: pedia boleia ou subia nos comboios como clandestino, e as vezes apanhava o autocarro. Durante um breve período estabeleceu-se em Helena, em Arkansas, iniciando a ser sequaz entre os músicos do local como Howlin' Wolf, Honeboy Edwards, Memphis Slim, Robert Nigthawk, Sonny Boy Williamson, só para citar alguns. Travou também uma relação (outra vez?) com a linda Estella Coleman, ajudando depois o filho dela, o futuro bluesman Robert Lockwood Jr. a seguir o caminho para o sucesso.
Mas o seu companheiro preferido de peregrinação foi Johnny Shine, com o qual chegou até em New York e em Canada.Encontramos dados desta sua preferência numa foto que remonta talvés a 1933 e que deu a volta ao mundo como a terceira foto desconhecida do grande Robert Johnson
Um já idoso Ike Zimmermann em 1974, dois meses antes da sua morte.
O MISTÉRIO NUMA FOTO
Da poeira a Ebay
A história desta foto é extremamente singular: descoberta por acaso em Ebay em 2007 por um coleccionador, publicada na revista Vanity Fair em Novembro de 2008, foi enfim autenticada em Janeiro de 2013 depois de longas e atentas dissertações na sua originalidade. O que deixava duvidar, a parte a expressão do jovem Robert que aqui não parece ter precisamente NADA de demoníaco, é que os botões do casaco de Shines parecem estar ao feminino a não ser que o jovem Shines não ousasse usar o casaco da irmã é portanto presumível que a foto original estivesse virada e que por conseguinte o músico caracterizado como Johnson fosse na realidade canhoto, outro ponto a favor relativamente a sua natureza luciferina!
Aqui está a foto de primeira virada/rotação no verso certo
Até aquele momento, de facto, as únicas duas fotos confirmadas eram aquelas na posse da irmãzinha dele Carrie, pois que são aquelas que bem conhecemos; em ambas Johnson NÃO aparece de modo nenhum canhoto. Então como estão realmente os factos?
Temos vários testemunhos de Johnny Shines a respeito. Sabemos que este último foi companheiro de Johnson durante alguns anos, de 1933 a 1935 c.a. e que ambos giraram em comprimento e em largura pelo Delta segundo as melhores tradições dos Ramblers. Shines não fala por acaso do presumível esquerdismo do amigo mas narra minuciosamente de como Johnny amasse tocar o Blues de costas em relação aos outros músicos, enquanto virava tranquilamente de face quando se tratasse de tocar música do outro género, aquela que os clientes frequentemente pediam, como as baladas do velho Sul.
Esta sua mania de virar-se de costas é bem confirmada também por Son House que, como sempre, a colora de voodoo (culto animista de origem africana). Ele não queria que os outros músicos o reparassem nos olhos enquanto tocava e virava dando costas, provavelmente para que ninguém pudesse arrancar-lhe o segredo da velocidade das suas exibições. Sabe-se que ao diabo não agrada ser reparado na cara!
Aqui está, bastam frases como estas para alimentar uma lenda! Muito mais simples supor um esquerdismo contrastado, uma hipótese, esta que esclareceria em parte também as dores de cabeça infantis de Johnson, as suas dificuldades de concentração, a irritabilidade e o não querer frequentar a escola.
O esquerdismo foi durante séculos considerado um sinal demoníaco e não poucos indivíduos acabaram na fogueira durante o período da Inquisição por este motivo!
Até na época moderna (e estou a falar da metade dos anos 70) tendia-se para corrigir esta diversidade enfaixando a mão da criança e estimulando para escrever com a direita!
Se portanto comparamos o ser esquerdino no inicio de 900 (século vinte) na América, no Delta, junto duma comunidade negra e numa criança bastarda (portanto filho da culpa, marcado antes seu) que ainda por cima uma vez crescido toque o blues... Pois bem, podemos compreender a enormidade da carga psicológica e emotiva que acompanhou o jovem Johnson durante toda a sua breve vida. Nesta óptica e fácil supor que as improvisadas capacidades imputadas ao pacto com o diabo fossem simplesmente um reapropriar-se do esquerdismo perdido, talvés próprio sobre o estímulo do seu maestro Zimmerman, que soubera ler na alma afligida do rapaz.
Portanto, musicalmente falando, assistimos a um verdadeiro desdobramento de Robert Johnson: dum lado um artista capaz de tocar qualquer coisa se lhe pedisse em qualquer estilo, uma capacidade típica dos ramblers que deviam adaptar-se aos variegados gostos dos clientes dos bares; do outro um artista que deixava voar os dedos na guitarra tocando o blues de costas...