Escrevem varios Authores,
Que junto da clara fonte
Do Ganges, os moradores
Vivem do cheiro das flores
Que nascem naquelle monte.
Se os sentidos podem dar
Mantimento ao viver,
Não he logo d'espantar,
S'estes vivem de cheirar,
Que viva eu só de vos ver.
Huma árvore se conhece,
Que na geral alegria
Ella tanto s'entristece,
Que, como he noite, florece,
E perde as flores de dia.
Eu, qu'em ver-vos sinto o preço
Qu'em vossa vista consiste,
Em a vendo m'entristeço,
Porque sei que não mereço
A glória de ver-me triste.
Hum Rei de grande poder
Com veneno foi criado,
Porque, sendo costumado,
Não lhe pudesse empecer,
Se despois lhe fosse dado.
Eu, que criei de pequena
A vista a quanto padece,
Desta sorte m'acontece,
Que não me faz mal a pena,
Senão quando me fallece.
Quem da doença Real
De longe enfêrmo se sente,
Por segredo natural
Fica são vendo somente
Hum volatil animal.
Do mal, que Amor em mi cria,
Quando aquella Phenix vejo,
São de todo ficaria;
Mas fica-me hydropesia,
Que quanto mais, mais desejo.
Da vibora he verdadeiro,
Se a consorte vai buscar,
Qu'em se querendo juntar,
Deixa a peçonha primeiro,
Porque lh'impede o gerar.
Assi quando m'apresento
Á vossa vista inhumana,
A peçonha do tormento
Deixo á parte, porque dana
Tamanho contentamento.
Querendo Amor sustentar-se,
Fez huma vontade esquiva
D'huma estatua namorar-se:
Despois, por manifestar-se,
Converteo-a em mulher viva.
De quem m'irei eu queixando,
Ou quem direi que m'engana
Se vou seguindo e buscando
Huma imagem, que d'humana
Em pedra se vai tornando?
D'huma fonte se sabía,
Da qual certo se provava
Que quem sôbre ella jurava,
Se falsidade dizia,
Dos olhos logo cegava.
Vós, que minha liberdade,
Senhora, tyrannizais,
Injustamente mandais,
Quando vos fallo verdade,
Que vos não possa ver mais.
Da palma s'escreve e canta
Ser tão dura e tão forçosa,
Que pêzo não a quebranta,
Mas antes, de presunçosa,
Com elle mais se levanta.
Co'o pêzo do mal que dais,
A constancia qu'em mi vejo,
Não somente ma dobrais,
Mas dobra-se meu desejo,
Com qu'então vos quero mais.
Se alguem os olhos quizer
Ás andorinhas quebrar,
Logo a mãe, sem se deter,
Huma herva lhe vai buscar
Que lhes faz outros nascer.
Eu que os olhos tenho attento
Nos vossos, qu'estrellas são,
Cegão-se os do entendimento,
Mas nascem-me os da razão
De folgar com meu tormento.
Lá para onde o sol sahe,
Descobrimos, navegando,
Hum novo rio admirando,
Que o lenho que nelle cahe,
Em pedra se vai tornando.
Não s'espantem disto as gentes;
Mais razão será qu'espante
Hum coração tão possante,
Que com lagrimas ardentes
Se converte em diamante.
Póde hum mudo nadador
Na linha e cana influir
Tão venenoso vigor,
Que faz mais não se bulir
O braço do pescador.
Se começão de beber
Deste veneno excellente
Meus olhos, sem se deter,
Não se sabem mais mover
A nada que se apresente.
Isto são claros sinais
Do muito qu'em mi podeis:
Nem podeis desejar mais;
Que se ver-vos desejais,
Em mi claro vos vereis.
E quereis ver a que fim
Em mi tanto bem se pôs?
Porque quiz Amor assim,
Que por vos verdes a vós,
Tambem me visseis a mim.
Dos males que m'ordenais,
Qu'inda tenho por pequenos,
Sabei, se mos escutais,
Que ja não sei dizer mais,
Nem vós podeis saber menos.
Mas ja que a tanto tormento
Não se acha quem resista,
Eu, Senhora, me contento
De terdes meu soffrimento
Por alvo de vossa vista.
Quantos contrarios consente
Amor, por mais padecer!
Que aquella vista excellente,
Que me faz viver contente,
Me faça tão triste ser!
Mas dou este entendimento
Ao mal, que tanto m'offende,
Como na vela s'entende,
Que se se apaga co'o vento,
Co'o mesmo vento se accende.
Exprimentou-se algum'hora
D'ave, que chamão Camão,
Que se da casa, onde mora,
Vê adúltera senhora,
Morre de pura paixão.
A dor he tão sem medida,
Que remedio lhe não val.
Mas oh ditoso animal,
Que póde perder a vida,
Quando vê tamanho mal!
Nos gôstos de vos querer
Estava agora enlevado,
Se não fôra salteado
Das lembranças de temer
Ser por outrem desamado.
Estas suspeitas tão frias,
Com que o pensamento sonha,
São assi como as harpias,
Que as mais doces iguarias
Vão converter em peçonha.
Faz-me este mal infinito
Não poder ja mais dizer,
Por não vir a corromper
Os gostos que tenho escrito,
Co'os males qu'hei d'escrever.
Não quero que s'apregôe
Mal tanto para encobrir,
Porque em quanto aqui s'ouvir
Nenhuma outra cousa sôe,
Que a glória de vos servir.
Dama d'estranho primor,
Se vos for
Pezada minha firmeza,
Olhae não me deis tristeza,
Porque a converto em amor.
E se cuidais
De me matar, quando usais
D'esquivança,
Irei tomar por vingança
Amar-vos cada vez mais.
Porém vosso pensamento,
Como isento,
Seguirá sua tenção,
Crendo qu'em tanta affeição
Não haja accrescentamento.
Não creais
Que desta arte vos façais
Invencibil;
Que Amor sôbre o impossibil
Amostra que póde mais.
Mas ja da tenção que sigo,
Me desdigo;
Que se ha tanto poder nelle,
Tambem vós podeis mais qu'elle
Neste mal que usais comigo.
Mas se for
O vosso poder maior
Entre nós,
Quem poderá mais que vós,
Se vós podeis mais que Amor?
Despois que, Dama, vos vi,
Entendi,
Que perdêra Amor seu preço;
Pois o favor que lh'eu peço,
Vos pede elle para si.
Nem duvido
Que não póde, de sentido,
Resistir;
Pois em vez de vos ferir,
Ficou de vos ver ferido.
Mas pois vossa vista he tal
Em meu mal,
Que posso de vós querer?
Que mal poderei valer,
Onde o mesmo Amor não val.
Se attentar,
Nenhum bem posso esperar:
E oxalá
Que vos alembrasse ja,
Sequer para me matar.
Mas nem com isto creais
Que façais
Meus serviços mais pequenos;
Porqu'eu, quando espero menos,
Sabei qu'então quero mais.
Nada espero;
Mas de mi crede este fero,
Qu'em ser vosso,
Vos quero tudo o que posso,
E não posso quanto quero.
Só por esta phantasia
Merecia
De meus males algum fruito;
E não era certo muito
Para o muito que queria.
De maneira,
Que não he, na derradeira,
Grande espanto,
Que quem, Dama, vos quer tanto,
Que outro tanto de vós queira.
Suspeitas, que me quereis?
Qu'eu vos quero dar lugar
Que de certas me mateis,
Se a causa, de que nasceis,
Vós quizesseis confessar.
Que de não lhe achar desculpa,
A grande mágoa passada
Me te a alma tão cansada,
Que se me confessa a culpa,
Te-la-hei por desculpada.
Ora vêde que perigos
Te cercado o coração,
Que no meio da oppressão
A seus proprios inimigos
Vai pedir a defensão!
Que, suspeitas, eu bem sei,
Como se claro vos visse,
Que he certo o que ja cuidei;
Que nunca mal suspeitei,
Que certo me não sahisse.
Mas queria esta certeza
Daquella que me atormenta;
Porque em tamanha estreiteza
Ver que disso se contenta,
He descanso da tristeza.
Porque se esta só verdade
Me confessa limpa e nua
De cautela e falsidade,
Não póde a minha vontade
Desconforme ser da sua.
Por segredo namorado
He certo estar conhecido
Que o mal de ser engeitado
Mais atormenta sabido
Mil vezes, que suspeitado.
Mas eu só, em quem se ordena
Novo modo de querella,
De medo da dor pequena,
Venho a achar na maior pena
O refrigerio para ella.
Ja nas iras m'inflammei,
Nas vinganças, nos furores,
Que ja doudo imaginei;
E ja mais doudo jurei
De arrancar d'alma os amores.
Ja determinei mudar-me
Para outra parte com ira;
Despois vim a concertar-me
Que era bom certificar-me
No que mostrava a mentira.
Mas despois ja de cansadas
As furias do imaginar,
Vinha emfim a rebentar
Em lagrimas magoadas,
E bem para magoar.
E deixando-se vencer
Os meus fingidos enganos
De tão claros desenganos,
Não posso menos fazer,
Que contentar-me co'os danos.
E pedir que me tirassem
Este mal de suspeitar
Que me vejo atormentar,
Indaque me confessassem
Quanto me póde matar.
Olhae bem se me trazeis,
Senhora, pôsto no fim;
Pois neste estado a que vim,
Para que vós confesseis,
Se dão os tratos a mim.
Mas para que tudo possa
Amor, que tudo encaminha,
Tal justiça lhe convinha;
Porque da culpa, qu'he vossa,
Venha a ser a morte minha.
Justiça tão mal olhada
Olhae com que côr se doura,
Que quero, ao fim da jornada,
Que vós sejais confessada,
Para qu'eu seja o que moura!
Pois confessae-vos jagora,
Indaque tenho temor
Que nem nesta última hora
Me ha de perdoar Amor
Vossos peccados, Senhora.
E assi vou desesperado,
Porque estes são os costumes
D'amor que he mal empregado;
Do qual vou ja condemnado
Ao inferno de ciumes.
Corre sem vela e sem leme
O tempo desordenado,
D'hum grande vento levado:
O que perigo não teme,
He de pouco exprimentado.
As redeas trazem na mão
Os que redeas não tiverão:
Vendo quanto mal fizerão
A cobiça e ambição,
Disfarçados se acolhêrão.
A nao, que se vai perder,
Destrue mil esperanças:
Vejo o mao que vem a ter;
Vejo perigos correr
Quem não cuida que ha mudanças.
Os que nunca em sella andárão,
Na sella postos se vem:
De fazer mal não deixárão;
De demonio hábito tem
Os que o justo profanárão.
Que poderá vir a ser
O mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
Aquelle que quer valer,
Levando o caminho errado.
He para os bons confusão,
Ver que os maos prevalecêrão;
Que, pôsto se detiverão
Com esta simulação,
Sempre castigos tiverão:
Não porque governe o leme
Em mar envolto e turbado,
Que te seu rumo mudado,
Se perece grita e geme
Em tempo desordenado.
Terem justo galardão,
E dor dos que merecêrão,
Sempre castigos tiverão
Sem nenhuma redempção,
Postoque se detiverão.
Na tormenta, se vier,
Desespere na bonança,
Quem manhas não sabe ter:
Sem que lhe valha gemer,
Verá falsar a balança.
Os que nunca trabalhárão,
Tendo o que lhe não convem,
Se ao innocente enganárão,
Perderão o eterno bem,
Se do mal não s'apartárão.
Se não quereis padecer
Huma, ou duas horas tristes,
Sabeis que haveis de fazer?
Volveros por dó venistes,
Que aqui não ha que comer.
E, postoque aqui leais
Trovinha que vos enleia,
Corrido não estejais;
Porque por mais que corrais,
Não heis de alcançar a ceia.
Heliogabalo zombava
Das pessoas convidadas;
E de sorte as enganava,
Que as iguarias que dava,
Vinhão nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois ja não póde ser nova;
Porque a cêa está segura
De vos não vir em pintura;
Mas ha de vir toda em trova.
Cêa não a papareis:
Com tudo, porque não minta,
Para beber achareis,
Não Caparica, mas tinta,
E mil cousas que papeis.
E vós torceis o focinho
Com esta amphibologia?
Pois sabei que a Poesia
Vos dá aqui tinta por vinho,
E papéis por iguaria.
Porque os que vos convidárão
Vosso estomago não danem,
Por justa causa ordenárão,
Se trovas vos enganárão,
Que trovas vos desenganem.
Vós tereis isto por tacha,
Converter tudo em trovar;
Pois se me virdes zombar,
Não cuideis, Senhor, que he cacha,
Que aqui não ha que cachar.