Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - Luís Camões 3 стр.


Pezar ora não de são,
Eu juro pelo Ceo bento,
Se de comer não me dão,
Qu'eu não sou camaleão,
Que m'hei de manter do vento.

Senhor, não vos agasteis,
Porque Deos vos proverá;
E se mais saber quereis,
Nas costas deste lereis
As iguarias que ha.

Tendes nem migalha assada;
Cousa nenhuma de môlho;
E nada feito em empada;
E vento de tigelada;
Picar no dente em remôlho:
De fumo tendes taçalhos;
Ave da pena que sente
Quem da fome anda doente;
Bocejar de vinho e d'alhos;
Manjar em branco excellente.

D'hum homem, que teve o scetro
Da vêa maravilhosa,
Não foi cousa duvidosa,
Que se lhe tornava em metro
O qu'hia a dizer em prosa.
De mi vos quero affirmar
Que faça cousas mais novas,
De quanto podeis cuidar;
E esta cêa, que he manjar,
Vos faça na boca em trovas.

Conde, cujo illustre peito
Merece nome de Rei,
Do qual muito certo sei
Que lhe fica sendo estreito
O cargo de Viso-Rei;
Servirdes-vos d'occupar-me
Tanto contra meu Planeta,
Não foi senão azas dar-me,
Com as quaes vou a queimar-me,
Como o faz a borboleta.

E s'eu a penna tomar,
Que tão mal cortada tenho,
Será para celebrar
Vosso valor singular
Dino de mais alto engenho.
Que se o meu vos celebrasse,
Necessario me sería
Que os olhos d'aguia tomasse,
Só para que não cegasse
No sol de vossa valia.

Vossos feitos sublimados
Nas armas, dignos de gloria,
São no mundo tão soados,
Qu'em vós de vossos passados
Se resuscita a memoria.
Pois aquelle ânimo estranho,
Prompto para todo effeito,
Espanta todo o conceito:
Como coração tamanho
Vos póde caber no peito?

A clemencia, que asserena
Coração tão singular,
S'eu nisso puzesse a penna,
Sería encerrar o mar
Em cova muito pequena.
Bem basta, Senhor, que agora
Vos sirvais de me occupar;
Que assi fareis aparar
A penna, com que algum'hora
Vos vereis ao ceo voar.

Assi vos irei louvando,
Vós a mi do chão erguendo,
Ambos o mundo espantando;
Vós com a espada cortando,
Eu com a penna escrevendo.

Muito sou meu inimigo,
Pois que não tiro de mi
Cuidados, com que nasci,
Que põe a vida em perigo.
Oxalá que fôra assi!

Viver eu, sendo mortal,
De cuidados rodeado,
Parece meu natural;
Que a peçonha não faz mal
A quem foi nella criado.
Tanto sou meu inimigo,
Que por não tirar de mi
Cuidados, com que nasci,
Porei a vida em perigo.
Oxalá que fôra assi!

Tanto vim a accrescentar
Cuidados, que nunca amansão
Em quanto a vida durar,
Que canso ja de cuidar
Como cuidados não cansão.
S'estes cuidados, que digo,
Dessem fim a mi e a si,
Farião pazes comigo;
Que pôr a vida em perigo,
O bom fôra para mi.

Senhora, s'eu alcançasse
No tempo que ler quereis,
Que a dita dos meus papéis
Pola minha se trocasse;
E por ver
Tudo o que posso escrever
Em mais breve relação,
Indo eu onde elles vão,
Por mi só quizesseis ler;

Despois de ver hum cuidado
Tão contente de seu mal,
Verieis o natural
Do que aqui vêdes pintado;
Que o perfeito
Amor, de que sou sogeito,
Vereis aspero e cruel,
Aqui com tinta e papel,
Em mi com sangue no peito.

Que hum continuo imaginar
Naquillo que Amor ordena,
He pena, que emfim por penna
Se não póde declarar;
Que se eu levo
Dentro n'alma quanto devo
De trasladar em papéis,
Vêde que melhor lereis,
Se a mi, se aquillo qu'escrevo?

Se derivais da verdade
Esta palavra Sitim,
Achareis sem falsidade,
Que apos o si te o tim,
Que tine em toda a Cidade.
Bem vejo que m'entendeis;
Mas porque não falle em vão,
Sabei que a esta Nação
Tanto que o si concedeis,
O tim logo está na mão.

E quem da fama s'arreda,
Que tudo vai descobrir,
Deve sempre de fugir
De sitins, porque da seda
Seu natural he rugir.
Mas panno fino e delgado,
Qual a raxa e outros assi,
Dura, aquenta, e he callado,
Amoroso, e dá de si
Mais que sitim, nem brocado.

Mas estes, que sedas são
Com quem s'enganão mil Damas,
Mais vos tomão, do que dão;
Promettem, mas não darão,
Senão nodoas para as famas.
E se não me quereis crer,
Ou tomais outro caminho,
Por exemplo o podeis ver,
Quando lá virdes arder
A casa d'algum vizinho.

Oh feminina simpreza,
Donde estão culpas a pares,
Que por hum Dom de nobreza,
Deixão dões da natureza,
Mais altos e singulares!
Hum Dom, que anda enxertado
No nome, e nas obras não.
Fallo como exprimentado;
Que sitim desta feição
Eu tenho muito cortado.

Dizem-me qu'era amarello;
E quem assi o quiz dar,
Só para me Deos vingar,
Se vem á mão amarê-lo,
O qu'eu não posso cuidar.
Porque quem sabe viver
Por estas artes manhosas,
(Isto bem póde não ser)
Dá a meninas formosas,
Somente polas fazer.

Quem vos isto diz, Senhora,
Servio nas vossas armadas
Muito, mas anda ja fóra;
E póde ser qu'inda agora
Traz abertas as fréchadas.
E, postoque desfavores
O tirão de servidor,
Quer-vos ventura melhor;
Que dos antigos amores
Inda lhe fica este amor.

Peço-vos que me digais
As orações que rezastes,
Se são polos que matastes,
Se por vós que assi matais?
Se são por vós, são perdidas;
Que qual será a oração,
Que seja satisfação,
Senhora, de tantas vidas?

Que se vêdes quantos vem
A só vida vos pedir,
Como vos ha Deos de ouvir,
Se vós não ouvis ninguem?
Não podeis ser perdoada
Com mãos a matar tão prontas,
Que se n'huma trazeis contas,
Na outra trazeis espada.

Se dizeis que encommendando
Os que matastes andais;
Se rezais por quem matais,
Para que matais rezando?
Que se na fôrça do orar
Levantais as mãos aos Ceos,
Não as ergueis para Deos,
Erguei-las para matar.

E quando os olhos cerrais,
Toda enlevada na fé,
Cerrão-se os de quem vos vê,
Para nunca verem mais.
Pois se assi forem tratados
Os que vos vem quando orais,
Essas horas que rezais,
São as horas dos finados.

Pois logo, se sois servida
Que tantos mortos não sejão,
Não rezeis onde vos vejão,
Ou vêde para dar vida.
Ou se quereis escusar
Estes males que causastes,
Resuscitae quem matastes,
Não tereis por quem rezar.

Se n'alma e no pensamento
Por vosso me manifesto,
Não me peza do que sento;
Que se não soffrer tormento,
Faço offensa a vosso gesto.
E, pois quanto Amor ordena,
E quanto est'alma deseja,
Tudo á morte me condena,
Não quero senão que seja
Tudo pena, pena, pena.

Sem olhos vi o mal claro,
Que dos olhos se seguio:
Pois cara sem olhos vio
Olhos, que lhe custão caro.
D'olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejão;
Vendo-vos, olhos sobejão,
Não vos vendo, olhos não são.

Este mundo es el camino
Adó hay ducientos váos,
Ou por onde bons e maos,
Todos somos del merino.
Mas os maos são de teor,
Que desque mudão a côr,
Chamão logo a ElRei compadre;
E emfim dejadlos, mi madre,
Que sempre te hum sabor
De quem torto nasce, tarde s'endireita.

Deixae a hum que se abone:
Diz logo de muito sengo,
Villas y castillos tengo,
Todos á mi mandar sone.
Então eu, qu'estou de môlho,
Com a lagrima no ôlho,
Polo virar do envés,
Digo-lhe: tu ex illis es,
E por isso não te ólho;
Pois honra e proveito não cabem n'hum saco.

Vereis huns, que no seu seio
Cuidão que trazem París,
E querem com dous ceitís,
Fender anca pelo meio.
Vereis mancebindo de arte,
Com espada em talabarte:
Não ha mais Italiano.
A este direis: Meu mano,
Vós sois galante que farte;
Mas pan y vino anda el camino, que no mozo garrido.

Outros em cada theatro,
Por officio lhe ouvirês
Que se matarán con tres,
Y lo mismo haran con cuatro.
Prezão-se de dar respostas,
Com palavras bem compostas;
Mas se lhe meteis a mão,
Na paz mostrão coração,
Na guerra mostrão as costas;
Porque aqui torce a porca o rabo.

Outros vejo por ahi,
A que se acha mal o fundo,
Que andão emendando o mundo,
E não se emendão a si.
Estes respondem a quem
Delles não entende bem
El dolor que está secreto;
Mas porém quem for discreto,
Responder-lhe-ha muito bem:
Assi entrou o mundo, assi ha de sahir.

Achareis rafeiro velho,
Que se quer vender por galgo:
Diz que o dinheiro he fidalgo,
Que o sangue todo he vermelho.
Se elle mais alto o dissera,
Este pelote puzera:
Que o seu eco lhe responda;
Que su padre era de Ronda,
Y su madre de Antequera,
E quer cobrir o ceo co'huma joeira.

Fraldas largas, grave aspeito,
Para Senador Romano.
Oh que grandissimo engano!
Que Momo lhe abrisse o peito!
Consciencia, que sobeja,
Siso, com que o mundo reja,
Mansidão outro que si;
Mas que lobo está em ti,
Metido em pelle de oveja!
E sabem-no poucos.

Guardae-vos de huns meus Senhores,
Que ainda comprão e vendem;
Huns, qu'he certo, que descendem
Da geração de pastores:
Mostrão-se-vos bons amigos;
Mas se vos vem em perigos,
Escarrão-vos nas paredes;
Que de fóra dormiredes,
Irmão, que he tempo de figos;
Porque de rabo de porco nunca bom virote.

Que direis d'huns, que as entranhas
Lh'estão ardendo em cobiça,
E se te mando, a justiça
Fazem de teas de aranhas?
Com suas hypocrisias,
Que são de vossas espias:
Para os pequenos huns Neros,
Para os grandes tudo feros.
Pois tu, parvo, não sabías,
Que lá vão leis, onde querem cruzados?

Mas tornando a huns enfadonhos,
Cujas cousas são notorias;
Huns, que contão mil histórias
Mais desmanchadas que sonhos;
Huns mais parvos que zamboas,
Qu'estudão palavras boas,
A que ignorancia os atiça:
Estes paguem por justiça,
Que te morto mil pessoas,
Por vida de quanto quero.

Adonde tienen las mentes
Huns secretos trovadores,
Que fazem cartas d'amores,
De que ficão mui contentes?
Não querem sahir á praça;
Trazem trova por negaça;
E se lha gabais, qu'he boa,
Diz qu'he de certa pessoa.
Ora que quereis que faça,
Senão ir-me por esse mundo?

Ó tu, como me atarracas,
Escudeiro de Solia,
Com bocaes de fidalguia,
Trazido quasi com vacas;
Importuno a importunar,
Morto por desenterrar
Parentes, que cheirão ja!
Voto a tal, que me fara
Hum destes nunca fallar
Mais com viva alma.

Huns, que fallão muito, vi,
De que quizera fugir;
Huns que, emfim, sem se sentir,
Andão fallando entre si;
Porfiosos sem razão;
E desque tomão a mão,
Fallão sem necessidade;
E se algum'hora he verdade,
Deve ser na confissão;
Porque quem não mente Ja m'entendeis.

Oh vós, quem quer que me lerdes,
Qu'haveis de ser avisado,
Que dizeis ao namorado
Que caça vento com redes?
Jura por vida da Dama;
Falla comsigo na cama;
Passêa de noite e escarra;
Por falsete na guitarra
Põe sempre: Viva que ama,
Porque calça a seu proposito.

Mas deixemos, se quizerdes,
Por hum pouco as travessuras,
Porqu'entre quatro maduras
Leveis tambem cinco verdes.
Deitemos-nos mais ao mar;
E se algum se arrecear,
Passe tres ou quatro trovas.
E vós tomais côres novas?
Mas não he para espantar;
Que quem porcos ha menos,
Em cada mouta lhe roncão.

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