Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - Luís Camões 4 стр.


Ó vós, que sois Secretarios
Das consciencias Reais,
E que entre os homens estais
Por Senhores ordinarios;
Porque não pondes hum freio
Ao roubar, que vai sem meio,
Debaixo de bom governo?
Pois hum pedaço de inferno
Por pouco dinheiro alheio
Se vende a Mouro e a Judeo.

Porque a mente, affeiçoada
Sempre á Real dignidade,
Vos faz julgar por bondade
A malicia desculpada.
Move a presença Real
Huma affeição natural,
Que logo inclina ao Juiz
A seu favor: e não diz
Hum rifão muito geral,
Que o Abbade donde canta, dahi janta?

E vós bailais a esse som:
Por isso, gentís pastores,
Vos chama a vós mercadores
Hum que só foi pastor bom.

Se vossa Dama vos dá
Tudo quanto vós quizestes,
Dizei-me: p'ra que lhe déstes
O que vos ella fez ja?

Sendo os restos envidados,
E vós de cachas mil contos
Sabeis com quão poucos pontos,
Que lhos achastes quebrados;
Se o que te, isso vos dá,
Vós mui bem lho merecestes,
Porque se a cacha lhe déstes
Tinha-vo-la feita ja.

Menina formosa e crua,
Bem sei eu
Quem deixará de ser seu,
Se vós quizereis ser sua.

Menina mais que na idade,
Se para me querer bem
Vos não vejo ter vontade,
He porque outrem vo-la tem;
Te-vo-la, e faz-vo-la crua.
Porém eu
Ja tomára não ser meu,
Se vós não foreis tão sua.

Nos olhos, e na feição
Vos vi, quando vos olhava,
Tanta graça, que vos dava
De graça este coração:
Não o quizestes de crua,
Por ser meu:
Se outrem vos dera o seu,
Póde ser foreis mais sua.

Menina, tende maneira,
Que ainda não venha a ser,
Pois não quereis quem vos quer,
Que queirais quem vos não queira.
Olhae não me sejais crua,
Que pois eu
Quero ser vosso, e não meu,
Sêde vós minha, e não sua.

Da doença, em que ora ardeis,
Eu fôra vossa mézinha
Só com vós serdes a minha.

He muito para notar
Cura tão bem acertada,
Que podereis ser curada
Somente com me curar.
Se quereis, Dama, trocar,
Ambos temos a mézinha,
Eu a vossa, e vós a minha.

Olhae, que não quer Amor,
(Porque fiquemos iguais)
Pois meu ardor não curais,
Que se cure vosso ardor.
Eu cá sinto vossa dor;
E se vós sentis a minha,
Dae e tomae a mézinha.

Deo, Senhora, por sentença
Amor, que fosseis doente,
Para fazerdes á gente
Doce e formosa a doença.

Não sabendo Amor curar,
Foi a doença fazer
Formosa para se ver,
Doce para se passar.
Então vendo a differença
Que ha de vós a toda a gente,
Mandou, que fôsseis doente,
Para glória da doença.

E digo-vos de verdade,
Que a saude anda invejosa,
Por ver estar tão formosa
Em vós essa enfermidade.
Não façais logo detença,
Senhora, em estar doente,
Porque adoecerá a gente,
Com desejos da doença.

Qu'eu por ter, formosa Dama,
A doença, qu'em vós vejo,
Vos confesso, que desejo
De cahir comvosco em cama.
Se consentis, que me vença
Deste mal, não houve gente
Da saude tão contente,
Como eu serei da doença.

Olhae que dura sentença
Foi amor dar contra mi!
Que porqu'em vós me perdi,
Em vós me busque a doença.
Claro está,
Que em vós só me achará;
Qu'em mi, se me vem buscar,
Não poderá mais achar,
Que a fórma do que foi ja.

Que s'em vós Amor se pôs,
Senhora, he forçado assi,
Que o mal, que me busca a mi,
Que vos faça mal a vós.
Sem mentir,
Amor me quiz destruir
Por modo nunca cuidado,
Pois ha de ser ja forçado
Pezar-vos de vos servir.

Mas sois tão desconhecida,
E são meus males de sorte,
Que vos ameaça a morte,
Porque me negais a vida.
Se por boa
Tal justiça se pregoa;
Quando desta sorte for,
Havei vós perdão de Amor,
Que a parte ja vos perdoa.

Mas o que mais temo, emfim,
He que nesta differença,
Que se não torne a doença,
Se me não tornais a mim.
De verdade,
Que ja vossa humanidade
De que se queixe não tem;
Pois para as almas tambem
Fez Amor enfermidade.

De atormentado e perdido,
Ja vos não peço, senão
Que tenhais no coração
O que tendes no vestido.

Se de dó vestida andais
Por quem ja vida não tem
Porque não o haveis de quem
Vós tantas vezes matais?
Que brado sem ser ouvido,
E nunca vejo senão
Cruezas no coração,
E grande dó no vestido.

Amor, que todos offende,
Teve, Senhora, por gôsto,
Que sentisse o vosso rosto
O que nas almas accende.

Aquelle rosto que traz
O mundo todo abrazado,
Se foi da flamma tocado,
Foi porque sinta o que faz.
Bem sei que Amor se vos rende;
Porém o seu presupposto
Foi sentir o vosso rosto
O que nas almas accende.

Não estejais aggravada,
Senão se for de vós mesma;
Porqu'a mulher, que he errada,
Com razão pela Quaresma
Deve ser disciplinada.

Quererdes profano amor
Em Quaresma, he consciencia:
Açoutes e penitencia
Vos está muito melhor.
Não fiqueis disto affrontada,
Pois a culpa he vossa mesma;
Que mulher, que he tão malvada,
He bem que pela Quaresma
Seja bem disciplinada.

Se a penitencia vos val,
Mui bem açoutada estais;
Pois por Quaresma pagais
Vossos vicios do carnal.
Não torneis a ser errada,
Nem condemneis a vós mesma,
Pois estais ja emendada;
E não sereis por Quaresma
Outra vez disciplinada.

Quem no mundo quizer ser
Havido por singular,
Para mais s'engrandecer,
Ha de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometter.
E ja que vossa mercê,
Largueza te por divisa,
Como o mundo todo vê,
Ha mister que tanto dê,
Que venha a dar a camisa.

Senhora, pois me chamais
Tão sem razão tão mão nome,
Inda o diabo vos tome.

Quem quer que vio, ou que leo,
Terá por novo e moderno,
Ter quem vive no inferno,
O pensamento no ceo.
Mas se a vós vos pareceo,
Que m'estava bem tal nome,
Esse diabo vos tome.

Perdido mais que ninguem
Confesso, Senhora, ser;
Mas o diabo não quer
Aos Anjos tamanho bem.
Pois logo não me convem,
Ou se me convem tal nome,
Será para que vos tome.

Se vos benzeis com cautella,
Como de Anjo, e não de luz,
Mal póde fugir da Cruz,
Quem vós tendes pôsto nella.
Mas ja que foi minha estrella
Ser diabo, e ter tal nome,
Guardae-vos, que vos não tome.

Ja que chegais tanto ao cabo,
Com as mãos, postas aos ceos
Vou sempre pedindo a Deos,
Que vos leve este diabo.
Eu, Senhora, não me gabo;
Mas pois que me dais tal nome,
Tomo-o, para que vos tome.

Qual terá culpa de nós
Neste mal, que todo he meu?
Quando vindes, não vou eu,
Quando vou, não vindes vós.

Reinando Amor em dous peitos,
Tece tantas falsidades,
Que de conformes vontades
Faz desconformes effeitos.
Igualmente vive em nós;
Mas por desconcêrto seu
Vos leva, se venho eu,
Me leva, se vindes vós.

Descalça vai pela neve:
Assi faz quem Amor serve.

Os privilegios, que os Reis
Não pódem dar, póde amor,
Que faz qualquer amador
Livre das humanas leis.
Mortes e guerras crueis,
Ferro, frio, fogo e neve,
Tudo soffre quem o serve.

Moça formosa despreza
Todo o frio, e toda a dor.
Olhae quanto póde Amor
Mais que a propria natureza.
Medo, nem delicadeza
Lh'impede que passe a neve.
Assi faz quem Amor serve.

Por mais trabalhos que leve,
A tudo se off'receria;
Passa pela neve fria,
Mais alva que a propria neve;
Com todo frio se atreve.
Vêde em que fogo ferve
O triste, que a Amor serve.

A dor que a minha alma sente,
Não na sabe toda a gente.

Qu'estranho caso de Amor!
Que desejado tormento!
Que venho a ser avarento
Das dores de minha dor!
Por me não tratar peor,
Se se sabe, ou se se sente,
Não na digo a toda a gente.

Minha dor e causa della
De ninguem ouso fiar;
Que sería aventurar
A perder-me, ou a perdella.
E pois só com padecella,
A minha alma está contente,
Não quero que o saiba a gente.

Ande no peito escondida,
Dentro n'alma sepultada;
De mi só seja chorada,
De ninguem seja sentida.
Ou me mate, ou me dê vida,
Ou viva triste ou contente,
Não ma saiba toda a gente.

D'alma, e de quanto tiver,
Quero que me despojeis,
Com tanto, que me deixeis
Os olhos para vos ver.

Cousa este corpo não tem,
Que ja não tenhais rendida:
Despois de tirar-lhe a vida,
Tirae-lhe a morte tambem.
Se mais tenho que perder,
Mais quero que me leveis,
Com tanto que me deixeis
Os olhos para vos ver.

Amores de huma casada,
Que eu vi pelo meu mal.

N'huma casada fui pôr
Os olhos, de si senhores:
Cuidei que fossem amores,
Elles fizerão-se amor.
Faz-se o desejo maior
Donde o remedio não val,
Em perigo de meu mal.

Não me paraceo que Amor
Pudesse tanto comigo,
Que donde entra por amigo,
Se levante por senhor.
Leva-me de dor em dor,
E de final em final,
Cada vez para mor mal.

Enforquei minha esperança;
Mas Amor foi tão madraço,
Que lhe cortou o baraço.

Foi a esperança julgada
Por sentença da Ventura,
Que pois me leve á pendura,
Que fosse dependurada:
Vem Cupido com a espada,
Corta-lhe cerce o baraço.
Cupido, foste madraço.

Puz o coração nos olhos,
E os olhos puz no chão,
Por vingar o coração.

O coração invejoso
Como dos olhos andava,
Sempre remoques me dava
Que não era o meu mimoso:
Venho eu de piedoso
Do Senhor meu coração,
E boto os olhos no chão.

Puz meus olhos n'huma funda,
E fiz hum tiro com ella
Ás grades d'huma janella.

Huma Dama, de malvada,
Tomou seus olhos na mão;
E tirou-me huma pedrada
Com elles ao coração.
Armei minha funda então,
E puz os meus olhos nella,
Trape, quebrei-lhe a janella.

De pequena tomei amor,
Porque o não entendi;
Agora que o conheci,
Mata-me com desfavor.

Vi-o moço e pequenino,
E a mesma idade ensina
Que s'incline huma menina
Ás amostras d'hum menino:
Ouvi-lhe chamar Amor,
Pelo nome me venci;
Nunca tal engano vi,
Nem tamanho desamor.

Cresceo-me de dia em dia
Com a idade a affeição,
Porque amor de criação,
N'alma, e na vida se cria.
Criou-se em mi este amor,
E senhoreou-se de mi:
Agora que o conheci,
Mata-me com desfavor.

As flores me torna abrolhos,
A morte me determina
Quem eu trouxe de menina
Nas meninas de meus olhos.
Desta mágoa e desta dor
Tenho sabido que emfim
Por amor me perco a mim
Por quem de mi perde amor.

Parece ser caso estranho
O que Amor em mi ordena,
Qu'em idade tão pequena
Haja tormento tamanho.
Sejão milagres d'Amor,
Hei-os de soffrer assi,
Até que haja dó de mi
Quem entender esta dor.

Apartárão-se os meus olhos
De mi tão longe.
Falsos amores,
Falsos, maos, enganadores.

Tratárão-me com cautella,
Por m'enganar mais asinha;
Dei-lhe posse d'alma minha,
Forão-me fugir com ella.
Não ha vê-los, nem ha vella,
De mi tão longe.
Falsos amores,
Falsos, maos, enganadores!

Entreguei-lhe a liberdade,
E, emfim, da vida o melhor;
Forão-se; e do desamor
Fizerão necessidade.
Quem teve a sua vontade
De si tão longe?
Falsos amores,
E oxalá enganadores!

Falso Cavalheiro, ingrato,
Enganais-me,
Vós dizeis, que eu vos mato,
E vós matais-me.

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