Perdigão perdeo a penna,
Não ha mal que lhe não venha.
Perdigão, que o pensamento
Subio a hum alto lugar,
Perde a penna do voar,
Ganha a pena do tormento:
Não te no ar, nem no vento,
Azas com que se sostenha:
Não ha mal que lhe não venha.
Quiz voar a huma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E vendo-se despennado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se soccorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não ha mal que lhe não venha.
Pois a tantas perdições,
Senhoras, quereis dar vida,
Ditosa seja a ferida,
Que te taes Cirurgiões!
Pois ventura
Me subio a tanta altura,
Que me sejais valedoras,
Ditosa seja a tristura,
Que se cura
Por vossos rogos, Senhoras!
Ser minha pena mortal,
Ja qu'entendeis, que he assi,
Não quero fallar por mi,
Que por mi falla meu mal.
Sois formosas,
Haveis de ser piedosas,
Por ser tudo d'huma côr;
Que pois Amor vos fez rosas
Milagrosas,
Fazei milagres de Amor.
Pedi a quem vós sabeis,
Que saiba de meu trabalho,
Não pelo qu'eu nisso valho,
Mas pelo que vós valeis.
Que o valer
De vosso alto merecer,
Com lho pedir de giolhos,
Fara qu'em meu padecer
Possa ver
O poder que te seus olhos.
Vossa muita formosura
Com a sua tanto val,
Que me rio de meu mal,
Quando cuido em quem me cura.
A meus ais,
Peço-vos que lhe valhais,
Damas de Amor tão valídas,
Que nunca tal dor sintais,
Que queirais,
Onde não sejais queridas.
Na fonte está Leonor
Lavando a talha, e chorando,
Ás amigas perguntando:
Vistes lá o meu amor?
Pôsto o pensamento nelle,
Porque a tudo o Amor a obriga,
Cantava, mas a cantiga
Erão suspiros por elle.
Nisto estava Leonor
O seu desejo enganando,
Ás amigas perguntando:
Vistes lá o meu amor?
O rosto sôbre hũa mão,
Os olhos no chão pregados,
Que de chorar ja cansados,
Algum descanso lhe dão;
Desta sorte Leonor
Suspende de quando em quando
Sua dor; e em si tornando,
Mais pezada sente a dor.
Não deita dos olhos ágoa,
Que não quer que a dor s'abrande
Amor, porque em mágoa grande
Sécca as lagrimas a mágoa.
Despois que de seu amor
Soube novas perguntando,
D'improviso a vi chorando.
Olhae que extremos de dor!
Que diabo ha tão damnado,
Que não tema a cutilada
Dos fios seccos da espada
Do fero Miguel armado?
Pois se tanto hum golpe seu
Sôa na infernal cadeia;
Do que o demonio arreceia
Como não fugirei eu?
Com razão lhe fugiria,
Se contr'elle, e contra tudo
Não tivesse hum forte escudo
Só em Vossa Senhoria.
Por tanto, Senhor, proveja,
Pois me te ao remo atado,
Que antes que seja embarcado,
Eu desembargado seja.
Vossa Senhoria creia
Que não apura o engenho
Fome, se he como a que tenho,
Mas afraca e corta a veia.
E quem o contrário sente,
Está farto em toda a hora,
Como estou faminto agora:
Mas Martha, se está contente,
Dá-lhe pouco de quem chora.
E pois Vossa Senhoria
Em geral a tudo acode,
Acuda a mi, que só póde
Dar-me no engenho valia.
Esperte esta Musa minha,
Que o tempo traz somnolenta;
Valha-lhe nesta tormenta
Com essa doce mézinha,
Que só dá vida e contenta.
Acuda com provisão,
Não de papel, mas provída
D'ouro e prata; que esta vida
Não sustentão papéis, não.
De feitor a thesoureiro
Ser-me-hia trabalho grande;
Vossa Senhoria mande
Algum remedio, primeiro,
Com que a morte o ferro abrande.
Nos livros doutos se trata
Que o grande Achilles insano
Deo a morte a Heitor Troiano;
Mas agora a fome mata
O nosso Heitor Lusitano.
Só ella o póde acabar,
Se essa vossa condição
Liberal e singular
Não mete entr'elles bastão,
Bastante para o fartar.
Não posso chegar ao cabo
De tamanho desarranjo,
Que sendo vós, Senhora, Anjo,
Vos queira tanto o Diabo.
Dais manifesto sinal
De minha muita firmeza,
Que os diabos querem mal
Aos Anjos por natureza.
Vi chorar huns claros olhos,
Quando delles me partia.
Oh que mágoa! Oh que alegria!
Polo meu apartamento
Se arrazárão todos d'ágoa.
Quem cuidou qu'em tanta mágoa
Achasse contentamento?
Julgue todo entendimento
Qual mais sentir se devia,
Se esta dor, se esta alegria?
Quando mais perdido estive,
Então deo a est'alma minha
Na maior mágoa que tinha,
O maior gôsto que tive.
Assi, se minha alma vive,
Foi porque me defendia
Desta dor esta alegria?
O bem, que Amor me não deu
No tempo que desejei,
Quando delle me apartei,
Me confessou, qu'era meu.
Agora que farei eu,
Se a fortuna me desvia
De lograr esta alegria?
Não sei se foi enganado,
Pois me tinha defendido
Das íras de mal querido,
No mal de ser apartado.
Agora peno dobrado,
Achando no fim do dia
O princípio da alegria.
Deos te salve, Vasco amigo.
Não me fallas? Como assi?
Bofé, Gil, não 'stava aqui.
Pois onde te hão de fallar,
Se não 'stás onde appareces?
Se Magdanela conheces,
Nella me pódes achar.
E como te hão d'ir buscar
Aonde fogem de ti?
Pois nem eu estou em mi.
Porque te não acharei
Em ti, como em Magdanela?
Porque me fui perder nella
O dia que me ganhei.
Quem tão bem falla, não sei
Como anda fóra de si.
Ella falla dentro em mi.
Como estás aqui presente,
Se lá tens a alma e a vida?
Porqu'he d'hum'alma perdida
Apparecer sempre á gente.
Se es morto, bem se consente
Que todos fujão de ti.
Eu tambem fujo de mi.
Porque no miras, Giraldo,
Mi zampoña como suena?
Porque no me mira Elena.
Vuelve acá, no estês pasmado,
Mira que gentil sonar!
Como te podrá mirar
Quien no puede ser mirado?
Y que bueno enamorado!
No dirás, si es mala, o buena?
No, que me hizo mudo Elena.
Mira tan dulce armonía,
Déjate dessos enojos.
Tengo clavados los ojos
Con que mirar te podia.
Ansí Dios te dé alegría:
No vés cuan dulce que suena?
No, porque no veo Elena.
Crescem, Camilla, os abrolhos
De chorares por Cincero:
Não he muito, que lhe quero,
Belisa, mais que meus olhos.
Sempre os teus olhos estão,
Camilla, d'ágoas banhados.
De se verem desamados
Póde ser que chorarão.
Si, mas crescem os abrolhos,
E tu cegas por Cincero.
S'eu não vejo quem mais quero,
Para que quero mais olhos?
Se se foi ha mais d'hum mês,
Teus olhos não cansarão?
Não, que apos elle se vão
Estas lagrimas que vês.
Fazem logo estes abrolhos
O mato espinhoso e fero.
Pois eu não vejo a Cincero,
Isso só verão meus olhos.
Chorando queres morrer?
Mais quero viver chorando.
Tu não vês que vás cegando?
Se cego, como hei de ver?
Põe na vista outros antolhos.
Não posso, nem menos quero.
Outra para outro Cincero,
Antes não quero ter olhos.
Olhos, em qu'estão mil flores,
E com tanta graça olhais,
Que parece que os Amores
Morão onde vós morais.
Vem-se rosas e boninas,
Olhos, nesse vosso ver;
Vem-se mil almas arder
No fogo dessas meninas.
E di-lo-hão minhas dores,
Meus suspiros e meus ais;
E dirão mais, que os amores
Morão onde vós morais.
Quem se confia em huns olhos,
Nas meninas delles vê
Que meninas não te fé.
Quem põe suas confianças
Em meninas sem assento,
Offereça o soffrimento
A duzentas mil mudanças.
Mostrão no ar esperanças;
Mas em seus olhos se vê
Como não te n'alma fé.
Enganão ao parecer,
Porque no caso d'amar,
São mulheres no matar,
E meninas no querer.
Quem em seus olhos se crer,
Cem mil graças nelles vê;
Vê-las sim, mas não ter fé.
Amostrão-vos n'hum momento
Favores assi a mólhos;
Mas na mudança dos olhos
Se lhe muda o pensamento.
Em nada ja te assento,
E o que mais nelles se vê
He formosura sem fé.
Sois formosa, e tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes,
Ninguem vos póde tirar
Serdes tão bem assombrada;
Mas heis-me de perdoar,
Que os olhos não valem nada.
Fostes mal aconselhada
Em querer que fossem verdes:
Trabalhae de os esconderdes.
A vossa testa he jardim,
Onde Amor se desenfada;
He tão branca e bem talhada,
Que parece de marfim.
Assi he; e quanto a mim,
Isso vos nasce de a terdes
Tão perto dos olhos verdes.
Os cabellos desatados
O mesmo sol escurecem;
Senão que por ser ondados,
Algum tanto desmerecem:
Mas á fé, que se parecem
A furto dos olhos verdes,
Não vos peze, não, de os terdes.
As pestanas te mostrado
Ser raios, que abrazão vidas:
Se não forão tão compridas,
Tudo o mais era pintado:
Ellas me tinhão levado
A alma, sem o vós saberdes,
Se não forão os olhos verdes.
O mimo desse carão
Nem pôr-lhe os olhos consente:
O ser liso e transparente
Rouba todo o coração:
Inda assi achareis nação,
Que lhe não peze de os verdes;
Mas não seja co'os olhos verdes.
Esse riso, que he compôsto
De quantas graças nascêrão,
Senão que alguns me disserão,
Vos faz covinhas no rôsto.
Na vontade tenho posto
Dar-vos a alma, se quizerdes,
A trôco dos olhos verdes.
Nunca se vio, nem se escreve
Boca co'huma graça igual,
Se não fôra de coral,
E os dentes de côr de neve.
Dou-me eu a Deos, que me leve!
Soffrerei quanto tiverdes,
Não me tenhais olhos verdes.
Essa garganta merece
Outras palavras não minhas,
Senão qu'he feita em rosquinhas
D'alfenim, ao que parece.
Eu sei bem quem se offerece
A tomar tudo o que tendes,
E tambem os olhos verdes.
Essas mãos são ferropeas:
Só o vê-las enfeitiça;
Senão que são alvas, cheias,
E te a feição roliça;
Com que appellais por justiça,
Para com ellas prenderdes
Quem vê vossos olhos verdes.
A vossa galantaria
Matará a quem fallardes:
Tendes huns desdens e tardes,
Que eu logo vos roubaria.
Oh dou-me a Santa Maria!
Sou cujo de quanto tendes,
E tambem desses olhos verdes.
Tudo tendes singular,
Com que os corações rendeis,
Senão que rindo, fazeis
Covinhas para enterrar:
E para resuscitar
Te força a graça que tendes;
Senão que tendes os olhos verdes.
Tudo, Senhora, alcançais,
Quanto o ser formosa alcança,
Senão que dais esperança
Co'os olhos com que matais.
Se acaso os alevantais,
He para as almas renderdes;
Senão que tendes os olhos verdes.
Cinco gallinhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De appetite para as mais.
Catharina bem promette;
Ora má! como ella mente!
Catharina he mais formosa
Para mi, que a luz do dia;
Mas mais formosa sería,
Se não fosse mentirosa.
Hoje a vejo piedosa,
Á manhãa tão differente,
Que sempre cuido que mente.
Prometteo-me hontem de vir,
Nunca mais appareceo;
Creio que não prometteo,
Senão só por me mentir.
Faz-me, emfim, chorar e rir;
Rio, quando me promette,
Mas chóro quando me mente.
Jurou-me aquella cadella
De vir, pela alma que tinha;
Enganou-me; tinha a minha;
Deo-lhe pouco de perdella.
A vida gasto apos ella,
Porque ma dá, se promette,
Mas tira-ma, quando mente.
Má, mentirosa, malvada,
Dizei, porque me mentis?
Prometteis, e então fugis?
Pois sem tornar, tudo he nada.
Não sois bem aconselhada;
Que quem promette, se mente,
O que perde não o sente.