- Você é Avery Black, certo? – O terceiro membro perguntou.
- Sou.
- Você precisa checar algo antes de tirarmos ela?
- Sim, se vocês não se importarem.
Os três recuaram um pouco. Hatch e o membro ao lado que havia rido dela por cair no gelo seguravam as estacas de plástico. Avery se aproximou. Seus dedos estavam a menos de quinze centímetros do gelo quebrado e da água.
O gelo quebrado a permitiu ver a mulher da testa até os joelhos. Ela parecia quase uma estátua de cera. Avery sabia que aquilo tinha a ver com temperaturas extremas, mas havia algo a mais na perfeição dela. Ela era incrivelmente magra—talvez tivesse só um pouco mais do que quarenta e cinco quilos. Seu rosto tinha uma sombra azul, mas além disso, não havia manchas, arranhões, cortes, contusões, nem sequer espinhas.
Avery também percebeu que além do cabelo encharcado e parcialmente congelado, não havia nenhum outro pelo no corpo. As pernas estavam perfeitamente raspadas, assim como a região do púbis. Parecia uma boneca de tamanho real.
Com um último olhar para o corpo, Avery recuou.
- Terminei – ela disse aos peritos.
Eles avançaram e, contando até três, puxaram o corpo vagarosamente da água. Quando o tiraram, deixaram em um ângulo para que a maior parte do corpo já ficasse no cobertor de isolamento. Avery notou que havia também uma maca abaixo do cobertor.
Com o corpo completamente fora da água, ela percebeu outras duas coisas que achou estranhas. Primeiro, a mulher não usava nenhuma joia. Ela se ajoelhou e viu que as orelhas eram furadas, mas estavam sem brincos. Depois, tornou sua atenção para o segundo ponto estranho: as unhas dos pés e das mãos da mulher estavam muito bem cortadas—a ponto de parecer que haviam sido feitas recentemente.
Aquilo era estranho, e era o que mais havia chamado sua atenção. Com a carne congelada ficando azul debaixo das unhas, havia algo sinistro naquilo. É quase como se ela tivesse sido polida, pensou.
- Terminamos? – Hatch perguntou.
Ela assentiu.
Quando os três cobriram o corpo e depois cuidadosamente caminharam em direção à margem com a maca, Avery permaneceu na área de gelo quebrado. Ela olhou dentro da água, pensando. Colocou a mão no bolso, procurando um pedaço pequeno de lixo, mas tudo o que pode encontrar foi um laço de cabelo que havia usado mais cedo naquele dia.
- Black? – Connelly chamou da margem. – O que você está fazendo?
Ela olhou para trás e viu ele, em pé, perto do gelo, mas com muito cuidado para não pisar ali.
- Trabalhando – ela respondeu. – Por que você não patina até aqui e ajuda?
Ele virou os olhos e virou as costas para o gelo. Ela jogou o laço na água e assistiu ele subir e descer por um momento. Depois, devagar, percebeu a lenta corrente de água debaixo do gelo. Ela levava para à esquerda, longe, na direção de Watertown.
Então ela foi jogada em outro lugar, Avery pensou, olhando para o rio na direção de Boston. Na margem, Connelly e o agente com quem ele estava falando estavam atrás da equipe de peritos.
Avery continuou no gelo, agora totalmente em pé. Ela estava ficando com frio e podia ver sua respiração vaporizar no ar. Mas algo naquela temperatura gelada parecia chamar sua atenção. Aquilo a permitia pensar, a usar o barulho do gelo se quebrando como um metrônomo que organizava seus pensamentos.
Nua e sem cicatrizes nem hematomas. Estupro está fora de cogitação. Sem joias, então pode ter sido um assalto. Mas na maioria dos casos um corpo depois de ser assaltado teria sinais de luta... e essa mulher não tem nada. E essas unhas e a falta de pelos?
Ela caminhou até a margem, olhando para o rio congelado, onde ele fazia uma curva e seguia na direção de Boston. Era estranho pensar em quão bonito o rio Charles era olhando da Boston University, sendo que vinte minutos atrás um corpo havia sido jogado ali.
Ela puxou seu casaco em volta do pescoço e caminhou até a margem. Chegou em tempo de ver as portas de trás da van dos peritos se fecharem. Connelly estava se aproximando, mas olhava além dela, para o rio congelado.
- Você olhou bem para ela? – Avery perguntou.
- Sim, parece um brinquedo ou algo assim. Pálida, gelada e...
- E perfeita – Avery disse. – Você percebeu que não havia pelos nela? Nem hematomas, nem manchas.
- Nem joias – Connelly acrescentou. Suspirando fundo, ele perguntou. – Já posso perguntar sobre seus primeiros pensamentos?
Ela não queria que Connelly tivesse espaço para perguntar aquilo naquele momento. Mas ele tinha, desde que ele e O’Malley haviam oferecido a ela uma promoção para sargento dois meses atrás. Em troca, eles pareciam mais dispostos a aceitar as teorias dela do que a questionar de onde ela tirava as palavras que saíam de sua boca.
- As unhas estavam perfeitamente feitas – ela disse. – É como se ela tivesse acabado de sair do salão antes de ser jogada no rio. E está faltando pelos por todos os lados. Uma dessas coisas já seria estranha, mas as duas juntas me assustam de verdade.
- Você acha que alguém a limpou antes de mata-la?
- Parece que sim. É quase como a funerária deixando o defunto apresentável para o velório. Quem fez isso a limpou. A raspou e fez as unhas.
- Alguma ideia do por quê?
Avery encolheu os ombros.
- Só posso especular agora. Mas posso te dizer uma coisa que você provavelmente não vai gostar.
- Ah, não – ele disse, sabendo o que viria a seguir.
- Esse cara fez tudo no tempo dele... não digo no assassinato, mas em como o corpo estava quando foi encontrado. Ele fez intencionalmente. Foi paciente. Baseada em casos similares, posso quase te garantir que esse não vai ser o único corpo.
Com outro suspiro profundo, Connelly pegou seu telefone do bolso.
- Vou convocar uma reunião no A1 – ele disse. – Vou avisa-los que temos um assassino em série em potencial.
CAPÍTULO TRÊS
Avery imaginou que se fosse aceitar a posição de sargento, precisava resolver sua antipatia pela sala de conferências do A1. Ela não tinha nada contra a sala em si. Mas sabia que uma reunião tão logo após a descoberta de um corpo significava que haveria conversas paralelas e discussões, a maioria delas usadas para derrubar suas teorias.
Talvez como sargento, isso vai acabar, ela pensou enquanto entrava na sala.
Connelly estava na ponta da mesa, mexendo em alguns papeis. Ela imaginou que O’Malley chegaria logo. Ele parecia estar muito mais presente em qualquer reunião em que ela estava desde que eles haviam a oferecido a promoção.
Connelly olhou para os agentes.
- As coisas estão rápidas nesse caso – ele disse. – O corpo tirado do rio foi identificado cinco minutos atrás. Patty Dearborne, vinte e dois anos. Aluna da Boston University e natural de Boston. Até agora, é o que sabemos. Os pais serão informados assim que essa reunião acabar.
Ele deslizou pela mesa uma pasta que continha duas folhas. Uma mostrava uma foto de Patty Dearbone retirada de seu Facebook. A outra tinha três fotos, todas tiradas no rio Charles mais cedo, naquele dia. O rosto de Patty Dearbone estava presente em todas elas, com suas pálpebras cor púrpura fechadas.
Em um pensamento mórbido, Avery tentou ver o rosto da jovem da mesma maneira que o assassino poderia ter visto. Patty era linda, mesmo morta. Tinha um corpo que Avery achava muito magro, mas que faria salivar homens em um bar. Ela usou essa mentalidade tentando imaginar porque o assassino escolheria essa vítima se não houvesse motivos sexuais.
Talvez ele queira mais do que beleza. A pergunta, claro, é se ele está procurando essas belezas para bajula-las ou destruí-las. Ele aprecia a beleza ou quer destruí-la?
Ela não sabia por quanto tempo estava pensando nisso. Tudo o que sabia era que tinha dado um pequeno pulo quando Connelly pediu ordem na reunião. Havia um total de nove pessoas na sala de conferências. Ela viu que Ramirez havia chegado. Ele estava sentado perto de Connelly, olhando a mesma pasta que fora distribuída minutos atrás. Ele aparentemente sentiu que ela o olhava: retribuiu o olhar e sorriu.
Avery retribuiu o sorriso quando Connelly começou. Ela desviou o olhar, sem querer ser óbvia. Mesmo que quase todo mundo ali soubesse que ela e Ramirez tinham algo, os dois ainda queriam tentar manter as coisas escondidas.
- Todo mundo já deve estar sabendo de tudo – Connelly disse. – Para aqueles que não estão, a mulher foi identificada como Patty Dearborne, veterana da Boston University. Foi encontrada no rio Charles, fora de Watertown, mas é nativa de Boston. Como a Detetive Black pontuou no briefing que vocês receberam, a corrente do rio nos faz crer que o corpo foi jogado em outro lugar. Os peritos acham que o corpo estava na água por no máximo vinte e quatro horas. Essas duas coisas nos levam a crer que ela foi deixada em algum lugar de Boston.
- Senhor – o Oficial Finley disse. – Me perdoe por perguntar, mas por que sequer pensar na possibilidade de suicídio? O briefing diz que não havia cicatrizes nem sinais de luta.
- Eu eliminei essa possibilidade quando vi que a vítima estava nua – Avery disse. – Suicídio até seria uma possibilidade a ser considerada, mas é muito pouco provável que Patty Dearborne tenha se despido antes de se jogar no rio Charles.
Ela quase odiou a si mesma por destruir a ideia de Finley. Ela o vira tornar-se um ótimo policial semana a semana. Ele havia amadurecido no último ano, transformando-se de um bobão em um agente que todos reconheciam por trabalhar duro.
- Mas não tem marcas – outro agente disse. – isso diz muito coisa.
- Pode ser uma evidência de que não foi um suicídio – Avery disse. – Se ela tivesse pulado de qualquer altura maior que dois ou três metros, teria que haver contusões visíveis no corpo pelo impacto.
- Os peritos concordam com isso – Connelly disse. – Eles vão enviar um relatório mais detalhado depois, mas eles têm certeza disso. – Ele então olhou para Avery e fez um gesto para a mesa com sua mão. – O que mais você sabe, Detetive Black?
Ela levou um momento para pensar nas coisas que tinha dito a Connelly—detalhes que estavam no briefing. Havia mencionado as unhas, a falta de pelos e a ausência de joias.
– Outra coisa a se dizer – acrescentou, - é que o assassino que deixa suas vítimas nesse nível de apresentação mostra ou uma estranha admiração pela vítima ou algum tipo de arrependimento.
- Arrependimento? – Ramirez perguntou.
- Sim. Ele deixou ela como uma boneca, o mais linda possível, porque talvez ele não queria matar ela.
- A ponto de raspa-la nas regiões baixas? – Finley perguntou.
- Sim.
- E diga para eles por que você acha que estamos lidando com um assassino em série, Black – Connelly disse.
- Porque mesmo que isso fosse um erro, o fato de o assassino ter feito as unhas e raspado ela mostra paciência. E quando você junta isso com o fato de que a mulher estava linda e sem marcas, isso me faz pensar que ele é atraído pela beleza.
- O que nos leva de volta à linha de pensamento de que talvez ele não queria mata-la.
- Então você acha que pode ser um encontro que deu errado? – Finley perguntou.
- Não podemos ter certeza – ela disse. – Minha primeira reação é não. Se ele foi intencional a esse ponto e cuidadoso com o jeito que ela estaria depois de jogar o corpo, acho que ele teve o mesmo cuidado em seleciona-la.
- Seleciona-la para o que, Black? – Connelly perguntou.
- Acho que é isso o que precisamos descobrir. Com sorte os peritos vão ter algumas respostas para nos levar ao caminho certo.
- E o que fazemos até lá? – Finley perguntou.
- Trabalhamos – Avery disse. – Investigamos a fundo a vida de Patty Dearborne, esperando encontrar alguma pista que vai nos ajudar a encontrar o cara antes que ele faça isso de novo.
Quando a reunião terminou, Avery caminhou pela sala de conferências para falar com Ramirez. Alguém precisava informar os pais de Patty Dearborne e ela sentiu que precisava fazer isso. Falar com pais aflitos, mesmo sendo algo incrivelmente difícil e emocional, era geralmente uma das melhores coisas a se fazer para conseguir pistas. Ela queria Ramirez junto, mesmo querendo manter o balanço entre a vida profissional e pessoal dos dois. Era algo difícil, mas que eles estavam devagar aprendendo a fazer.
Antes que ela chegasse até Ramirez, no entanto, O’Malley entrou na sala. Ele estava falando no telefone, claramente com pressa. Seja lá qual fosse o assunto, deveria ser algo importante para faze-lo perder a reunião sobre o caso Patty Dearborne. Ele ficou na porta, esperou que todos, com exceção de Avery, Ramirez e Connelly saíssem, e a fechou. Terminou a ligação com um quase rude “Sim, depois”, e depois respirou fundo.
- Perdão por perder a reunião - disse. – Algo importante apareceu?
- Não – Connelly disse. – Temos a identidade da mulher e agora precisamos avisar a família. Estamos trabalhando com a hipótese de que quem fez isso vai fazer de novo.
- Black, você pode me mandar um relatório rápido explicando os detalhes?
- Sim senhor, - ela disse. Ele nunca pedia coisas pequenas assim para ela. Ela imaginou se aquele era mais um dos testes dele. Vinha percebendo que ele estava sendo mais brando com ela nas últimas semanas, disposto a dar a ela mais responsabilidades sem interferências. Tinha certeza que aquilo tinha tudo a ver com a proposta para se tornar sargento.
- Já que os dois estão aqui – O’Malley disse, olhando para Avery e Ramirez, - eu gostaria de ter uma palavra com vocês. Algumas, na verdade... e eu não tenho muito tempo, então vou ser rápido. Primeiro... Por mim está tudo bem se vocês têm algo fora do trabalho. Pensei muito em separar vocês aqui no A1, mas porra, vocês trabalham melhor juntos. Então, enquanto vocês puderem tolerar as piadas internas e especulações, vocês vão continuar sendo parceiros. Está bem?
- Sim senhor – Ramirez disse. Avery assentiu, concordando.
- A outra coisa... Black. O assunto de sargento... Vou precisar de uma decisão logo. Em quarenta e oito horas. Tentei ser paciente, deixar você pensar. Mas já se passaram dois meses. Acho que é justo.
- É justo – ela disse. – Vou te informar até amanhã.
Ramirez a olhou, surpreso. Na verdade, a resposta surpreendeu até ela mesma. No fundo, no entanto, ela achava que sabia o que queria.
- Agora, o caso dessa mulher no rio – O’Malley disse. – É oficialmente seu, Black. Ramirez está com você, mas vamos manter isso de um jeito profissional.
Avery estava um pouco envergonhada e sentiu-se ficando vermelha. Ah, não, ela pensou. Primeiro uma tarde de compras e agora ficando vermelha na frente de um cara. Que merda está acontecendo comigo?
Para superar aquele momento, Avery voltou a falar do caso.
- Eu gostaria de ser responsável por avisar a família.
- Podemos mandar outra pessoa – Connelly sugeriu.
- Eu sei. Mas por mais terrível que pareça, pais recebendo notícias assim são geralmente as melhores fontes de informação. Tudo está aberto, vivo.
- Deus, isso foi muito sem coração – Connelly disse.
- Mas efetivo – O’Malley disse. – Muito bem, Black. São quatro e cinquenta agora. Com sorte, você vai encontra-los saindo do trabalho. Vou fazer alguém te enviar o endereço em dez minutos. Agora vamos ao trabalho. Dispensados.
Avery e Ramirez saíram. No corredor, os cumpridores de horário estavam começando a sair. Para Avery, no entanto, o dia estava longe de acabar. Na verdade, com a tarefa de dar a notícia da morte de uma filha para seus pais, Avery sabia que aquela seria uma longa noite.
CAPÍTULO QUATRO
A família Dearborne morava em uma pequena casa em Somerville. Avery leu as informações que haviam sido enviadas a ela enquanto Ramirez dirigia. Patty Dearborne fora uma excelente aluna em seu ano de veterana na Boston University, e estava prestes a se tornar conselheira de uma empresa de saúde comportamental. Sua mãe, Wendy, era uma enfermeira que trabalhava entre duas áreas hospitalares diferentes. O pai de Patty, Richard, era um gerente de negócios em desenvolvimento de uma grande empresa de telecomunicações. Eles eram uma família ficha limpa, sem nem um rastro de sujeira em seus registros.