E é mais auspicioso ainda que aquele dia coincida com o dia de um festival, o Dias das Luzes, em que todos louvam os sete deuses do sol. Volúsia – como líder da cidade – é responsável por dar início às festividades e, ao atravessar os canais, duas imensas tochas estão acesas atrás dela, mais brilhantes do que a luz do dia, prontas para acender a Grande Fonte.
Todos os habitantes a acompanham, apressando-se pelas ruas e seguindo o seu barco; ela sabe que eles a acompanhariam durante todo o percurso até que ela chegasse ao centro dos seis círculos da cidade, onde ela desembarcaria e acenderia as fontes, dando início ao dia de celebração e sacrifícios. Aquele é um dia glorioso para ela e todo o seu povo, um dia para louvar os catorze deuses – os deuses que todos acreditam rodear a cidade, protegendo as catorze entradas contra invasores indesejados. Seu povo reza para todos eles e naquele dia, como em todos os outros, é preciso agradecer-lhes pela proteção.
Mas esse ano, seu povo terá uma grande surpresa. Volúsia havia incluído a décima quinta divindade, e seria a primeira vez desde a fundação da cidade que um deus seria adicionado. E aquela divindade é ela mesma. Volúsia havia erguido uma enorme estátua dourada de si mesma no centro dos sete círculos, e havia declarado que aquele dia, a partir de agora, seria o seu dia – o seu feriado. Quando a estátua fosse revelada, seu povo veria pela primeira vez que Volúsia é mais do que sua mãe jamais havia sido – mais do que uma líder, mais do que uma mera humana. Ela é uma deusa, e merece ser adorada todos os dias. Eles rezariam e se ajoelhariam diante dela assim como faziam com os outros – e fariam isso ou ela mataria todos eles.
Volúsia sorri para si mesma à medida que seu barco se aproxima do centro da cidade. Ela mal pode esperar para ver a expressão no rosto deles, para vê-los adorar sua imagem como fazem com os outros catorze deuses. Eles ainda não sabem, mas um dia, ela pretende destruir os outros deuses um por um, até que ela seja a única deusa de Volúsia.
Volúsia, excitada, olha por cima do ombro e vê uma fileira infinita de embarcações atrás dela, carregando touros, cabras e carneiros vivos gritando e movimentando-se sob o sol, tudo em preparação para o dia de sacrifícios em homenagem aos deuses. Ela sacrificaria os melhores e maiores animais em sua própria homenagem.
O barco de Volúsia finalmente chega ao canal que dá acesso aos sete círculos dourados, um mais largo que o outro e com grandes passarelas douradas separadas por anéis de água. Seu barco abre caminho lentamente pelos círculos, aproximando-se cada vez mais do centro, passando diante dos catorze deuses com o coração acelerado de emoção. A estátua de cada um dos deuses se ergue dezenas de metros acima deles. No centro de tudo isso, na praça que sempre havia permanecido vazia e reservada para sacrifícios e congregações, agora há um pedestal dourado recém-construído, sob o qual repousa uma estrutura de vinte metros coberta com um pedaço de seda branca. Volúsia sorri: apenas ela entre todo o seu povo sabe o que há embaixo daquele tecido.
Volúsia desembarca assim que eles se aproximam da praça mais central, e seus criados correm ao seu auxílio. Ela assiste enquanto outra embarcação se aproxima, e o maior touro que ela já tinha visto é removido e levado até ela por uma dúzia de homens. Cada um deles segura uma corda, e começam a guiar o animal cautelosamente. O touro é um animal especial adquirido nas Baixas Províncias: com cinco metros de altura e pele vermelha brilhante, ele é um simbolo de força. O animal também está extremamente irritado. Ele resiste, mas os homens o mantém no lugar enquanto o levam pra frente da estátua de Volúsia.
Volúsia ouve uma espada sendo erguida, e ao se virar vê Aksan, seu assassino pessoal, parado ao seu lado e segurando a espada cerimonial. Aksan é o homem mais leal que ela já havia conhecido, sempre disposto a matar quem ela ordene com um simples gesto de sua cabeça. Ele também é um pouco sádico – outro motivo pelo qual ela o admira – e já havia ganhado o seu respeito muitas vezes. Aksan é uma das poucas pessoas que Volúsia permite ficar ao seu lado.
Ele a encara, e Volúsia olha para o seu rosto cheio de cicatrizes e para os seus chifres visíveis atrás de seu cabelo encaracolado.
Volúsia estica o braço e pega a longa espada cerimonial com sua lâmina de dois metros, fechando os dedos em torno do punho com as duas mãos. Um silêncio tenso recai sobre o seu povo quando ela se vira, ergue a espada e rapidamente golpeia o pescoço do touro com toda a sua força.
A lâmina – afiada e fina como papel, atravessa o pescoço do animal, e Volúsia sorri ao ouvir o barulho satisfatório da espada atravessando a carne, sentindo a lâmina cortando o animal e sentindo o sangue do touro espirrar em seu rosto. O sangue espirra para todos os lados, formando uma grande poça sob os pés dela, e o touro cambaleia sem cabeça e cai aos pés da estátua ainda coberta de Volúsia. O sangue do touro mancha o tecido e o ouro, e o povo solta gritos de aprovação.
"Um excelente presságio, minha senhora," Aksan fala, fazendo uma saudação.
As cerimônias haviam começado. Em volta dela, trombetas soam enquanto centenas de animais são trazidos pra frente, e seus oficiais começam a sacrificá-los em torno da praça. Aquele seria um longo dia de sacrifícios, estupros e festividades com abundância de comida e bebida – e depois tudo se repetiria no dia seguinte e no outro. Volúsia participaria de tudo, beberia um pouco de vinho e passaria a noite com alguns homens – cortando o pescoço deles como sacrifício para os seus deuses. Ela anseia por um longo dia de sadismo e brutalidade.
Mas, primeiro, ainda há uma coisa a fazer.
A multidão se aquieta quando Volúsia sobe no pedestal localizado na base de sua estátua e se vira para encarar o seu povo. Ao lado dela está Koolian, outro conselheiro de sua confiança – um feiticeiro sombrio que veste um manto com capuz negro, com olhos verdes brilhantes e um rosto cheio de verrugas – a criatura que havia ajudado Volúsia a planejar o assassinato de sua própria mãe. Koolian tinha sido a pessoa a aconselhar Volúsia a construir a estátua de si mesma.
A multidão a encara em absoluto silêncio. Ela espera, saboreando o suspense daquele momento.
"Grande povo de Volúsia!" ela começa. "Apresento-lhes a estátua de sua mais nova e mais importante dividade!"
Com um gesto grandioso, Volúsia remove o tecido de seda e a multidão suspira.
"Sua nova deusa, a décima quinta divindade – Volúsia!" Koolian grita para a multidão.
O povo emite um som abafado de admiração, e todos olham para cima com espanto. Volúsia olha para a estátua brilhante, duas vezes mais alta que as outras, uma réplica perfeita dela mesma. Ela espera ansiosa para ver a reação de seu povo. Há muitos séculos ninguém apresenta uma nova divindade, e ela está curiosa para ver se o amor de seu povo por ela é tão forte quanto ela pensa. Ela não precisa apenas do amor de seu povo; ela quer que eles a idolatrem.
Para sua grande satisfação, seu povo de repente cai de joelhos e leva seus rostos ao chão, idolatrando-a.
"Volúsia," eles entoam sem parar. "Volúsia. Volúsia."
Volúsia continua ali, com os braços abertos e respirando profundamente, absorvendo tudo aquilo. Aquela é uma experiência para satisfazer qualquer ser humano. Qualquer líder. Qualquer divindade.
Mas ainda não é o bastante para ela.
*
Volúsia atravessa a ampla entrada arqueada do seu castelo, passando pelas colunas de mármore de trinta metros e pelos corredores repletos de jardins e de guardas – soldados do Império com posturas perfeitamente eretas, empunhando lanças e alinhados até onde seus olhos podem ver. Ela caminha lentamente, acompanhada em ambos os lados por Koolian – seu feiticeiro, Aksan – seu assassino, e Soku – o comandante de seu exército.
"Minha senhora, se eu puder ter uma palavra com você," Soku diz. Ele vinha tentando falar com ela durante todo o dia, e ela o havia ignorado, sem interessar-se em seus temores ou sua fixação com a realidade. Ela possui sua própria realidade, e falaria com ele quando tivesse vontade.
Volúsia continua marchando até alcançar a porta de entrada para outro corredor, decorada com longas faixas repletas de esmeraldas. Imediatamente, soldados correm para abri-la, dando-lhe passagem.
Assim que ela entra, o barulho dos cânticos, aplausos e festividades das cerimônias externas começa a se dissipar. Aquele tinha tido um longo dia de sacrifícios, bebidas e comemorações, e Volúsia precisa de algum tempo para descansar. Ela recuperaria suas energias, e então voltaria para mais uma rodada.
Volúsia entra nos aposentos solenes, iluminados apenas por algumas tochas. A principal fonte de iluminação do lugar é o faixo de luz verde que vem do óculo no meio do teto, iluminando um único objeto que jaz no centro dos aposentos.
A lança de esmeralda.
Volúsia se aproxima dela admirada, observando o objeto que permanece ali como já fazia há séculos, apontando diretamente para cima. Com seu punho e ponta de esmeralda, a lança brilha sob a luz, apontando diretamente para o céu – como se estivesse desafiando os deuses. Aquele sempre havia sido um objeto sagrado para o seu povo, o objeto que todos acreditam sustentar toda a cidade. Ela para diante dele admirada, observando as partículas de poeira girando em torno da luz esverdeada.
"Minha senhora," Soku diz suavemente, sua voz ecoando no silêncio do lugar. "Tenho permissão para falar?"
Volúsia permanece parada de costas para ele por um longo tempo, examinando a lança e admirando o trabalho do artesão como tinha feito todos os dias de sua vida, até finalmente sentir-se preparada para ouvir as palavras de seu conselheiro.
"Vá em frente," ela fala.
"Minha senhora," ele fala, "você matou o líder do Império. Certamente, o boato já se espalhou. Exércitos devem estar marchando para Volúsia neste exato momento. Exércitos enormes, maiores do que qualquer coisa da qual podemos nos defender. Devemos nos preparar. Qual é a sua estratégia?”
"Estratégia?” Volúsia pergunta irritada, ainda sem olhar para ele.
"Como você pretende negociar a paz?” ele insiste. "Como se renderá?”
Ela se vira para ele e o encara com frieza.
"Não haverá paz," ela responde. "Até que eu decida aceitar sua rendição e seu juramento de fidelidade."
Ele a encara com medo nos olhos.
"Mas minha senhora, eles nos superam em números de cem para um," ele fala. "Não podemos nos defender contra ataques dessa proporção."
Ela volta a olhar para a lança e ele dá um passo adiante, desesperado.
"Minha Imperatriz," ele insiste. "Você atingiu uma vitória notável ao usurpar o trono de sua mãe. Ela não era amada pelo povo, e você é. Eles a idolatram. Ninguém ousa falar com você francamente. Mas eu farei isso. Você está rodeada de pessoas que lhe dizem apenas o que você deseja ouvir. Pessoas que a temem. Mas eu lhe direi a verdade, eu lhe explicarei a realidade da situação. O Império nos cercará, e nós seremos derrotados. Nada restará de nosso reino – ou de nossa cidade. Devemos agir agora. Você deve negociar uma trégua. Pague o preço que for preciso. Antes que eles matem todos nós."
Volúsia sorri enquanto estuda sua lança.
"Você sabe o que costumavam dizer sobre minha mãe?” ela pergunta.
Soku permanece ali, encarando-a sem expressão, e balança a cabeça.
"Diziam que ela era A Escolhida. Diziam que ela jamais seria derrotada. Diziam que ela jamais morreria. Sabe por quê? Por que ninguém havia empunhado essa lança em seis séculos. E de repente ela surgiu e a empunhou com apenas uma mão. E a usou para matar seu próprio pai e assumir o trono."
Volúsia volta a olhar para ele, seus olhos brilhando com determinação.
"Diziam que a lança seria usada apenas uma vez. Pela Escolhida. Diziam que minha mãe viveria por mil séculos, e que o trono de Volúsia seria dela para sempre. E sabe o que aconteceu? Eu empunhei aquela lança – e a usei para matá-la."
Ela respira fundo.
"O que me diz disso, Lorde Comandante?"
Ele olha para ela confuso, e balança a cabeça sem saber o que dizer.
"Podemos escolher viver à sombra das lendas dos outros," responde Volúsia, "ou podemos criar nossas próprias lendas."
Ela se aproxima dele, encarando-o com raiva.
"Quando eu tiver destruído todo o Império," ela diz, "quando todos neste universo se ajoelharem diante de mim, quando não houver uma única pessoa que não saiba quem eu sou e que admire o meu nome, você saberá que eu sou a única e verdadeira líder – e que eu sou a única e verdadeira divindade. Eu sou A Escolhida. Por que eu me escolhi."
CAPÍTULO DEZ
Gwendolyn atravessa a aldeia acompanhada de seus irmãos Kendrick e Godfrey, Sandara, Aberthol, Brandt e Atme e com centenas de seu povo atrás dela, sendo recebidos pelos habitantes do lugar. Eles são guiados por Bokbu, o chefe da vila, e Gwen caminha ao lado dele cheia de gratidão ao ser levada em um tour da aldeia. O povo daquele lugar os tinha recebido – dando-lhes abrigo, e o chefe tinha feito aquilo por sua própria conta, contra a conta de alguns dos membros de sua tribo. Ele havia salvado todos eles, trazendo-os de volta à vida. Gwen não sabe o que eles teriam feito se isso não tivesse acontecido. Eles provavelmente teriam morrido em alto mar.
Gwen também se sente grata a Sandara, que havia garantido à tribo que eles eram de confiança – e que tinha tido a sabedoria de levá-los até ali. Gwen olha ao seu redor, absorvendo a cena à medida que os aldeões os cercam observando-os com curiosidade, e se sente com um animal em exibição. Gwen vê as pequenas cabanas de barro e o povo orgulhoso que nelas habitam – uma nação de guerreiros com olhos bondosos a observá-los. Obviamente, eles nunca haviam visto algo parecido com Gwen e seu povo. Embora curiosos, eles também são reservados. Gwen não pode culpá-los. Uma vida de escravidão os havia deixado bastante cautelosos.
Gwen nota fogueiras erguidas por toda parte, e começa a pensar.
"Por que há tantas fogueiras?" ela pergunta.
"Vocês chegaram num dia muito auspicioso," Bokbu explica. "Hoje é o dia do nosso festival dos mortos. É uma noite sagrada para o nosso povo, que acontece apenas uma vez a cada onze anos. Acendemos fogueiras para homenagear os deuses dos mortos, e dizem que nesta noite, os deuses nos visitam e nos contam sobre o que está por vir."
"Também acreditamos que é neste dia que nosso salvador irá chegar," informa uma voz.
Gwendolyn olha na direção da voz e vê um homem mais velho, aparentemente com setenta anos, magro e com uma expressão séria, aproximando-se deles com um cajado nas mãos e vestindo um manto amarelo.
"Permita-me apresentar-lhes Kalo," Bokbu fala. "Nosso oráculo."
Gwen assente e ele repete o gesto sem esboçar qualquer reação.
"Sua aldeia é linda," comenta Gwendolyn. "Posso ver o amor de uma grande família aqui."
O chefe sorri.
"Você é jovem para uma rainha, mas é muito sábia e graciosa. É verdade o que dizem sobre você do outro lado do mar. Gostaria que vocês pudessem ficar aqui na aldeia conosco; por favor, entenda que temos que escondê-los dos olhares curiosos do Império. Vocês estarão por perto – aquele será seu novo lar, bem ali."
Gwendolyn segue a direção do olhar dele e vê uma montanha distante, repleta de buracos.
"As cavernas," ele fala. "Vocês estarão seguros lá. O Império não procurará por vocês naquele lugar, e vocês podem acender fogueiras, cozinhar e se recuperar até ficarem bem."
"E depois?" Kendrick pergunta, juntando-se ao grupo.
Bokbu olha para Kendrick, mas antes que ele possa responder outro aldeão alto e forte se aproxima do chefe segurando uma lança e acompanhado por uma dezena de homens musculosos. É o mesmo homem do navio, aquele que havia protestado a chegada deles – e ele não parece nada satisfeito.