Apenas os Dignos - Морган Райс 4 стр.


E, ao cair de cara no rio, com as águas a ficarem vermelhas, ela sabia que era o fim. A sua dura e curta vida tinha terminado.

Mas o seu filho viveria para sempre.

*

Mithka, uma mulher camponesa, estava ajoelhada na margem do rio, com o seu marido ao lado, os dois freneticamente recitando as suas orações, sentindo não ter nenhum outro recurso durante aquela estranha tempestade. Era como se o fim do mundo estivesse sobre eles. A lua cor de vermelho-sangue era um presságio terrível em si – mas aparecendo juntamente com uma tempestade como aquela, bem, era mais do que estranho. Era inédito. Algo importante, ela sabia, estava a acontecer.

Eles estavam ali juntos, ajoelhados, com a tempestade de vento e neve a bater-lhe nos rostos. Ela rezou pedindo proteção para a sua família. Misericórdia. Perdão por qualquer coisa que pudesse ter feito mal.

Uma mulher piedosa, Mithka tinha vivido muitos ciclos do sol, tinha vários filhos e tinha uma boa vida. Uma vida pobre, mas boa. Ela era uma mulher decente. Não se metia na vida dos outros, tinha cuidado dos outros e nunca tinha feito mal a ninguém. Ela rezava para que Deus protegesse os seus filhos, a sua casa e os seus, apesar dos seus parcos pertences. Ela inclinou-se e colocou as palmas das mãos na neve, fechou os olhos curvando-se, tocando, seguidamente, com a cabeça no chão. Ela rezou a Deus para lhe mostrar-lhe um sinal.

Lentamente, levantou a cabeça. Ao fazê-lo, os seus olhos arregalaram-se e o seu coração bateu com o que viu diante de si.

"Murka!", sibilou.

O marido virou-se e olhou, também. Ambos ficaram ali ajoelhados, imobilizados, olhando com perplexidade.

Não podia ser possível. Ela pestanejou várias vezes. Porém, ainda lá estava. Diante deles, trazida pela corrente de água, estava uma cesta flutuante.

E nessa cesta estava um bebé.

Um rapaz.

O seu choro perfurava a noite, ainda mais alto do que a tempestade, mais alto do que os estrondos dos trovões e relâmpagos. Cada grito do seu choro perfurava o seu coração.

Ela saltou para o rio caminhando pelas gélidas águas que pareciam facas na sua pele, apanhou a cesta e, lutando contra a corrente, voltou para a margem. Olhou para baixo e viu que o bebé estava meticulosamente enrolado num cobertor e que estava milagrosamente seco.

Ela observou-o mais de perto e ficou perplexa ao ver um pingente de ouro à volta do seu pescoço, com duas cobras circundando uma lua e um punhal entre elas. Ela suspirou; era um pendente que ela reconheceu imediatamente.

Virou-se para o seu marido.

"Quem faria uma coisa dessas?", perguntou ela, horrorizada, segurando-o com força contra o seu peito.

Ele só conseguia abanar a cabeça, atónito.

"Temos de ficar com ele," ela decidiu.

O marido franziu a testa e abanou a cabeça.

"Como?", retrucou. "Não nos podemos dar ao luxo de alimentá-lo. Mal nos podemos dar ao luxo de nos alimentar. Já temos três rapazes – para que é que precisamos de um quarto? O nosso tempo de criar crianças já acabou."

Mithka, pensando rapidamente, apanhou o espesso pingente de ouro e colocou-o na palma da mão do seu marido, sabendo, depois de todos aqueles anos, o que o iria impressionar. Ele sentiu o peso do ouro na mão, parecendo claramente impressionado.

"Aqui", ela retrucou, em repulsa. "Aqui está o teu ouro. Ouro suficiente para alimentar a nossa família até sermos velhos e morrermos", disse ela com firmeza. "Eu vou salvar este bebé – quer gostes quer não. Eu não vou deixá-lo morrer."

Ele continuava a fazer má cara, embora menos certo, quando se ouviu outro relâmpago. Ele observou o céu com medo.

"E achas que é uma coincidência?", perguntou. "Numa noite como esta, um bebé como este vir a este mundo? Tens alguma ideia de quem estás a segurar?"

Ele olhou para a criança com medo. E então levantou-se e afastou-se, virando as costas, por fim, indo-se embora, segurando o pingente, claramente desagradado.

Mas Mithka não cederia. Ela sorriu para o bebé e embalou-o contra o seu peito, aquecendo o seu rosto frio. Lentamente, o seu choro acalmou-se.

"Uma criança diferente de qualquer um de nós", ela respondeu a ninguém, segurando-o com força. "Uma criança que irá mudar o mundo. E uma a quem eu vou dar o nome: Royce."

PARTE DOIS

CAPÍTULO QUATRO

17 Ciclos Solares mais tarde

Royce estava no topo da colina, debaixo da única árvore de carvalho que existia naqueles campos de cereais. Uma coisa antiga cujos galhos pareciam chegar ao céu. Olhava profundamente para os olhos de Genevieve, profundamente apaixonado. Eles deram as mãos e ela sorriu-lhe. Aproximaram-se e beijaram-se. Ele sentia reverência e gratidão por estar de coração tão cheio. O dia amanheceu por cima dos campos de cereais e Royce desejava conseguir congelar aquele momento para sempre.

Royce inclinou-se para trás e olhou para ela. Genevieve era maravilhosa. Aos dezassete anos, tal com ele, ela era alta, magra, com cabelos loiros e olhos verdes inteligentes, com um punhado de sardas nos seus traços delicados. Ela tinha um sorriso que o fazia sentir-se feliz por estar vivo e um riso que o punha à vontade. Mais do que isso, ela tinha uma graciosidade, uma nobreza que superava, de longe, o seu estado de pobre camponês.

Royce viu o seu reflexo nos olhos dela e ficou maravilhado por parecer que se podia identificar com ela. Ele era muito maior, claro, alto mesmo para a sua idade, com ombros mais largos do que até mesmo os seus irmãos mais velhos, com um queixo forte, um nariz nobre, uma testa altiva, uma abundância de músculo que ondulava por debaixo da sua túnica desgastada, e feições ligeiras, como as dela. O seu cabelo loiro comprido caia pouco acima dos olhos e os seus olhos cor de avelã-esverdeados davam com os dela, embora um tom mais escuro. Ele tinha sido abençoado com uma força e com uma habilidade com a espada que combinava com a dos seus irmãos, embora ele fosse o mais novo dos quatro. O seu pai estava sempre a brincar dizendo que ele tinha caído do céu e Royce entendia: ele não compartilhava os traços escuros dos seus irmãos ou a estatura. Ele era como um estranho na sua própria família.

Eles abraçaram-se. Sabia tão bem ser abraçado com tanta força, ter alguém que o amava tanto quanto ele a amava a ela. Os dois eram, de facto, inseparáveis desde crianças, haviam crescido juntos a brincar naqueles campos, haviam jurado, mesmo naquela época, que no solstício de verão do seu décimo sétimo ano, se casariam. Enquanto crianças, tinha sido uma promessa verdadeiramente séria.

À medida que foram crescendo, ano após ano, não se foram afastando, como a maioria das crianças, mas sim aproximando-se mais. Contra todas as probabilidades, o seu voto passou de uma coisa infantil para algo mais forte, solene, inquebrável, ano após ano após ano. As suas vidas, ao que parece, nunca tinham estado destinadas a separarem-se.

Agora, por fim, incrivelmente, o dia tinha chegado. Ambos tinham dezassete anos, o solstício de verão havia chegado. Agora eles eram adultos, livres para escolher por si mesmo e, ali, debaixo daquela árvore, a ver o sol nascer, cada um deles sabia, com um entusiasmo vertiginoso, o que isso significava.

"A tua mãe está animada?", perguntou ela.

Royce sorriu.

"Acho que ela ama-te mais do que eu, se é que isso é possível", ele riu-se.

O riso de Genevieve atingiu a sua alma.

"E os teus pais?", perguntou ele.

O seu rosto ficou sombrio, só por um momento, e ele ficou desconsolado.

"Sou eu?", perguntou ele.

Ela abanou a cabeça.

"Eles amam-te", ela respondeu. "Eles só …", suspirou. "Nós ainda não somos casados. Para eles, nunca seria cedo de mais. Eles temem por mim."

Royce compreendeu. Os pais dela temiam os nobres. Camponeses solteiros como Royce e Genevieve não tinham direitos; se os nobres quisessem, poderiam vir e levar as mulheres deles, reclamá-las para si. Isto é, até eles serem casados. Depois, ficariam em segurança.

"Brevemente", disse Genevieve, com o seu sorriso a começar a brilhar.

"Eles estão aliviados porque sou eu, ou porque, uma vez casada, vais ficar a salvo dos nobres?"

Ela riu-se e bateu-lhe a brincar.

"Eles amam-te como o filho que nunca tiveram!", disse ela.

Ele agarrou-a pelos braços e beijou-a.

"Royce!", gritou uma voz.

Royce virou-se e viu os seus três irmãos a caminhar pela colina acima, num grande grupo, com as irmãs e primas de Genevieve juntamente com eles. Todos tinham foices e forquilhas, todos eles prontos para o trabalho do dia. Royce respirou fundo, sabendo que o tempo para as despedidas havia chegado. Eles eram camponeses e, afinal de contas, não se podiam dar ao luxo de tirar um dia inteiro de folga. O casamento teria de esperar pelo pôr-do-sol.

Royce não estava incomodado por trabalhar naquele dia, mas sentia-se mal por Genevieve. Ele desejava poder dar-lhe mais.

"Eu gostava que pudesses tirar o dia de folga", disse Royce.

Ela sorriu e depois riu-se.

"Trabalhar faz-me feliz. Distrai-me, especialmente, de ter de esperar tanto tempo para te ver novamente hoje", disse ela, inclinando-se e beijando o seu nariz.

Eles beijaram-se. Ela virou-se com um risinho e abraçou-se às suas irmãs e primas e, em pouco tempo, estava a saltar com elas pelos campos fora, todas tontas de felicidade neste dia de verão espetacular.

Os irmãos de Royce apareceram por detrás dele, tocando-lhe nos ombros. Os quatro foram para o outro lado da colina.

"Vamos pinga-amor!", disse Raymond, o filho mais velho, que era como um pai para Royce. "Podes esperar até logo à noite!"

Os seus outros dois irmãos riram-se.

"Ele está completamente apanhado por ela", Lofen acrescentou, o irmão do meio, mais baixo do que os outros, mas mais encorpado.

"Não há esperança para ti", Garet entrou na conversa. O mais jovem dos três, apenas alguns anos mais velho do que Royce, era o seu irmão mais próximo, no entanto, era também o que mais rivalizava com ele. "Ainda nem sequer casou e já está perdido."

Os três riram-se, provocando-o. Royce sorriu com eles e seguiram todos para os campos. Ele olhou uma última vez para trás para Genevieve e desapareceu colina abaixo, ficando aliviado quando ela olhou, também, para trás uma última vez e sorriu para ele de longe. O sorriso tinha-lhe restaurado a alma.

Esta  noite, meu amor, pensou. Esta noite.

*

Genevieve trabalhava os campos, levantando e balançando a sua foice, cercada pelas suas irmãs e primas, uma dúzia delas, todas a rirem-se alto naquele dia auspicioso, enquanto trabalhava frouxamente. Genevieve parava a cada poucos cortes, encostava-se à longa haste, olhava para os céus azuis e gloriosos campos de trigo amarelo e pensava em Royce. Ao fazê-lo, o seu coração batia mais rápido. Este era o dia com que ela sempre tinha sonhado, desde criança. Era o dia mais importante da sua vida. Depois daquele dia, ela e Royce viveriam juntos para o resto dos seus dias; depois daquele dia, eles teriam a sua própria cabana, uma simples habitação de uma assoalhada junto ao campo, um lugar humilde que lhe fora legado pelos pais deles. Seria um novo começo, um lugar para começar uma nova vida como marido e mulher.

Genevieve sorria só de pensar. Não havia nada que ela mais quisesse do que estar com Royce. Ele tinha estado sempre ali, ao seu lado, desde criança, e ela nunca tinha tido olhos para mais ninguém. Embora ele fosse o mais novo dos seus quatro irmãos, ela sempre sentiu que havia algo de especial acerca de Royce, algo de diferente nele. Ele era diferente de todos ao seu redor, de qualquer pessoa que já conhecera. Ela não sabia exatamente o quê e suspeitava que ele também não. Mas ela via algo nele, algo maior do que aquela aldeia, do que aquele campo. Era como se o destino dele estivesse noutro lugar.

"E os irmãos dele?", perguntou uma voz.

Genevieve despertou para a realidade. Ela virou-se e viu Sheila, a sua irmã mais velha, com risinhos, com duas das suas primas atrás dela.

"Afinal de contas, ele tem três! Não podes ficar com todos para ti! ", ela acrescentou, rindo-se.

"Sim, do que é que estás à espera?", a sua prima entrou na conversa. "Temos estado à espera que nos apresentes."

Genevieve riu-se.

"Eu te apresentei", respondeu ela. "Muitas vezes."

"Não o suficiente!", respondeu Sheila enquanto as outras se riam.

"Afinal, não deve a tua irmã casar-se com o irmão dele?"

Genevieve sorriu.

"Não havia nada que eu gostasse mais", respondeu ela. "Mas eu não posso falar por eles. Só conheço o coração de Royce."

"Convence-os!", insistiu a sua outra prima.

Genevieve riu-se novamente. "Vou fazer o meu melhor."

"E o que é que vais vestir?", a prima dela interrompeu. "Ainda não decidiste qual o vestido que…"

Um ruído repentino cortou o ar, um que imediatamente amedrontou Genevieve e a fez largar a sua foice e voltar-se para o horizonte. Ela percebeu, mesmo antes de o ouvir completamente, que era um som sinistro, um som que trazia problemas.

Ela virou-se e observou o horizonte e, ao fazê-lo, os seus piores medos foram confirmados. O som do galope tornou-se audível e, sobre o monte, apareceu um séquito de cavalos. Ela ficou apavorada ao ver que os seus cavaleiros estavam vestidos com as melhores sedas e ao ver a sua bandeira, verde e dourada, com um urso ao centro, anunciando a casa de Nors.

Os nobres estavam a chegar.

Genevieve ficou irada com o que via. Aqueles homens gananciosos tinham o dízimo após dízimo da sua família, das famílias de todos os camponeses. Eles tinham tirado tudo a todas as pessoas, até à última gota, e viviam como reis. E ainda assim, não era o suficiente.

Genevieve observava-os a galopar e rezava intensamente para que eles estivessem apenas de passagem, para que não virassem para o seu lado. Afinal, ela não os via naqueles campos há muitos ciclos solares.

No entanto, Genevieve viu com desespero que eles, de repente, se viraram e se dirigiram diretamente para ela.

Não, desejou ela silenciosamente. Agora não. Não aqui. Hoje não.

No entanto, eles continuaram a cavalgar, aproximando-se cada vez mais, claramente indo na direção dela. A notícia do dia do seu casamento provavelmente ter-se-ia espalhado, o que os deixava sempre ansiosos para apanharem o que conseguissem, antes que fosse tarde demais.

As outras miúdas reuniram-se em torno dela, instintivamente, aproximando-se. Sheila virou-se para ela e agarrou-lhe o braço freneticamente.

"CORRE!", ordenou, empurrando-a.

Genevieve virou-se e viu uma área aberta que se estendia por milhas. Ela sabia o quão tolo seria – ela não iria longe. Ela seria ainda assim levada – mas sem dignidade.

"Não", ela respondeu, com frieza, calma.

Em vez disso, ela agarrou com força a sua foice e segurou-a diante dela.

"Vou enfrentá-los de cabeça erguida."

Elas olharam para ela, claramente perplexas.

"Com a tua foice?", perguntou a sua prima em dúvida.

"Talvez eles não venham com maldade", entrou na conversa a sua outra prima.

Mas Genevieve via-os a chegar. Lentamente, abanou a cabeça.

"Eles vêm", ela respondeu.

Ela viu-os perto, esperando que abrandassem – contudo, para sua surpresa, eles não o fizeram. Ao centro cavalgava Manfor, um nobre privilegiado de vinte anos de idade, a quem ela desprezava, o duque do reino, um menino com lábios grandes, olhos claros, cabelos cacheados dourados e um sorriso permanente. Parecia que estava constantemente a olhar para o mundo de cima para baixo.

Quando ele se aproximou, Genevieve viu que ele tinha um sorriso cruel no rosto, enquanto olhava para o seu corpo como se ela fosse um pedaço de carne. A menos de vinte jardas de distância, Genevieve levantou a foice e deu um passo para a frente.

"Eles não me levarão", disse ela resignada, pensando em Royce. Mais do que qualquer coisa, ela desejava que ele estivesse ao seu lado agora.

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