Arena Um: Traficantes De Escravos - Морган Райс 4 стр.


Tenho conservado nosso isqueiro utilizando-o com moderação e lhe passando um pouquinho de gasolina da motocicleta a cada algumas semanas. Eu agradeço a Deus todos os dias pela moto de meu pai e sou muito grata que ele tenha enchido seu tanque uma última vez: é a única coisa que possuímos e que me faz crer que ainda temos uma vantagem, que ainda temos algo valioso, um jeito de sobreviver se tudo for para o inferno. Papai sempre manteve a moto na pequena garagem anexada a casa, porém, quando chegamos, após a guerra, a primeira coisa que fiz foi removê-la dali e levá-la até o topo da colina, dentro da floresta, escondendo-a entre os arbustos e galhos e espinhos tão espessos para que ninguém a encontrasse. Eu pensei que, se nossa casa um dia fosse descoberta, a primeira coisa que fariam seria revistar a garagem.

Eu sou extremamente grata que meu pai tenha me ensinado como pilotá-la quando eu era mais nova apesar dos protestos de mamãe. Foi mais difícil de aprender do que a maioria das outras motos devido ao sidecar que ela tem. Eu me lembro de que, aos doze anos eu, aterrorizada, aprendi a conduzi-la com meu pai, que se sentava no sidecar e me dava ordens toda vez que eu deixava o motor morrer. Aprendi nessas estradas íngremes e implacáveis, lembro-me de pensar que iríamos morrer. Recordo-me de olhar para a beira da estrada, vendo a queda e, chorando, insistir que meu pai pilotasse. Mas ele se recusou. Ficou sentado, teimoso, por mais de uma hora até que eu parasse de chorar e tentasse mais uma vez. E, de algum jeito, eu acabei aprendendo. Em resumo, essa foi minha infância.

Eu não me aproximei da moto desde o dia em que eu a escondi, sequer me arrisco a vê-la, a não ser quando eu preciso pegar combustível – e, mesmo assim, só o faço à noite. Imagino que, se um dia a gente estiver em apuros e precisarmos dar o fora daqui o quanto antes, eu colocarei Bree e Sasha no sidecar e levarei todo mundo para longe em segurança. Mas, na realidade, eu não tenho ideia para onde iríamos. De acordo com tudo que já vi e ouvi, o resto do mundo é uma terra devastada, cheia de criminosos violentos, gangues e poucos sobreviventes. Os poucos violentos que sobreviveram se concentraram nas cidades, sequestrando e escravizando quem eles encontram, ou para servirem a eles mesmos ou para participarem dos jogos mortais nas arenas. Acredito que eu e Bree somos uns dos poucos sobreviventes que ainda vivem livremente, por conta própria, fora das cidades. E uns dos poucos que ainda não morreram de fome.

Acendo a vela, Sasha me seguindo enquanto eu caminho lentamente pela casa escura. Suponho que Bree esteja dormindo e isso me preocupa: ela geralmente não dorme tanto assim. Eu paro na frente de sua porta, indecisa se devo acordá-la. Ao parar ali, olho para cima e me assusto com meu próprio reflexo no pequeno espelho. Vejo como estou muito mais velha, como toda vez que me olho no espelho. Meu rosto, magro e anguloso, está corado pelo frio, meu cabelo castanho claro cai sobre meus ombros, emoldurando minha face e meus olhos acinzentados me encaram, como se pertencessem à outra pessoa que eu não reconheço. São severos e penetrantes. Papai sempre me dizia que eu tinha olhos de lobo. Mamãe sempre dizia que eram lindos. Não sabia em quem acreditar.

Eu rapidamente desvio o olhar, não querendo me ver. Estendo minha mão e viro o espelho para que isso não se repita.

Lentamente, eu abro a porta do quarto de Bree. E, no segundo que o faço, Sasha entra e corre para o lado dela, deitando-se e apoiando seu queixo no peito de minha irmã, enquanto lhe lambe o rosto. Nunca deixo de me impressionar o quanto essas suas são unidas; às vezes sinto que são mais unidas do que nós.

Bree abre os olhos devagar e os mantém semicerrados enquanto olha para a escuridão.

“Brooke?” ela pergunta.

“Sou eu,” eu digo, em voz baixa. “Estou em casa.”

Ela se senta e abre um sorriso, seus olhos se iluminam ao me reconhecer. Ela está em um colchão barato no chão, então retira sua fina manta e começa a se levantar, ainda de pijama. Está se movendo mais devagar que o normal.

Eu me abaixo e lhe dou um abraço.

“Tenho uma surpresa para você,” eu falo, mal conseguindo esconder minha ansiedade.

Bree arregala os olhos, então os fecha e estende as mãos abertas, aguardando. Ela é tão confiante, tão otimista, que me impressiona. Estou indecisa sobre o que devo lhe dar primeiro e então me decido pelo chocolate. Coloco a mão em meu bolso, tiro a barra e calmamente a ponho em suas mãos. Ela abre os olhos e olha para baixo, seus olhos semicerrados sob a luz, incerta. Aproximo a vela.

“O que é isso?” ela pergunta.

“Chocolate,” lhe respondo.

Ela me olha como se esperasse por uma pegadinha.

“É sério,” eu falo.

“Mas aonde você conseguiu isso?” ela pergunta, sem entender. Ela olha para baixo como se um asteroide tivesse acabado de aterrissar em suas mãos. Eu não a culpo: não existem mais lojas, nem pessoas por ai, nem nenhum lugar em um raio de cento e sessenta quilômetros aonde eu pudesse encontrar algo assim.

Eu lhe dou um sorriso. “Papai Noel me deu, é para você. É um presente de natal adiantado.”

Ela franze o cenho. “Não, sério,” ela insiste.

Respiro profundamente ao me dar conta de que é hora de lhe contar sobre nossa nova casa, sobre sair daqui amanhã. Eu tento encontrar a melhor forma lhe de dar as novidades. Espero que ela fique tão animada quanto eu – mas, com crianças, nunca se sabe. Uma parte de mim se preocupa que talvez ela sinta-se apegada a este lugar e não queira ir embora.

“Bree, eu tenho grandes notícias para te dar,” eu falo ao me inclinar para baixo e segurar seus ombros. “Eu encontrei um lugar incrível hoje, lá no alto da montanha. É uma casinha de pedra, perfeita para nós. Aconchegante, quente e segura; e tem uma lareira linda, na qual podemos acendê-la tosas as noites. E o melhor de tudo, tem todo o tipo de alimento lá. Como este chocolate.”

Bree olha para o chocolate, estudando-o, e seus olhos se arregalam ainda mais quando ela percebe que é real. Ela cuidadosamente tira a embalagem e sente seu cheiro. Ela fecha seus olhos e sorri e então se aproxima para dar uma mordida – mas, de repente, se detém. Ela olha para mim, preocupada.

“Mas e você?” ela pergunta. “Tem só uma barra?”

Esta é Bree, sempre pensando nos outros, mesmo quando passa fome. “Sua vez primeiro,” eu falo. “Não tem problema”.

Ela empurra a embalagem para trás e dá uma grande mordida. Seu rosto, desamparado de fome, se enche de euforia.

“Mastigue devagar,” eu aviso. “Você não vai querer ter dor de estômago.”

Ela desacelera, apreciando cada mordida. Quebra um pedaço grande e coloca na minha mão. “É sua vez,” ela diz.

Eu lentamente provo o chocolate, pegando uma pequena mordida, deixando-o na ponta de minha língua. Eu lambo e mastigo, saboreando cada momento. O gosto e o cheiro invadem meus sentidos. É provavelmente a melhor coisa que eu já comi.

Sasha protesta, aproximando seu nariz do chocolate e, em seguida, Bree arranca mais um pedaço e dá para ela. Sasha o tira de seus dedos e engole tudo de uma só vez. Bree ri, encantada com ela, como sempre. Então, em uma surpreendente demonstração de autocontrole, Bree embrulha a metade que sobrou da barra, estende as mãos e sabiamente a põe no alto da cômoda, longe do alcance de Sasha. Bree parece fraca, mas posso ver que está mais animada.

“O que é isso?” ela pergunta, apontando para minha cintura.

Por um momento, eu não sei do que ela está falando, mas aí olho para baixo e vejo o ursinho de pelúcia. Com toda essa euforia, eu havia quase esquecido. Eu o alcanço e entrego para ela.

“Encontrei em nossa nova casa,” eu falo. “É para você.”

Os olhos dela se arregalam de emoção quando ela pega o ursinho, e então o abraça em seu peito e o balança para frente e para trás.

“Eu adorei!” Bree exclama, seus olhos brilhando. “Quando vamos nos mudar? Mal posso esperar!”

Que alívio. Antes que eu possa responder, Sasha mete o nariz no novo urso de pelúcia de Bree, farejando; Bree o esfrega em seu rosto, brincando, e Sasha o pega e sai correndo pela casa.

“Ei!” Bree grita, começando um ataque de risadas enquanto corre atrás dela.

As duas correm pela sala de estar, ambas imersas na luta pelo ursinho. Não sei quem está se divertindo mais.

Eu as sigo, transportando a vela com cuidado para que não se apague e me dirijo diretamente para a pilha de lenha.  Coloco alguns dos galhos menores na lareira e então boto um punhado de folhas secas  que estavam em um cesto próximo à lareira. Estou satisfeita de ter juntado bastante dessas folhas no último outono para acendermos o fogo. Elas funcionam como um feitiço. É só colocar folhas secas embaixo da lenha, acender o isqueiro nelas e logo aparece uma chama que começa a tocar na madeira. Eu continuo alimentando a lareira com folhas até que a lenha finalmente pegue fogo. E logo apago a vela, guardando-a para outra ocasião.

“Vamos fazer uma fogueira?” Bree grita, animada.

“Sim,” eu digo. “Hoje vamos comemorar. É nossa última noite aqui.”

“Viva!” Bree exclama, dando saltos, e Sasha late junto com ela, tomada pela alegria. Bree se aproxima e pega um pouco da lenha, me ajudando com o fogo. Nós alimentamos as chamas com cuidado, dando espaço para o ar, Bree assopra, avivando as chamas. Quando a lenha enfim pega fogo, ponho uma madeira grossa em cima. E sigo empilhando troncos grossos, até termos uma fogueira.

Em pouco tempo, a sala está iluminada e eu já posso sentir o calor. Ficamos na frente da lareira, estendo minhas mãos, esfregando-as, deixando que o calor penetre meus dedos. Lentamente, sinto a sensibilidade voltando. Aos poucos, me descongelo do longo dia passado ao ar livre e começo a me sentir eu mesma de novo.

“O que é isto?” Bree pergunta, apontando para o chão. “Parece um peixe!”

Ela vai até ele, o agarra e, ao levantá-lo, o peixe escapa de suas mãos. Bree ri, e Sasha, não querendo perder o momento, avança sobre ele com suas patas, o mandando para longe no chão. “Onde você conseguiu um?” Bree grita.

Eu o pego antes que Sasha possa danificá-lo mais, abro a porta e o jogo lá fora, na neve, onde ele será mais bem preservado, longe do calor e fecho a porta atrás de mim.

“Essa é minha surpresa,” eu falo. “Nós teremos janta hoje!”

Bree corre e me dá um grande abraço. Sasha late, como se entendesse. Eu a abraço de volta.

“Eu tenho mais duas surpresas para você”, anuncio com um sorriso. “Elas são para sobremesa. Você quer esperar o jantar? O que agora?”

“Agora!” ela grita, eufórica.

Eu também sorrio, animada. Pelo menos isso a deixará controlada na janta.

Coloco a mão em meu bolso e tiro o frasco de geleia. Bree o olha com curiosidade, duvidando, e então eu retiro a tampa e a coloco debaixo de seu nariz. “Feche os olhos,” eu falo.

Ela fecha. “Agora, sinta o cheiro”.

Ela respira profundamente e um sorriso se abre em seu rosto. Ela abre os olhos.

“Tem cheiro de framboesas!” ela exclama.

“É geleia. Vá em frente. Prove.”

Bree mete dois dedos, pega bastante geleia e come. Seus olhos se iluminam.

“Uau,” ela fala, enquanto pega mais um pouco e dá para Sasha, que avança sem hesitar para comer. Bree ri  histericamente e eu fecho o frasco e deixo o vidro na estante, fora do alcance de Sasha.

“Isso também é da nossa nova casa?” ela pergunta.

Eu concordo com a cabeça, feliz em ver que ela já considera aquela casa como nosso lar.

“E ainda tem uma última surpresa,” eu falo “mas esta aqui eu vou deixar para depois do jantar.”

Tiro a garrafa térmica do meu cinto e a coloco no alto da estante, fora de vista, para que ela não saiba o que é. Posso vê-la alongando o pescoço, mas eu escondi bem.

“Confie em mim,” eu falo. “Vai ser muito bom.”

*

Como eu não quero que a casa cheire a peixe, decido encarar o frio e cozinhar o salmão do lado de fora. Levo minha faca e começo a prepará-lo, apoiando-o em um toco de árvore enquanto me ajoelho sobre ele na neve. Eu não sei realmente o que estou fazendo, mas sei que não comemos a cabeça nem a cauda então começo a cortar essas partes.

Também suponho que não iremos comer as nadadeiras, por isso as retiro – nem as escamas, que tento removê-las o melhor que posso. Logo percebo que devemos abri-lo para comê-lo, então fatio o que sobrou na metade. O peixe tem entranhas rosas, grossas e um monte de ossinhos. Não sei mais o que fazer então acredito que esteja pronto para assar.

Antes de voltar para casa, sinto a necessidade de lavar minhas mãos. Me abaixo, pego um punhado de neve e enxáguo minhas mãos com isso, grata pela neve – porque normalmente eu teria que andar até o córrego mais próximo, já que não temos água corrente. Levanto-me e, antes de entrar, paro por um segundo e examino os arredores. A princípio, procuro ouvir, como sempre, por qualquer sinal de barulho, de perigo. Após alguns segundos, percebo que o mundo está tranquilo como deveria estar. Finalmente, aos pouco, eu relaxo, respiro profundamente, sentindo os flocos de neve em minhas bochechas e disfruto desta incrível tranquilidade, me dou conta de como esta paisagem é absolutamente linda. Os pinheiros altíssimos estão cobertos de branco, a neve cai sem parar do céu púrpuro e o mundo parece perfeito, como um conto de fadas. A lareira resplandece através da janela e, daqui, nossa casa parece o lugar mais acolhedor do mundo.

Regresso a casa com o peixe, fechando a porta atrás de mim, e tenho a ótima sensação de entrar em um lugar tão quente, com a suave luz do fogo refletindo em tudo. Bree está cuidando bem do fogo, como sempre, adicionando lenha sabiamente, as chamas agora chegam a uma altura maior ainda. Ela está colocando os talheres no chão, próximos à lareira, com facas e garfos da cozinha. Sasha está sentada ao seu lado, atenta, observando cada movimento.

Eu levo o peixe até o fogo. Não sei realmente como se cozinha isso, acredito que eu deva colocá-lo no fogo por um tempo, deixá-lo assando e virá-lo algumas vezes, espero que isso funcione. Bree lê minha mente: ela vai até a cozinha e volta com uma faca afiada e dois espetos grandes. Ela espeta cada pedaço de peixe, pega sua parte e coloca sobre as chamas. Eu a imito. Os instintos domésticos de Bree são melhores que os meus, eu sou grata por sua ajuda. Nós sempre formamos uma boa equipe.

Nós duas ficamos ali, olhando as chamas, paralisadas, segurando nossos peixes no fogo até nossos braços começarem a cansar. O cheiro do peixe encheu a casa e, depois de uns dez minutos, sinto um incômodo em meu estômago e fico impaciente de fome. Decido que meu peixe já está assado, afinal, lembrei que as pessoas, às vezes, comem peixe cru, então não tem como me fazer mal. Bree parece concordar e, assim, nós duas colocamos nossos pedaços nos pratos e nos sentamos no chão, uma ao lado da outra, de costas para o sofá e nossos pés voltados para o fogo.

“Cuidado,” eu aviso. “Ainda tem muitos ossos dentro.”

Tiro algumas espinhas e Bree também o faz. Quando termino de triá-las, eu pego um pedaço da carne rosada, quente ao toque, e levo à boca, me preparando.

Na verdade, o sabor é bom. Podia ter um pouco de sal ou algum tempero, mas pelo menos parece cozido e tem o sabor mais fresco possível.  Eu posso sentir a necessidade de proteínas de meu organismo. Bree devora seu peixe e posso notar o alívio em seu rosto. Sasha senta-se ao seu lado, observando, lambendo seus beiços até que Bree escolha um belo pedaço desossado para alimentá-la. Sasha o mastiga e engole, lambe seus lábios e volta a nos olhar, querendo mais.

“Sasha, aqui,” eu falo.

Ela vem correndo, pego um pouco do meu peixe, tiro os ossos e dou para ela. Ela engole tudo em segundos. Antes que eu perceba, meu peixe já acabou – assim como o de Bree – e fico surpresa de ver meu estômago roncando novamente. Eu gostaria de ter pescado mais. Mesmo assim, foi o maior jantar que tivemos em semanas, e eu tento me contentar com o que temos.

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