Subiu as escadas com o livro e se sentou numa cadeira ao lado da cama, assim como seu pai costumava fazer. Ao começar a ler, Emily sentiu as lembranças aflorarem em sua mente. Sua própria voz se transformou na do seu pai, enquanto sentia como se voltasse no tempo.
Ela estava acomodada na cama, os lençóis indo até suas axilas. O quarto estava à luz de velas. Ela podia ver o corrimão do mezzanino na sua frente e percebeu que estava no imenso quarto nos fundos da casa, o quarto que ela e Charlotte compartilhavam. Lutava para permanecer acordada, para continuar ouvindo a maravilhosa história que seu pai estava lendo, suas pálpebras começando pesar. Um momento depois, percebeu a escuridão envolvê-la e o som dos passos de seu pai enquanto descia as escadas do mezzanino e se dirigia para a porta. Houve uma explosão de luz vindo do corredor enquanto ele abria a porta, e em seguida ouviu uma voz dizer: “Estão dormindo?” Emily se perguntou de quem era a voz. Não a reconheceu. Não era da sua mãe, porque ela havia ficado em Nova York. Mas antes que tivesse a chance de pensar mais a respeito, caiu no sono.
Emily voltou ao presente, num sobressalto. O quarto estava completamente escuro agora, a lua cheia lá fora iluminando-o com uma luz suave. Havia um lençol sobre seus joelhos. Ela deve ter adormecido enquanto lia e Daniel o pôs ali.
Na cama à sua frente, Chantelle dormia tranquila. Emily se levantou com o corpo dolorido por ficar sentada por tanto tempo. Realmente precisava dormir numa cama de verdade, pra variar!
Enquanto caminhava até a porta, se perguntou sobre a lembrança, sobre a voz misteriosa que ouvira falar com seu pai. Desvendar o mistério do desaparecimento do seu pai era algo em que vinha trabalhando desde sua chegada na casa. Mas agora, com Chantelle aqui, sua mente se ocupara com outras coisas. Ela queria olhar para a frente e planejar o futuro, não para trás, para um passado que já não existia.
Enquanto fechava a porta do quarto de Chantelle e caminhava pelo corredor, Emily se perguntou o que sua nova vida iria trazer, como seria agora que tinha uma família. Estava surpresa, pois havia gostado muito daquele dia, sentia-se feliz e realizada. Cada um dos pequenos momentos, quando Chantelle havia procurado-a em busca de conforto e segurança, tinham um gostinho de vitória. Sua única preocupação era Daniel. Ele não tinha aceitado tudo tão naturalmente. Precisaria de mais tempo.
Enquanto pensava nisso, chegou na grande janela no topo da escada. Do lado de fora, só havia escuridão, a lua de um branco sólido e as estrelas cintilando. Não havia muita luz, mas o suficiente para Emily distinguir Daniel de pé ao lado de sua moto. Emily observou, sua alegria rapidamente se transformando em angústia enquanto ele colocava o capacete, subia na moto e acelerava pelo caminho em frente à casa, até desaparecer de vista.
CAPÍTULO TRÊS
Emily estava de pé no terraço, esperando ansiosamente pela volta de Daniel. Retorcia as mãos enquanto seus piores medos dançavam em sua mente. Ele havia prometido não fazer isso, não sair em sua moto sem avisar. Se estava quebrando aquela promessa, seria porque estava fugindo delas? Será que o dia que ele passou com Chantelle foi tão difícil que havia decidido abandoná-la para Emily cuidar? Não queria pensar coisas tão terríveis, queria confiar nele, mas ele já a havia decepcionado daquela forma antes.
Emily se apoiou na porta buscando apoio, com a respiração entrecortada. Quando Daniel chegou, na noite anterior, parecia um soldado voltando da guerra. Agora, enquanto Emily esperava por ele com um nó cada vez maior no estômago, sentia que estava esperando por aquele soldado mais uma vez.
Nesse instante, ouviu o som do motor de uma moto ao longe. Ela se esforçou para ouvir, com cada vez mais esperança. O som foi se tornando mais alto, até que ela se convenceu de que era realmente Daniel voltando para casa. Fechou bem os olhos com alívio e deu um profundo suspiro.
A moto apareceu na esquina e subiu a rua na direção dela, iluminando-a com a luz do farol, fazendo-a espremer os olhos. Então, ele parou. O motor parou e o silêncio os envolveu.
Emily desceu os degraus apressada, enquanto Daniel tirava o capacete. “Está acordada”, ele disse, com um sorriso. “Não sabia se você já havia se deitado.” Então, seu sorriso desapareceu ao ver a expressão de Emily.
“Seu idiota”, ela rosnou. “Onde estava?”
Daniel franziu o cenho. “Fui abastacer a moto. Só saí por uns 15 minutos”.
“Não pode fazer isso”, Emily gritou. “Sumir assim. Não tinha ideia de onde estava”.
“Desculpe”, Daniel balbuciou. “Você tinha caído no sono. Pensei em abastecer a moto rapidamente, no posto de gasolina”.
Emily respirou fundo, tentando se acalmar. Sentiu Daniel passar o braço pelos ombros dela.
“Não pode sumir assim”, Emily falou, sem ar. “Certo?”
“Certo”, ele disse, sobre a cabeça dela. “Entendi. Desculpe”.
Permaneceram assim, abraçados um ao outro sob a lua e as estrelas, por um longo, longo tempo.
“Não vou abandoná-la, Emily”, Daniel disse, por fim. “Precisa confiar em mim”.
“Nem sempre você facilita as coisas pra mim”, Emily replicou, saindo do abraço.
“Eu sei”, Daniel concordou. “Mas não vou a lugar nenhum. Agora moramos juntos, lembra?”
Emily assentiu. Era prova de seu compromisso, mas não a confortava plenamente.
Daniel continuou. “E enquanto estava fora, pensei na antiga garagem, e como podemos transformá-la num chalé, como você queria. Eu mesmo posso fazer todo o trabalho, como agradecimento por tudo que tem feito por mim e minha filha”.
Emily começou a se sentir bem novamente, a angústia que havia se formado começava finalmente a se derreter.
“Será uma ótima fonte de renda para você”, Daniel acrescentou. “Então, quando Chantelle entrar na adolescência, poderíamos deixá-la usar o chalé, dar a ela um pouco de espaço, longe da chatice da mãe e do pai.
As palavras dele tocaram-na profundamente. Daniel não conseguia projetar seu relacionamento mais do que alguns meses à frente. Agora, estava falando de décadas. Estava se referindo a ela como a “mãe”. Pela primeira vez, ele estava vendo-os como uma unidade, como duas metades de um time.
Mas enquanto Daniel e Emily dormiam um nos braços do outro naquela noite, os medos de Emily não paravam de surgir em sua mente. O pequeno incidente com a moto havia acordado novamente seu antigo medo do abandono. Há apenas poucas semanas, estava planejando uma vida sem Daniel. Agora, de repente, ele parecia comprometido com ela. Poderia mudar daquele modo, tão facilmente, tão rapidamente? E era porque ele realmente havia percebido como o relacionamento deles era importante?
Ou ele estava apenas sendo arrastado, por causa de Chantelle?
*
Na manhã seguinte, Emily acordou cedo, quase num sobressalto. Ao perceber que Daniel estava na cama a seu lado, relaxou e voltou a se afundar no travesseiro, respirando profundamente. Não deveria sentir alívio ao ver Daniel ao seu lado. Deveria se sentir feliz.
Fitou o rosto adormecido de namorado e sentiu a angústia derreter. Sentia-se tão bem ao tê-lo ali, de volta para ela, por estarem todos juntos. Não deveria ter duvidado dele quando falou que voltaria para ela. E não deveria ter exgerado daquela maneira em relação ao passeio de moto da última noite.
Daniel ainda dormia profundamente, então Emily decidiu deixá-lo dormir. Ele deve estar exausto da longa viagem e com todas aquelas emoções, e precisa recuperar o sono perdido. Estava certa de que era plenamente capaz de vestir Chantelle e preparar-lhe o café da manhã sozinha. Depois, poderia mostrar as galinhas à menina e passear com ela e os cães pela praia.
Animada, Emily rapidamente tomou um banho e vestiu-se. Pronta para o dia, saiu do quarto, deixando Daniel ainda adormecido para trás, e abriu a porta do quarto ao lado. Para seu horror, a cama de Chantelle estava vazia.
Emily se sentiu enjoada. Onde a garotinha poderia estar?
Tomada pelo pânico, Emily começou a imaginar um milhão de cenários em sua mente: Chantelle havia encontrado a porta aberta para a plataforma do teto e caído do telhado; encontrado um dos celeiros abandonados do terreno dos fundos e sido esmagada por algum entulho; podia ter ido até a praia e se afogado no mar. Mas antes que Emily tivesse a chance de gritar por Daniel, ouviu o som de risadas vindo de fora.
Emily correu para a janela e puxou as cortinas. No quintal, Chantelle brincava com Mogsy e Chuva, rindo e gritando enquanto os cães pulavam nela e corriam animados em círculos ao seu redor. Chantelle ainda vestia a grande camiseta que Emily lhe havia dado para dormir. Seus pés estavam descalços.
Desceu as escadas correndo. Não queria assustar a menina, mas também não pensava que era uma boa ideia ela estar do lado de fora sozinha e mal vestida. Apesar de sentir que Sunset Harbor era um lugar seguro, ela mesma tinha crescido na cidade de Nova York e sempre sentiria uma certa ansiedade em relação às coisas terríveis que as pessoas podiam fazer umas com as outras.
Apoiando-se na porta dos fundos, Emily gritou por Chantelle. A menina levantou os olhos, com um largo sorriso. Seus pés estavam verdes, de correr na grama úmida.
“Entre, querida”, Emily chamou. “Vou fazer panquecas”.
“Quero brincar!” Chantelle replicou.
“Daqui a pouco”, Emily disse, ainda tentando parecer calma e amigável. “Primeiro, você precisa tomar café da manhã. Depois de se vestir, podemos levar os cães para brincar na praia. Que tal?”
Chantelle franziu o cenho e ficou com o rosto vermelho. Pela primeira vez, Emily teve uma ideia dos problemas que Chantelle havia vivenciado. Em sua expressão sombria, ela viu raiva e amargura. Sabia que não eram direcionadas a ela, mas para esse mundo terrível, as pessoas terríveis que ela conheceu e as terríveis experiêncis que teve a infelicidade de viver. Estava provavelmente apenas aparecendo agora porque Emily e Daniel haviam oferecido um ambiente seguro no qual Chantelle poderia explorar aquele lado de si mesma sem o medo de ser punida.
De repente, Chantelle inclinou a a cabeça para trás e começou a chorar aos berros. Emily respirou fundo. Pensou nas milhares de mães que ela tinha visto na vida lidando com a birra de uma criança, suas expressões cansadas, o constrangimento misturado à raiva. Mas sabia que, se queria que Chantelle confiasse nela e crescesse feliz e bem ajustada, perder a calma não era uma opção.
Ela entrou no quintal e pegou na mão da menina. “Vamos, querida”, ela disse, apesar do choro de Chantelle quase perfurar seus tímpanos.
Nesse instante, Emily notou alguém se aproximando. Trevor. É claro. É típico dele aproveitar esses momentos para vir atormentá-la.
“O que foi, Trevor?” Emily sibilou, irritada demais para ligar para formalidades.
“O que acha que pode ser?” Trevor murmurou. “Não são nem sete da manhã e esta criança está fazendo uma algazarra no quintal. Ela está perturbando meu direito ao silêncio”.
Chantelle se calou imediatamente. Pegou na mão de Emily, quase que pedindo desculpas por tê-la colocado em apuros.
“Só estamos nos adaptando”, Emily disse com um suspiro, surpresa ao ver como se importava pouco com a acidez de Trevor ultimamente. “E Chantelle vai começar a escola amanhã, então, não acontecerá novamente”.
“Sempre haverá os finais de semana”, Trevor falou com sarcasmo.
“Vamos garantir que não o acordaremos antes das sete novamente”, Emily suspirou. “Não é, Chantelle?”
Mas quando baixou os olhos para a menina, viu que lágrimas corriam pelo seu rosto, e que ela estava tremendo de medo. Vê-la tão angustiada fez algo entrar em erupção dentro de Emily, um súbito instinto materno para defender sua filha.
Virou-se para Trevor, fuminando, sentindo o calor subir para seu rosto. “Sabe de uma coisa, Trevor? Chntelle pode brincar no quintal dela quando quiser. Minha casa, minha filha, minhas regras”.
Trevor pareceu pego de surpresa com a reação dela. Mas se recuperou rapidamente, voltando à sua expressão habitual de desprezo. “Mas ela não é sua filha, é?”
“Ela está sob MEUS cuidados”, Emily exclamou. “Sou responsável por ela, e farei tudo que puder para protegê-la de homens maus como você”.
Pela primeira vez, ele pareceu humilhado. Emily não estava preparada para ouvir mais nada vindo de Trevor, então agarrou Chantelle pela cintura e a tomou nos braços. A menina tremia tanto que Emily se angústiou. Ela já havia passado por tanta coisa em sua curta vida, a última coisa que precisava era testemunhar a monstruosidade de Trevor Mann.
Emily carregou-a para dentro e bateu a porta dos fundos. Nunca havia sentido tamanha explosão de emoção, do desejo de amar e proteger a menina sob seus cuidados.
“Desculpe!” Chantelle gritou imediatamente assim que entraram. Apertou Emily tão forte que Emily pensou que seu pescoço ia quebrar.
“Chantelle, tudo bem”, falou, gentil. “Trevor fica com raiva de tudo. E você não sabia que ia acordá-lo. Só que, da próxima vez, sempre peça permissão antes de sair, tá bom? Promete?”
Chantelle assentiu com a cabeça de uma maneira que sugeria que estava desesperada para fazer as pazes com Emily.
“A mamãe sempre me disse para brincar do lado de fora”, Chantelle disse, ainda chorando. “Não gostava que eu ficasse atrapalhando ela”.
O coração de Emily apertou. A pobre menina deve ter ficado muito confusa quando Emily disse para ela entrar. Sentiu-se mal por misturar as mensagens.
“Bem, eu e Daniel queremos brincar sempre com você”, Emily disse. “Certo?”
Chantelle assentiu. Pelo menos, suas lágrimas secaram e Emily colocou a menina no chão novamente.
Emily a levou para a cozinha, onde Daniel acabava de entrar. “O que está acontecendo?” ele perguntou. “Ouvi choro. Você se machucou, Chantelle?”
A menina balançou a cabeça.
“Estava justamente dizendo a Chantelle que eu e você queremos brincar com ela quando ela for lá pra fora, então, ela deve pedir a um de nós para ir junto”, Emily disse, olhando para Daniel de maneira a dizer a ele para não forçar mais o assunto.
Ele pareceu entender o que ela estava dizendo e concordou. “Fico feliz que estejam bem agora”, ele disse. “Posso fazer o café da manhã?”
Chantelle assentiu animadamente foi com Emily para a mesa, esperar pela comida.
“Então”, Daniel disse enquanto se sentava um tempinho depois, com uma pilha de panquecas. “O que vamos fazer hoje, já que as aulas só começam amanhã?”
Emily hesitou. Podia notar que Daniel estava perdido também pela expressão de leve pânico em seu rosto. Nenhum dos dois teve que cuidar de uma criança antes, e ambos sentiam a pressão de garantir que Chantelle se divertisse o máximo possível para compensar o terrível começo que teve na vida.
“Acho que Chantelle gostaria de ir para algum lugar com os cachorros”, Emily disse, olhando para a menina em busca de aprovação.
Chantelle assentiu.
“Tenho uma ideia”, Daniel disse. “Jason e Vanessa levaram sua bebê, Katy, para colher maçãs ontem na Fazenda Outonal. Gostariam de ir?”
“Nunca estive numa fazenda!” Chantelle disse, quase sem fôlego. “Eles têm animais? Eu adoro animais! Porcos são meus favoritos. Lá tem porcos?”
Os olhos de Emily se arregalaram. Nunca tinha ouvido Chantelle dizer tantas palavras de uma só vez. A ideia de passar um tempo com os animais estava lhe fazendo sair da concha.
“Eles têm um pequeno zoo”, Emily disse. “Com coelhos e porquinhos-da-índia”.