“Coelhos!” Chantelle exclamou. “Coelhos são meus favoritos mais favoritos”.
“Bem”, Daniel disse com um sorriso. “Acho que vamos para a Fazenda Outonal hoje”.
*
Mogsy e Chuva latiram, animados, durante todo o trajeto até a Fazenda. Emily e Daniel não os levavam com frequência para lugar nenhum além da praia e do parque, então, percebiam que algo empolgante estava acontecendo. Mas não importava o quanto os cães pareciam felizes, era pouco em comparação à alegria de Chantelle. Durante toda a viagem, ela ficou olhando pela janela com os olhos arregalados, aproveitando a vista das belas ruas alinhadas por árvores, as folhas começando a passar do verde para o laranja. Emily via com gosto a menina admirar, maravilhada, o cenário. Aquecia seu coração saber que a desconectaram do mundo de privação, salvando-a de sua vida terrível, e agora podiam mostrar para ela o quanto o mundo podia ser lindo.
Daniel parou no estacionamento da Fazenda Outonal, que não passava de um campo lamacento. Ja havia muitos carros, apesar de ser cedo; estava claro que todos os pais de Sunset Harbor e região haviam decidido que colher maçãs seria sua última atividade com os filhos antes da volta às aulas.
Enquanto Daniel estacionava, Chantelle rapidamente desafivelou o cinto e agarrou o trinco da porta.
“Calma, não tão rápido”, Daniel disse. “Precisamos pôr a coleira dos cachorros antes ou eles vão fugir, e nunca mais os veremos”.
“Desculpe”, Chantelle disse, enterrando sua cabeça entre os ombros, envergonhada.
Daniel olhou para Emily com um olhar suplicante. Ela apenas meneou a cabeça, comunicando silenciosamente para ele que não deviam exagerar as coisas, que não havia nada que pudessem fazer para a menina se sentir melhor, e que amor, tempo e paciência eram as únicas coisas que poderiam ensinar a Chantelle a não se sentir envergonhada de si mesma. Ela se sentiu mal por Daniel, por sua aparente falta de intuição nessas situações. Ele parecia tão deslocado às vezes, e ainda assim Emily sentiu que estava assumindo a maternidade com toda a naturalidade.
Emily prendeu as coleiras dos animais e todos saíram do carro. No lugar, havia muitas crianças rindo e brincando, correndo em círculos ao redor dos pais. Enquanto caminhavam para a entrada da Fazenda, cercados por outras famílias conversando, Emily teve uma súbita revelação ao perceber o quanto sua vida havia se mudado no último ano. Havia passado da espera de sete longos anos por um anel de Ben ao que começava a sentir ser o melhor relacionamento de sua vida.
“Vamos, Emily!” Chantelle gritou.
Ela levantou os olhos, saindo de suas divagações, e viu Chantelle e Daniel no quiosque, esperando para pegar sua cesta e colher maçãs. A menina puxava a mão de Daniel, assim como Chuva puxava sua coleira. Daniel estava rindo de uma maneira que Emily nunca tinha visto antes. Ele estava claramente muito feliz por estar com Chantelle, por estar ali, como uma família.
Emily apertou o passo até eles e pegou a outra mão da menina. Chegaram no quiosque e pegaram sua cesta, e então seguiram até o pomar.
“Vamos achar as maçãs mais vermelhas e suculentas”, Emily disse a Chantelle, num sussurro animado. “Aposto que estão mais para trás, nos fundos da plantação”.
Chantelle assentiu com olhos arregalados, animada com o tom conspiratório de Emily.
Emily olhou para Daniel. Ele a fitava com um sorriso largo e olhos que revelavam orgulho. Emily corou.
Quando começaram a encher suas cestas com suculentas maçãs, Emily percebeu que não se divertia tanto há anos. Daniel também estava rindo como um menino. Corria, pegava a filha nos braços e a girava, levantando-a no ar para pudesse alcançar os galhos mais altos. Emily nunca havia visto o lado brincalhão de Daniel. Vê-lo assim agora era uma alegria preciosa.
“Isto é divertido, não é?” Daniel disse, sem fôlego, enquanto corria até Emily.
“Acho que não me divirto tanto desde que era criança”, Emily replicou.
“Nem eu”, Daniel disse.
Uma onda de bem-estar passou pelo corpo de Emily. De algum modo, ter Chantelle com eles estava curando as feridas de suas próprias vidas traumáticas.
*
Depois de colherem maçãs, Emily decidiu que Chantelle precisava de roupas novas. A menina não podia dormir com as roupas de Daniel toda noite, sobretudo porque o inverno se aproximava. Precisava de pijamas e roupas de baixo, um casaco, luvas e roupas para a escola. Havia trazido uma mochila muito pequena, com poucas coisas, e Emily teria que comprar praticamente um guarda-roupa inteiro.
“Só as meninas podem ir”, Chantelle disse, quando chegaram no carro.
Emily sabia que o comentário magoaria Daniel, especialmente depois de se divertirem tanto na fazenda. Ver que agora Chantelle preferia excluí-lo era confuso e doloroso. E apesar de Emily notar que ele não queria perder essa oportunidade de se ligar à filha, ao mesmo tempo não queria ir contra a vontade de Chantelle e forçá-la a fazer algo que não queria.
Emily baixou os olhos para a menina, apertando bem sua mão. “Seu pai não tem muita noção de moda, tem?” brincou, tentando descontrair.
Chantelle começou a rir.
“Acho que vou deixar as duas fazerem compras sozinhas então”, Daniel falou, resignado.
“Vamos dar um show de moda pra você quando chegarmos em casa”, Emily disse, tentando levantar o ânimo de todos, incluindo-o na programação.
Emily e Chantelle se despediram de Daniel e dos cães, e então começaram a caminhar por Sunset Harbor. Não havia muitas lojas de roupas infantis na cidade, apesar de Emily conhecer uma que ficava escondida numa rua lateral e que vendia roupas vintage e infantis. Já podia imaginar como Chantelle ficaria linda em um sobretudo no estilo vitoriano, apesar de temer que a menina achasse o estilo meio ultrapassado. Emily não tinha ideia do que as crianças usavam hoje em dia.
Elas viraram numa rua lateral e entraram na loja.
“Se você não gostar das roupas que eu escolher, é só me dizer”, Emily disse a ela. “Não quero que vista nada que não goste ou que não seja confortável”.
Emily queria que Chantelle se misturasse com as crianças que encontraria na escola. Ela já estava em desvantagem, com uma infância tão negligenciada; a última coisa que Emily queria agora era que fosse excluída por causa de suas roupas!
“Owww, Chantelle, o que acha deste casaco?” Emily disse, levantando um sobretudo azul-marinho com grandes botões. Imaginou que era o tipo de casaco que Sara Crewe usava em A Princesinha.
Chantelle parecia impressionada. Segurou o casaco e então passou o tecido pela bochecha. O forro tinha uma linda montagem de flores em tons claros de rosa, verde e amarelo.
“Gostou do forro?” Emily perguntou.
Chantelle assentiu e Emily registrou mentalmente que seria bom comprar algumas roupas com estampa floral para ela.
A menina tirou o casaco do cabide e o vestiu. Assim como Emily havia imaginado, ela ficou absolutamente encantadora, como se tivesse saído de um livro de Dickens. Enquanto Chantelle se olhava no espelho, lágrimas começaram a brilhar em seus olhos.
“Não temos que comprar se você não gostou”, Emily disse, subitamente preocupada.
Chantelle balançou a cabeça. “Não é isso. Só não sabia que eu podia ficar bonita”.
Pela centésima vez desde que a menininha havia entrado em sua vida, Emily sentiu seu coração apertar. Chantelle havia passado a vida inteira sem ouvir de ninguém que era linda? Havia muito tempo perdido a recuperar para reconstruir a autoconfiança dela.
Emily e Chantelle passaram mais de uma hora na loja vintage, experimentando vestidos e blusas, lindas calças e suéteres de gola alta. Emily não podia dizer se ela estava apenas se deixando influenciar ou não, mas achou que a menina ficou incrível em todas as roupas, como uma modelo mirim. Era impressionante ver a transformação dela, não apenas fisicamente, mas também em sua postura, enquanto ficava mais à vontade, mais confiante e ousada em suas escolhas. Para uma criança pequena que nunca teve a chance de escolher como se vestir, ela tinha um bom gosto natural. Compraram cinco novos conjuntos.
“Melhor irmos até uma loja de departamentos agora”, Emily disse. “Para escolher roupas de baixo, meias e pijamas”.
Juntas, saíram da loja vintage, os braços de Emily carregados de sacolas, e foram na direção da loja de departamentos. Enquanto caminhavam, Emily viu Vanessa com sua bebê Katy no carrinho. Vanessa trabalhava na limpeza da pousada há semanas. Emily acenou pra ela do outro lado da rua.
“Chantelle, esta é minha amiga Vanessa”, Emily disse. “Ela trabalha na pousada, então, provavelmente a verá algumas vezes, de manhã”.
Vanessa pareceu um pouco surpresa. “Oi, Chantelle”, ela disse, de maneira um pouco artificial. Então, levantou os olhos para Emily. “É sua sobrinha?”
Emily sorriu e balançou a cabeça. “É a filha de Daniel”.
“Emily é minha nova mãe”, Chantelle disse, apertando o braço de Emily junto ao seu corpo e sorrindo.
Emily sentiu o coração derreter. Mas quando olhou para Vanessa, sua amiga parecia petrificada.
“A filha de Daniel, do Tenessee?” ela falou.
Emily assentiu, seu humor começando a azedar. Vanessa estava lá durante as semanas do abandono de Daniel, durante aquelas longas seis semanas em que Emily foi deixada num turbilhão, sem saber se ficava ou fazia as malas e voltava para Nova York, aceitava a oferta de emprego de Amy e a proposta de casamento de Ben, e fingia que toda aquela viagem para o Maine havia sido um sonho. Assim como Serena, Vanessa havia apoiado Emily, oferecido conforto e sua amizade, tentando reparar a desordem que Daniel deixara para trás. Ela claramente desaprovava Emily ter aceito Daniel e sua filha em sua vida sem nem hesitar.
“Chantelle, querida” Emily disse, “por que não vai até aquela loja comprar um pouco de doces? Tome”. Ela deu à menina algumas notas. “O papai prefere bombom de manteiga de amendoim coberto de chocolate”.
Assim que Chantelle se afastou, Emily se voltou para Vanessa. “Sei o que está pensando”, começou. “Acha que sou louca por deixar Daniel entrar em meu coração novamente sem brigar. Acha que estou sendo um capacho”.
Vanessa balançou a cabeça. “Não é isso, Emily. Sei que o ama. Qualquer um pode ver isso. Nunca duvidei que vocês dois ficariam juntos”.
“Então, qual é o problema?” Emily perguntou, sentindo-se ficar cada vez mais gelada.
“A menina”, Vanessa replicou. “Acha mesmo que está tudo bem em afastá-la de casa? De sua mãe?”
Emily cruzou os braços. “A mãe abriu mão da filha. É viciada em drogas e tem problemas mentais. Daniel tentou ajudá-la a se livrar do vício e começar um tratamento, mas não funcionou. Ela percebeu que Chantelle ficaria melhor conosco. Mas não vou excluir Sheila e fingir que ela não existe. Se quiser fazer parte da vida de Chantelle, pode fazer isso, assim que estiver livre das drogas. Não vou deixar uma viciada arruinar a vida dessa garotinha”.
Vanessa pareceu hesitar. “Só não sei se percebe aonde você se meteu”, ela falou. “Não vai ser fácil criar uma criança como Chantelle”.
“Estou ciente disso”, Emily disse, irritada, apesar de Chantelle ter sido encantadora até agora. “É claro que haverá desafios. Mas eu e Daniel estamos preparados para enfrentá-los juntos”.
“E os filhos de vocês? Seus e de Daniel? Vocês ainda poderão ter sua própria família enquanto estiver ocupada com os problemas de Chantelle? E quanto à pousada? É um lugar adequado para uma criança com dificuldades?”
“Chantelle não tem dificuldades”, Emily disparou, defensiva e subitamente protegendo a menina que começava a ver como filha. “Ela precisa de amor e cuidado. Daniel e eu somos as melhores pessoas para dar isso a ela”.
Vanessa suspirou profundamente. “Não duvido”, disse, resignada. “Só acho que você não pensou bem sobre isso. Tem visto como Katy me deixa exausta às vezes, e ela é sangue do meu sangue. Escolhi tê-la. Chantelle foi empurrada para você. Ela é quase um ultimato de Daniel. Você nunca pediu por isso. Só acho que precisa recuar um pouco e refletir se é isso que você quer”.
Ela apertou o braço de Emily. Nesse momento, Chantelle voltou com uma sacola de papel cheia de doces e barras de chocolate.
“Uau”, Emily disse, “olha quantos doces”.
Mas sua voz não estava tão alegre e descontraída como antes. As palavras de Vanessa a perturbaram, haviam sido como uma faca afiada cortando sua felicidade e deixado uma pedra de dúvida dentro dela. Seria realmente capaz de cuidar de Chantelle?
CAPÍTULO QUATRO
Na volta para casa, Chantelle estava exausta. Conseguiu ficar acordada durante o jantar que Daniel havia preparado, mas bocejou o tempo todo.
“Talvez ela devesse ir para a cama mais cedo?” Emily disse. “Acordou super cedo. E as aulas começam amanhã, então, precisa estar descansada”.
Daniel concordou e elas subiram até o quarto de Chantelle, colocaram-na na cama e então leram uma história até que menina adormeceu.
Quando saíram do quarto, fechando a porta em silêncio, Emily refletiu sobre os últimos dias cuidando de uma criança. Havia sido mais divertido do que esperava. Mas as palavras de Vanessa ainda ecoavam em sua mente, fazendo-a duvidar de si mesma.
Eles desceram as escadas em silêncio, sem querer que o ranger do assoalho acordasse a pequena.
“Adoraria pegar o barco para ver o pôr do sol”, Daniel disse. “O que me diz? Um encontro?”
Emily franziu o cenho. “Não podemos deixar Chantelle sozinha”.
Daniel começou a rir. “Que bom que Serena está vindo pra cá”.
Emily parecia ainda mais confusa. “Hã?”
Daniel apenas sorriu. “Bem, enquanto as duas estavam fora, tomei a liberdade de arrumar uma babá. Ela chegará às sete”.
A expressão preocupada de Emily se transformou num sorriso. “Sério?” Não podia conter sua animação. Fazia tanto tempo desde seu último encontro com Daniel que não percebia o quanto desejava por isso. Ela o abraçou e o beijou demoradamente.
“É melhor me preparar”, ela disse, sorrindo, e subiu as escadas correndo para se vestir.
Serena chegou pontualmente às 19h, trazendo seu perfume adocicado e charme artístico consigo.
“Alguém está vestida para matar”, ela disse, ao ver a roupa de Emily.
Emily corou. Nunca aceitou bem elogios. “Obrigada pela ajuda. Estamos muito gratos por termos uma noite a sós”.
“Sem problemas”, Serena disse. “Quero muito relaxar e ler alguns romances cafonas”.
Emily e Daniel foram até a porta, mas antes de terem a chance de sair, esbarraram em alguém. Era o amigo de Cynthia, Owen, o jovem e tímido pianista que esteve antes na pousada para afinar o antigo piano de seu pai, e a quem Emily havia convidado para vir tocar quando desejasse.
“Ah, humm, desculpe, vocês estão de saída, posso voltar outra hora”, Owen disse, balbuciando as palavras e brincando com a partitura que tinha nas mãos.
“De jeito nenhum”, Emily disse. “Entre e toque. Serena está aqui, então, você pode tocar o quanto quiser”.
Owen sorriu timidamente e agradeceu a Emily, e depois seguiu para a sala de estar.
Enquanto Emily e Daniel desciam trotando os degraus do terraço, a bela música tocada ao piano por Owen flutuava atrás deles.
*
A água lambia os muros do porto enquanto Daniel ajudava Emily a entrar no barco. O céu ainda estava azul, apesar do crepúsculo se aproximar.
“Aonde vamos?” Emily perguntou, depois de se acomodar.
“Queria explorar outra ilha”, Daniel disse.
Emily se lembrou da última vez que tinham feito isso, quando ela havia descoberto o farol e as pinturas que seu pai reuniu. Tinha certeza de que poderia haver alguma pista para o desaparecimento do seu pai nelas, mas assim como a maioria das pistas que ela havia seguido, aquela parecia dar numa rua sem saída: só o nome de uma pintora já falecida.
Daniel deu partida no motor e o barco começou a se afastar da doca. A água estava calma, e a maré, baixa. O barco cortava o mar com facilidade. Emily segurava firme, animadíssima por sentir o vento em seus cabelos, e grata por ter reforçado a maquiagem!