Três gatinhos emergiram de debaixo da caixa na parte de trás da área de trabalho de Fife. Davina parou e ficou olhando, esperando. Onde estavam os outros gatinhos? Ela se agachou nos calcanhares, perscrutando a escuridão. Mais um gatinho saiu se arrastando, miando. Cresceram tanto nas últimas seis semanas…, mas apenas em tamanho. O número cada vez menor de filhotes era o que preocupava Davina. Quando ela viu os gatinhos pela primeira vez, ela contou oito. Uma semana depois, uma semana após o início da punição e supervisão de Ian, a contagem foi de sete. Ela descartou a diferença de números como um erro na contagem anterior dela. Quando o segundo gatinho desapareceu na semana seguinte, ela imaginou que a pobre criatura poderia ter sido agarrada por uma coruja ou outro predador.
Outro predador, de fato.
Fife contou do terceiro gatinho desaparecido duas semanas depois, dizendo que Ian o trouxe para ele quase com o coração partido. A cabeça havia sido esmagada… por um cavalo, supôs Fife. Davina tentou contar a Fife de suas suspeitas, mas com tom de conselho paternal, ele disse que ela estava sendo muito dura com o Mestre Ian, que precisava aprender a perdoá-lo pelas transgressões passadas, e contou como Ian confidenciou as tentativas de ser um marido melhor.
Muitos gatinhos desapareceram para ela não suspeitar, apesar do que Fife dizia. Ela se agachou, esperando que o quinto gatinho emergisse da caixa. Nada ainda. Tirando uma das tochas da parede, ela trouxe a luz para a escuridão crescente da noite que caía, para a área de trabalho de Fife. A caixa estava vazia. Quatro gatinhos vagavam ao redor dela. Quatro de oito. Onde estava o quinto?
Ela recolocou a tocha no lugar e deu duas voltas completas ao redor da área em frente às baias antes de entrar no portão de seu cavalo, Heather. Agarrando a sela, ela a ajustou no lombo de Heather.
— Indo a algum lugar? — a voz de Ian a fez pular, estocadas de gelo dançara pela espinha dela.
Ela fechou os lábios, e se concentrou em puxar as tiras de couro com força, esforçando-se para ouvir as ações dele acima das batidas incessantes de seu coração. Arrastando-se para o outro lado do animal, o pé dela pousou em algo macio, e ela saltou para trás com um grito, pensando que tinha pisado em um rato. Nada se moveu. Com a ponta da bota, ela tocou a palha onde pisou. Ainda sem se mexer, ela se ajoelhou, estendeu a mão trêmula e ergueu a palha. O quinto gatinho.
— Ahhhh. — Ian disse, parecendo desamparado, mas quando ela o viu espiando por cima da baia, viu o sorriso dele. — Outro?
Ela ficou abismada de terror em como ele conseguia fazer a voz soar amorosa ou preocupada sem tirar o sorriso tão ameaçador do rosto. Ela sentiu os pelos na nuca se arrepiaram.
— Por quê? — ela choramingou. — Por que está fazendo isso?
Ele olhou por cima do ombro e sorriu.
— Ingênua até o fim. — ele sussurrou e piscou.
Ela pegou um pedaço de pano pendurado na parte de trás da baia e pegou o corpo frio. Soluçou enquanto mostrava o gatinho para ele.
— Tem tanta raiva dentro de você que deve descontar em animais inocentes, já que não pode descontar em mim?
— Davina, o que está dizendo? — Ian deu um passo para trás em direção à abertura dos estábulos. — Está me dizendo que eu… — Ian balançou a cabeça, parado do lado de fora da entrada do estábulo. Os olhos dele se encheram de tristeza e refletiram a luz bruxuleante da tocha, aumentando a aura demoníaca em torno dele. — Sei que fiz mal a você, mas não fiz tudo o que podia para provar que mudei? O que mais…
— Calma, calma, Mestre Ian. — disse Fife, entrando nos estábulos. — O que o deixou tão chateado, rapaz?
— É isso que você pensa de mim, Davina? — Ian disse, abatido pela tristeza.
— Fife! Olhe! Outro gatinho! — ela soluçava de forma incontrolável. Temia o resultado de tudo isso. — É como eu disse a você! Ele me viu encontrar o gatinho e não demonstrou remorso!
Fife a olhava boquiaberto, e então olhou para Ian com pesar. Davina passou correndo por eles, deu a volta nos estábulos e colocou o gatinho sobre uma pequena pilha de palha. Chorando, ela lavou o sangue das mãos e jogou a água fria do barril de chuva no rosto para tentar acalmar a mente. Descansando as mãos na borda do barril, ela ofegou, tentando pensar em como lidaria com a situação.
Era só... isso não poderia estar acontecendo! Por que isso está acontecendo?
Na borda do barril de chuva, uma crosta marrom parecia uma impressão palmar parcial. A marca de uma mão ensanguentada.
Ian a agarrou pelos ombros e a girou tão depressa que sua cabeça girou. Segurando-a contra a parede de trás do estábulo, ele disse alto o suficiente para que Fife ouvisse, em uma voz cheia de afeto tão sincero que ela quase acreditou nas palavras dele… se não fosse pela expressão sinistra em seu rosto.
— Você é tão delicada quanto aqueles gatinhos. Eu odiaria ver algo assim acontecer com você. Eu ficaria destruído. Ele apertou os ombros dela com mais força ao dizer a palavra “destruído” para dar ênfase.
Através das janelas à sua esquerda, acima do barril de chuva, passos recuando enfraqueceram, e Ian esperou que Fife estivesse fora do alcance da voz.
— Ingênua até o fim, Davina. — ele zombou. — Farei com que me aceitem na sua família, e será você que se verá controlada. Pode ser até que a considerem louca quando eu terminar.
O mundo se fechava em torno dela, ela o empurrou e correu em direção ao castelo. Entrado como um raio pela cozinha, ela disparou pelo corredor até a sala de estar e parou na porta. Sua família estava sentada e espalhada, os olhos arregalados e questionadores. Fife estava à sua esquerda, ao lado do pai, esmagando o chapéu nas mãos nervosas, culpa no rosto.
— Fife, o que contou?
Davina pousou as pontas dos dedos frios nas bochechas úmidas e vermelhas.
O pai cruzou os braços.
— Que história é essa de Ian estar matando gatinhos?
Ela correu para agarrar o antebraço de seu pai.
— Pai, ele está descontando a raiva nesses pobres animais indefesos em vez de em mim. — ela não conseguia controlar os soluços enquanto implorava.
— Agora, Senhora Davina. — Fife advertiu baixo. — Mestre Ian disse que não poderia machucar aqueles gatinhos tanto quanto não poderia machucar a senhora. Apenas entendeu mal o que ele disse.
— Obrigado por me defender, Fife, mas creio ser inútil continuar tentando. — Ian parou na porta, a tristeza puxando os cantos de sua boca. — Creio que ela está certa, Parlan. Devemos dissolver essa união. Ela nunca vai me perdoar, não importa o quanto eu tente mudar.
— Por que está fazendo isso? — ela gritou na cara de Ian.
— Agora você me quer? Qual é o seu jogo, Davina?
Ian ergueu as mãos em frustração e se arrastou até o centro da sala para defender seu caso, deixando Davina à porta.
— Não, não é isso que eu quero dizer, sabem bem disso! Por que você está tentando fazer minha família me ver como louca?
Ian deixou cair o queixo como se tivesse levado um tapa. Fechando a boca e depois os olhos, ele assentiu.
— Parlan, eu tentei. — ele olhou para o pai dela com tanta tristeza que a mãe soluçou. — Eu amo sua filha e esperava que pudéssemos fazer essa união funcionar, mas está claro que ela não vai me perdoar. — Virando-se para o pai, Munro, ele disse: — Vou ao meu quarto arrumar meu baú. É melhor partirmos amanhã. — de frente para Davina, ele deu um passo, ainda de costas para a sala, e abriu aquele sorriso particular e maligno que jamais era traído pela voz. — Adeus, Davina. — ele sussurrou, e partiu.
Munro o seguiu, mostrando uma carranca para ela ao sair.
Davina ficou perplexa com os olhares acusatórios de sua família. Parlan suspirou e marchou até a lareira, virando de costas para ela. Lilias soluçou no lenço que puxou da manga. Kehr deu um passo à frente, as sobrancelhas baixas.
— Davina, é hora de deixar de lado o amante cigano de seus sonhos. Nenhum homem, muito menos você Ian, será capaz de fazer jus a essa fantasia, jamais. Está na hora de crescer.
Parlan se virou com expressões fluidas que alternavam entre confusão e raiva. Davina quase se engasgou com o nó que se formou na garganta. Até seu amado Kehr a traía, pensava que ela estava louca! Correndo da sala, ela voltou para os estábulos. Puxando Heather da baia, Davina montou e disparou pelo terreno, saiu pelo portão da frente, para longe da loucura. Suas bochechas, molhadas de lágrimas, ficaram frias quando o vento soprou e emaranhou seus cabelos. Em uma clareira onde costuma conseguir encontrar a solidão, ela puxou as rédeas de Heather e saltou, caindo no chão coberto das folhas do outono passado, úmidas do orvalho da noite.
Ajoelhada no meio da floresta enluarada, Davina soluçava nas folhas. Quão certo estava seu amante cigano dos sonhos! A desgraça que Broderick previu para a vida dela quando ela era uma menina agora a dominava. E por que razão isso estava acontecendo? Ela só queria continuar a vida feliz que vivia antes de conhecer Ian. Por que Deus a uniu a este louco que se regozijava com a manipulação e o controle? Ela só queria uma família e alguém para amar. Com um impulso para se levantar, ela colocou as mãos trêmulas na barriga. Perder o primeiro filho provocara uma grande tristeza em seu ser, contudo, no fim não foi melhor ter perdido a criança? Davina não suportava ver sua própria carne e seu sangue obrigados a se submeter ao mesmo destino que ela, a esse frenesi que suportava. Curvando os joelhos contra o peito, ela puxou as pernas para perto, abraçando o bebê que se aninhava dentro dela. Ela perdera dois cursos mensais: um antes da punição de Ian e este último mês, portanto, engravidara antes que ela e Ian fossem colocados em quartos separados. O que aconteceria então a este bebê se a vissem como uma lunática? Balançando-se para frente e para trás, a testa apoiada nos joelhos, ela deixou o rio de lágrimas fluir.
A dobra de seu braço tocou a adaga que carregava na bota. Ela prendeu a respiração, congelada por uma ideia que tocou sua mente. Subindo a bainha do vestido, ela puxou a arma do esconderijo e sentou-se sobre os calcanhares. Seu coração guerreava devido a tal decisão.
Sou louca, mas que outra escolha me resta?
Ela apertou as mãos em torno do cabo da adaga, a ponta da lâmina posicionada na pele, na direção do coração. Com os nós dos dedos brancos e trêmulos, as mãos latejavam de dor. Se ela agarrava a faca por medo ou por força, não estava claro. Uma brisa suave tocou suas bochechas manchadas de lágrimas, esfriando a carne no ar da noite. Não queria chegar a este ponto, tirar a própria vida e a vida de seu filho ainda por nascer… mas como ela poderia enfrentar a loucura que os esperava? Como poderia enfrentar a traição da própria família? Ou era apenas uma desculpa covarde?
Ela soltou um grito de frustração e cravou a lâmina na terra úmida e macia, caindo no chão. Seu corpo se debatia com soluços e o cheiro de terra se misturava às folhas velhas e podres, como uma sepultura.
— Tão perto. — ela choramingou. — Tão perto de ser uma viúva. Tão perto da liberdade. Devido a uma decisão do rei, todas as esperanças dela se despedaçaram como pingentes de estalactites contra pedra. Até mesmo este membro de sua família, seu primo de sangue Real, a traiu. A aparição de James parecia ter sido enviada apenas a ela, apenas para atormentar sua existência. Davina soluçou mais forte enquanto a desesperança a engolfava.
Heather bateu com os cascos e sacudiu a cabeça. Davina lançou um olhar ao redor da floresta escura em busca da fonte da agitação do animal. Ela se sentiu revirar de medo.
Meu Deus! Haviam ido atrás dela?
Ela empalideceu.
Ian poderia tê-la perseguido… sozinho.
Exceto pelo leve farfalhar das árvores ao vento, apenas o silêncio sepulcral a rodeava. Ela perscrutou o terreno, mas não viu nada. Após mais um momento de silêncio, ela deu um suspiro hesitante e o alívio a banhou. Ninguém vinha com cavalos para agarrá-la e levá-la de volta. Davina pôs-se de pé, enxugou o nariz, e rastejou em direção à montaria, ainda olhando ao redor.
— Calma, calma. — ela apaziguou a égua com a mão estendida.
Antes que pudesse colocar os dedos no flanco de Heather, uma força invisível tirou o ar de seus pulmões, e ela bateu com a cabeça no chão. O rosto de Davina foi empurrado para as folhas, a cabeça latejando, e alguém esmagou seu corpo. Incapaz de respirar ou pensar, ela lutou para forçar o ar de volta aos pulmões quando o pânico se instalou.
— Relaxe, moça. — uma voz profunda sussurrou em seu ouvido. — Sua respiração voltará em um momento.
Em um giro, seu agressor a colocou de pé e a virou para encará-lo, as mãos dele apertavam os hematomas nos braços dela, feitos por Ian quando ele a segurou contra a parede dos estábulos. Com a visão turva e a mente ainda cambaleando com o encontro, ela conseguiu se equilibrar, e logo o ar da noite de verão encheu seus pulmões mais uma vez. Ela respirou em lufadas famintas.
— Aí está, moça.
Medo sacudiu seu corpo, e ela lutou com o homem que a mantinha presa contra ele. Um brilho como prata derretida nas pupilas dos olhos dele a atraiu para suas profundezas, e ela se acalmou. Uma onda de curiosidade e confusão a inundou quando o olhar dela pousou no rosto familiar, aquele nariz aquilino, aqueles olhos verde-esmeralda, os cabelos vermelho-fogo. Seu Broderick havia, por fim, voltado para resgatá-la? Ela empurrou o peito dele para ganhar alguma distância de seu rosto e ter uma melhor visão dele.
Não. Este rosto parecia mais jovem, a mandíbula não era tão larga, as maçãs do rosto não eram tão cinzeladas.
Eu perdi a cabeça!
Ela deveria estar apavorada a ponto de perder os sentidos nos braços de seu agressor, mas ainda assim se perguntava se ele era o homem por quem ansiava desde a juventude.
O perigo nos olhos dele se transformou em confusão quando o estranho escuro examinou o rosto dela. Agarrando-a pelos cabelos, ele puxou a cabeça dela para trás. Um grito escapou de seus lábios quando ele puxou o cabelo contra o caroço em sua cabeça. Ela foi forçada a ficar boquiaberta para o céu negro e a lua cheia acima. Ela prendeu a respiração quando a boca dele se fechou em sua garganta, e dentes afiados perfuraram a pele tenra. Uma breve dor… então um inesperado fluxo quente de prazer fluiu por suas veias, e ela desabou contra ele com um gemido, caindo em euforia.
Este homem — esta criatura — sondou sua mente, uma invasão sedutora em seus pensamentos, enquanto bebia, ele descobriu tudo que poderia ser desvendado. Em poucos instantes, ela reviveu os prazeres da infância, as frustrações da juventude e as fantasias com o amante cigano em seus sonhos. Essas memórias distantes de Broderick vieram correndo e a cercaram… o aroma exótico do incenso, a presença inebriante do calor dele, a vibração que sentiu por dentro ao vê-lo.
Davina reviveu a noite em que conheceu Broderick.
— O que vê, senhor?
Seus rostos estavam muito próximos enquanto a voz profunda a advertia.
— Não posso mentir para você, moça. Seria um desastre.
— Um desastre?
— Sim. — aqueles olhos cor de esmeralda perfuraram os dela. — Tempos nada agradáveis estão para chegar. Mas não deve perder a fé. Você possui muita força. Use essa força e segure com firmeza o que lhe é mais caro, pois é isso que a ajudará a atravessar os tempos difíceis que estão por vir.
— O que está para acontecer, senhor? — ela o pressionou.
— É desconhecido para mim. Não sei os detalhes. As linhas na palma da mão não revelam detalhes mais específicos, apenas dizem que há conflitos em seu futuro. Basta lembrar o que falei. Mantenha-se firme em sua força.