"Uni", ela murmurou em voz alta, pois o nome do brinquedo surgiu em sua língua antes que sua mente tivesse sequer entrado em ação.
Então, de repente, teve uma sensação familiar de turbilhão, uma que não sentia há muito tempo. Ela estava deslizando de volta ao passado, em suas memórias.
Os flashbacks começaram assim que ela retornou pela primeira vez à pousada. Eles eram aterrorizantes no começo, memórias assustadoras, como a noite em que Charlotte morrera e as discussões furiosas entre os pais dela. Mas então, com o passar do tempo, enquanto processava essas memórias reprimidas, Emily começou a experimentar algumas das mais agradáveis. Tempos em que ela e Charlotte brincaram juntas; sem preocupação. Aquela lembrança encheu Emily de uma sensação de calma, e ela sabia que seria agradável.
Ela e Charlotte estavam no sótão, em um dos cômodos que seu pai enchera de objetos antigos. No chão, ao lado delas, havia um globo de bronze, e Charlotte estava girando-o com um dedo. Sentado ao lado de Charlotte estava Uni, o lindo unicórnio. Novo em folha, fofo, rosa, com um chifre de lantejoulas.
"Uni está triste", disse Charlotte a Emily.
"Por quê?" Emily perguntou, curiosamente, ouvindo a voz de uma criança saindo de sua garganta.
"Porque ela é o último unicórnio que existe", explicou Charlotte. "Ela não tem outros amigos unicórnios."
"Isso é triste", Emily respondeu. "Talvez fosse bom levá-la em uma aventura para fazê-la se sentir melhor?"
Charlotte pareceu se animar com a sugestão. "Aonde você quer ir, Uni?" ela perguntou a seu brinquedo. Então, girou o globo dourado e parou com um dedo apontado. Era uma pequena ilha a leste do continente americano. "Uni quer ir para uma ilha", Charlotte disse a Emily.
Emily assentiu. "Nesse caso, é melhor entrarmos no barco".
Elas puxaram velhas cadeiras e mesinhas de centro, perturbando a poeira e agitando o cheiro de mofo, então, arrumaram-nas de uma forma parecida com um barco. Usaram uma cortina surrada como vela e subiram em sua embarcação com Uni.
Emily quase podia sentir o vento em seus cabelos enquanto navegavam pelo oceano até uma praia distante. Charlotte usou um caleidoscópio como telescópio, examinando o sótão como se estivesse à procura de algo.
"Terra à vista!" gritou de repente.
Emily jogou a âncora — que, na verdade, era um cabide de madeira amarrado a uma corda de cortina. Então, saltaram do barco e nadaram até a praia.
Ofegando pelo esforço, as duas meninas começaram a explorar a ilha, espiando por entre as pilhas de antiguidades, fingindo que era um vulcão.
"Olhe aqui", Charlotte gritou para Emily. "Lá no fundo do vulcão!"
Emily espiou atrás do suporte de chapéus para o qual Charlotte apontava. "Não acredito!" ela exclamou, entrando na brincadeira.
Os olhos de Charlotte estavam arregalados. "São os outros unicórnios", ela disse. Então, falou apressadamente com Uni. Ela ficou triste. "Uni quer descer pelo vulcão, para ficar com eles", ela falou para Emily.
"Ah", Emily disse, um pouco triste. "Mesmo que isso signifique nos deixar?"
Charlotte olhou para sua querida amiga unicórnio e assentiu. "Ela diz que esta é sua ilha natal. Ela sente muita falta de todos os seus amigos. Ela quer morar aqui. Mas nós temos permissão de visitá-la".
"Tudo bem, então", disse Emily.
Elas amarraram as mangas de seus cardigãs para fazer uma cadeirinha para Uni. Então, foram baixando o unicórnio pela parte de trás do móvel e a deixaram lá.
"Você está triste em dizer adeus?" Emily perguntou a Charlotte enquanto voltavam para o barco improvisado.
A menina balançou a cabeça. "Não. Porque sei que nos veremos novamente".
Emily repentinamente voltou ao presente. Ela estava segurando Uni firmemente contra o peito, e a cabeça do brinquedo estava molhada com suas lágrimas. Por um lado, sentia-se desesperadamente triste, porque sabia que Charlotte nunca tivera a chance de ver Uni novamente. Mas a outra parte dela se sentia animada e alegre. O brinquedo era um sinal de Charlotte, Emily tinha certeza. Uni havia sido deixado naquela ilha, na parte de trás da mobília, completamente esquecido até aquele momento, talvez até especificamente para este momento.
Ela abraçou Uni com força, em seguida, colocou-a, dolorosamente, na prateleira com vista para o berço da bebê Charlotte. Sentiu o círculo da vida continuando e sorriu, sabendo que, assim que Charlotte chegasse, ela teria um anjo da guarda guardando-a enquanto dormia.
*
Emily se aconchegou na cama ao lado de Daniel. Foi um dia longo e cansativo, e ela caiu no sono rapidamente.
"Eu não posso acreditar que nós temos uma ilha", ela murmurou na escuridão, quando começou a adormecer. "Meu futuro não parece nada com o queeu pensei que seria".
Daniel soltou uma risada sonolenta. "Como assim?"
"Bem, eu nunca pensei que estaria casada e grávida. Eu nunca pensei que teria Chantelle, ou esta pousada". Ela acariciou o peito de Daniel enquanto ele subia e descia lentamente.
"Eu nunca pensei que eu teria Chantelle ou a pousada também", respondeu ele.
"Mas você está feliz por isso?"
"Claro".
"Você está feliz por termos outra menina?"
Ele beijou sua testa. "Estou muito feliz", ele assegurou.
"E que nossa filha vai voltar para a escola amanhã, onde ela está indo fabulosamente bem?"
Daniel riu novamente. "Sim. Fico feliz que Chantelle esteja indo bem na escola".
Emily sorriu, satisfeita. Parecia prestes a pegar no sono.
"Só estou triste com uma coisa", disse ela.
"O que é?"
"Que meu pai não vai estar aqui para aproveitar tudo isso com a gente".
Daniel ficou em silêncio. Ela sentiu os braços dele a apertarem.
"Eu sei", disse ele. "Estou triste com isso também. Mas vamos aproveitar ao máximo o tempo que temos com ele agora. Vamos garantir que todos os dias sejam tão bons quanto possível. Vamos fazer cada dia valer a pena".
Emily assentiu. "Acho que fizemos hoje valer a pena", disse ela, bocejando. "Nós compramos uma ilha, afinal. Não é todo dia que isso acontece".
Ela sentiu o peito de Daniel estremecer com uma risada. Ela se apertou ainda mais contra ele, feliz e repleta de amor. Nos braços um do outro, com os batimentos cardíacos sincronizados. Adormeceram em uníssono, em perfeita harmonia, duas pessoas unidas pelo amor.
CAPÍTULO QUATRO
Emily deu um último gole no café descafeinado e colocou a caneca na mesa da cozinha. Ela dormiu profundamente, mas acordou sentindo-se meio grogue — em parte por causa do despertador estar definido para uma hora antes do que ela tinha se acostumado durante o verão — e ela gostaria de poder tomar uma dose de cafeína de verdade. Era provavelmente a coisa que ela mais ansiava fazer assim que Charlotte nascesse, a coisa que ela mais sentia falta e que mais desejava. Ela observou Daniel com inveja enquanto ele bebia seu café do outro lado da mesa.
"Certo, querida", disse Emily por fim, olhando para Chantelle. "É hora de ir para a escola".
Chantelle estava debruçada sobre uma pilha de peças de relógio, com a ponta da língua saindo do canto da boca, de tão concentrada. Havia uma tigela vazia de cereal ao seu lado, descartada a esmo para que ela pudesse prosseguir com sua tarefa.
"Não posso ter mais cinco minutos?" ela perguntou, tão absorta que nem sequer olhou para cima. "Eu só preciso descobrir onde colocar esta engrenagem".
Desde que voltou da Inglaterra, Chantelle estava determinada a fazer um relógio como o vovô Roy. Emily pensou que era muito doce Chantelle se inspirar tanto no avô, mas também partia seu coração, ao mesmo tempo. Ela e Daniel ainda não haviam contado a Chantelle a notícia da doença do avô; e a menina ficaria totalmente arrasada quando o perdesse. Todos ficariam.
Daniel assumiu o comando. "Não, desculpe, querida. Você precisa chegar na hora para conhecer sua nova professora e novos colegas".
Chantelle baixou a chave de fenda com um suspiro relutante. "Tudo bem".
Emily desejou poder convencer Chantelle a fazer seu trabalho oleoso em algum lugar mais apropriado — a garagem, ou no barracão, ou praticamente em qualquer lugar que não fosse a mesa da cozinha. Mas Chantelle não ia querer. Seu avô consertava relógios na mesa da cozinha, então, Chantelle queria fazer igual!
Todos se dirigiram para a picape e Daniel assumiu a direção, já que Emily estava achando muito desconfortável encaixar sua barriga cada vez maior atrás do volante. Chantelle pulou no banco de trás do carro.
"Mal posso esperar até que Charlotte venha conosco para a escola", disse ela, olhando para a cadeirinha de bebê que haviam instalado recentemente (por recomendação de Amy, é claro, já que nunca se sabe quando o bebê pode decidir nascer e a última coisa que você vai querer fazer é tentar instalar uma cadeirinha complicada durante as contrações).
"Eu também", disse Emily, descansando as mãos sobre sua barriga volumosa. Parecia estar ficando mais desconfortável a cada dia que passava.
"Primeiro, ela só estará passeando, mas não demorará muito para ela entrar por aquelas portas com você", disse Daniel, com uma risada. "Ela vai estar no jardim de infância num instante".
Emily se sentiu melancólica ao pensar nisso. Ela sabia o que Daniel queria dizer, que o tempo passava rapidamente, que eles deveriam apreciar cada momento, porque desapareceria como a areia passa por uma ampulheta. Mas o futuro ao qual Daniel estava se referindo era também um em que o pai dela já teria falecido. Ele não estaria lá quando Charlotte começasse o jardim de infância. Ele nunca iria ver as numerosas fotos que Emily tiraria das duas meninas indo para a escola juntas, de mãos dadas. Esse futuro, embora ela estivesse ansiosa para viver, por um lado, também seria repleto de pesar, por outro. Ela seria uma pessoa diferente, mudaria irremediavelmente ao perder Roy.
Eles dirigiram pelas conhecidas ruas de Sunset Harbor e entraram no estacionamento da escola. Já estava muito movimentado, com muitos pais ansiosos para deixar seus filhos depois das longas férias de verão.
"É Bailey!" Chantelle gritou, apontando para onde sua melhor amiga brincava na grama. O cabelo ruivo normalmente rebelde de Bailey tinha sido estilizado em duas longas tranças. Emily nunca a tinha visto tão apresentável. "Mas com quem ela está conversando?" acrescentou Chantelle.
Bailey estava brincando com uma criança desconhecida, uma garota pálida e magra, com longos cabelos lisos e loiros.
"Eu não sei", disse Emily. "Eu nunca a vi antes".
Daniel estacionou e eles saíram da caminhonete. Emily notou Yvonne encostada em sua 4x4, conversando com Holly, outra das mães que eles conheciam bem.
"Por que você não vai dizer olá", Daniel disse a ela. "Eu posso supervisionar Chantelle e falar com a professora".
Emily deliberou. Ela queria conhecer a nova professora, mas sentiu um desejo de se reconectar com as amigas, cuja companhia havia perdido no verão.
"Eu vou ser super rápida", ela disse a ele, com uma mão já abrindo a porta do passageiro.
Daniel riu e foi em direção aos degraus onde todos os professores estavam reunidos, supervisionando a sessão de brincadeira matinal.
Emily foi até Yvonne e deu um grande abraço na amiga. Então, também abraçou Holly.
"Como passaram o verão?" Emily perguntou.
Holly corou. Yvonne parecia estar segurando um sorriso.
"Foi ótimo", Holly disse a Emily. "Logan e eu levamos as crianças para Vancouver, para visitar a família".
"E..." Yvonne pressionou.
Emily franziu a testa, olhando de uma mulher para a outra.
"E..." Holly disse, ainda mais ruborizada. "Eu estou grávida".
Os olhos de Emily se abriram mais. "Você está brincando!" exclamou ela.
Holly sacudiu a cabeça. Ela parecia tímida, mas emocionada.
"Estou tão feliz por você!", Emily exclamou, abraçando-a novamente. "Nossos bebês poderão brincar juntos".
"Com Robin", acrescentou Holly, referindo-se ao novo filho de Suzanna, que tinha apenas dois meses de idade.
"Eles podem formar uma pequena gangue", Emily acrescentou, com uma risada.
Yvonne fez beicinho então. "Ah, eu estou com inveja. Eu gostaria de ter outro".
"Foi planejado?" Emily perguntou Holly. "Você está corando como se não tivesse sido!"
"Não", Holly disse a ela. "Foi uma surpresa. Bem-vinda, mas Minnie ainda não tem nem um ano, então não achamos fosse possível! Mas, em Vancouver, as crianças passaram muito tempo com nossos parentes e pudemos descansar e sair só nós dois e, bem, uma coisa levou a outra".
Todo mundo riu. Emily sentiu-se feliz por ter novamente a companhia de algumas de suas amigas da escola. Embora Yvonne fosse uma das melhores amigas dela, e Suzanna em menor escala, o círculo mais amplo de amigos pais era muito dependente do contexto. Ela percebeu então que havia perdido a companhia deles, que sentia falta de ter pessoas para compartilhar as provações e tribulações da maternidade.
"Olhem para a minha pequena Bailey", disse Yvonne então, desviando o olhar para o parquinho. "Ela está mantendo a menina novata sob sua asa".
Emily olhou para o parque e viu as duas zunindo pelo playground. Chantelle, percebeu, não estava brincando com elas. Em vez disso, estava com os meninos, Toby, Levi e Ryan, participando de um tipo de jogo muito mais áspero e caótico. Ela se perguntou por que não estavam brincando todos juntos.
Yvonne sussurrou: "Mas eu espero que ela não a convide para brincar lá em casa". Eu conheci a mãe esta manhã. Ela é tão azeda quanto a filha. E o nome da menina é Laverne".
Emily não pôde deixar de rir. Era tão bom conversar novamente com suas amigas que também eram mães, de volta aos portões da escola. Da última vez que havia feito isso, tudo ainda era novo e estranho. Chantelle apareceu do nada e mudou completamente a vida de Emily. Mas ela não mudaria nada agora. Tornar-se mãe tinha sido a melhor experiência de sua vida, e ela amava as sensações, as oportunidades que isso lhe dava, e as pessoas que conhecera no processo.
Ela viu Suzanna se aproximando com o bebê Robin amarrado ao peito num sling, com seus pezinhos balançando a cada passo que ela dava. Logo, seria Emily, ela percebeu, seu coração tornando-se maior ao pensar nisso, com animação, mas também por causa da ansiedade. Charlotte ia mudar tudo de novo, assim como Chantelle mudara. E Roy não estaria lá para ajudá-la ao longo do processo. Mas, enquanto olhava de Suzanna para Yvonne e para Holly, sabia que tinha as melhores pessoas do mundo ao seu lado, para lhe dar apoio. Ela podia fazer isso. Podia fazer qualquer coisa com o apoio de suas amigas.
Ela percebeu então que tinha ficado tão absorvida em recuperar o atraso com suas amigas que perdeu a noção do tempo.
"É melhor eu ir conhecer a nova professora", disse ela, virando-se para a escada.
Mas no mesmo momento em que fez isso, notou Daniel se aproximando. Ele estava olhando para o relógio com uma expressão de alarme.
"Daniel!" Yvonne gritou, com entusiasmo.
"Olá a todos", disse ele, aproximando-se do grupo de mães. "Sinto muito, mas não posso parar para conversar, tenho que começar a trabalhar". Ele se virou para Emily. "Ainda quer uma carona até o Joe?"
"Posso me apresentar à professora primeiro?" Emily perguntou.
Daniel olhou para o relógio, tenso. "Hum..., bem..." ele disse, parecendo um pouco confuso.
Emily podia sentir que ele estava obviamente ansioso para causar uma boa impressão em sua nova posição no trabalho, após a promoção. Ela decidiu deixar pra lá e não criar confusão.